Produção habitacional “de mercado” transforma Goiânia
Impulsionado por políticas públicas, setor imobiliário faz metrópole se expandir e produz “periferização da verticalização”
Texto: Patrícia da Veiga
Fotos: Carlos Siqueira
Rua do Esmalte, n° 494, Parque Oeste Industrial, Região Sudoeste de Goiânia. Em frente ao Condomínio Harmonia começa a ser organizada uma feira de roupas e alimentos. Quem encabeça a iniciativa é uma moradora do lugar, feirante em vários espaços da cidade, que reuniu vizinhos com a vontade de trazer o pequeno mercado para a porta de casa. “Há poucos serviços aqui por perto e alguns moradores já são comerciantes em outros lugares. Fazem doces, tortas, artesanato. Por isso, decidimos nos organizar”, explica Simone Gonçalves de Queiroz, aproveitando para convidar o leitor para a recém-inaugurada feira (seu funcionamento ocorre às quintas-feiras, entre os períodos vespertino e noturno). A reportagem do Jornal UFG encontrou Simone no mesmo espaço em que foram erguidos (ou estão em fase de finalização) outros seis condomínios do empreendimento Eldorado Parque. Assinado por quatro construtoras (CMO, Engel, Dinâmica e Tropical), o projeto oferece apartamentos de dois ou três quartos, com área em torno de 48 e 65 m² e preço final variando entre R$168 mil e R$240 mil. Além da feira, os moradores do Condomínio Harmonia esperam por uma praça, uma academia de ginástica, um parque e um shopping nas imediações. Desde a década de 1990, a região já conta com infraestrutura básica de transporte, sistema de água e esgoto e rede de energia elétrica.
Nessa mesma localidade, em fevereiro de 2005, quase 15 mil pessoas foram despejadas de suas casas por uma operação da Polícia Militar (PM). Elas compunham a Ocupação Sonho Real, formada em maio de 2004 de maneira espontânea e mediante a notícia de um terreno abandonado e inadimplente, cuja dívida de Imposto Territorial Urbano (ITU) se acumulava desde 1957 e ultrapassava os R$ 2 milhões. Ancorada em pedido de reintegração de posse emitido pela 10a. Vara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, com anuência dos poderes Executivo e Legislativo, e respaldada pela mídia e pelos setores empresariais, a Operação Triunfo – como foi nomeada a ação da PM – resultou em duas mortes, mais de 40 feridos graves, 800 presos e 4 mil famílias desabrigadas. Muito embora a Constituição Federal resguardasse o direito social à moradia das pessoas que viviam no território ocupado, o que prevaleceu foi o direito à propriedade privada e os interesses de imobiliárias e construtoras, que já planejavam empreendimentos como o Eldorado Parque para essa e para outras regiões.
Parque Oeste Industrial depois do empreendimento Eldorado Parque
O caso do Parque Oeste Industrial serve de exemplo para observarmos como a Região Metropolitana de Goiânia (RMG) se transformou na última década. Essa foi a tarefa da gestora governamental Elcileni de Melo Borges, que realizou sua pesquisa de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGeo) da UFG, sob orientação da professora Celene Cunha, do Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa), e co-orientação do professor Aristides Moysés, da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Partindo da premissa de que a habitação é um forte vetor de transformações na estrutura de toda cidade e considerando ainda o contexto global de conversão da moradia em “moeda” de alto valor no sistema financeiro, ela investigou o crescimento da Grande Goiânia entre 2005 e 2016, podendo constatar uma expansão vertiginosa “pelas franjas” da metrópole. Segundo a pesquisadora, o que impulsionou tal realidade foi a implantação de políticas públicas federais e estaduais como Crédito Solidário, Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), Minha Casa Minha Vida (MCMV) e Cheque Moradia. “Estes programas construíram 101 mil unidades habitacionais entre os 20 municípios da RMG, significando um volume de recursos de R$ 7,4 bilhões em investimentos. Conforme dados da Prefeitura de Goiânia, somente na década de 2000 foram construídos 205 novos bairros na capital e no entorno. Esse foi o maior registro da história”, afirma.
Por meio de um pesado aporte de recursos de fundos estatais (como o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS), especialmente a partir do lançamento do MCMV, o segmento econômico de imóveis (composto por grupos locais e estrangeiros de capital aberto) se voltou para a construção massiva de “habitações sociais de mercado”, ou seja, residências construídas em condomínios estruturados (providos de garagens, piscina e áreas de lazer) e destinadas a consumidores com renda de até seis salários mínimos – que, por sua vez, correspondem ao público-alvo das políticas habitacionais. Essa realidade, de acordo com a pesquisadora, fez a metrópole se espraiar, intensificou a conurbação entre municípios vizinhos à capital – como Aparecida de Goiânia, Senador Canedo e Trindade –, e produziu o fenômeno da “periferização da verticalização”.
Desse modo, o que se viu em setores como Oeste e Bueno nos anos 1980 e 1990, com a explosão de edifícios planejados para as classes média e alta, e o que ainda se nota ao redor dos parques urbanos, com a “verticalização de alto padrão”, foi perceptível também nos bairros populares, nas zonas limítrofes e até mesmo em áreas rurais da metrópole. Porém, com outra “roupagem”, demarcando ainda mais as diferenças. “Se viu aflorar uma nova periferia e novos padrões de segregação residencial e socioespacial na Grande Goiânia”, constata Elcileni, que acompanhou nossa equipe em visita ao Eldorado Parque e também aos bairros Moinho dos Ventos (também na região Sudoeste, próximo ao anel viário) e Parque América (em Aparecida de Goiânia).
Pesquisadora Elcileni Borges conhece Simone Queiroz, moradora do Parque Oeste Industrial, durante reportagem
Parque América, em Aparecida de Goiânia, também é alvo de empreendimentos do setor imobiliário
Consequências
Na tese de doutorado Habitação e Metrópole: transformações recentes na dinâmica urbana de Goiânia, Elcileni apresenta os resultados de uma pesquisa minuciosa que envolveu análise de dados, produção de mapas e gráficos e também um trabalho de campo que percorreu 20 empreendimentos situados em sete municípios da Região Metropolitana (Goiânia, Aparecida de Goiânia, Trindade, Senador Canedo, Goianira, Guapó e Nerópolis). Ao realizar visitas técnicas a moradias, ela buscou captar, entre outros fatores, o grau de satisfação dos habitantes dos novos bairros e a impressão deles com relação ao lugar. “Muita gente reclamou de se sentir isolada e não ter serviços por perto: escola, supermercado, postos de saúde, pontos de ônibus etc.”, pontua.
Com base nos resultados, a pesquisadora revela consequências como a fragmentação do território e o surgimento de novas “manchas urbanas” (espaços vazios em meio a áreas recém-ocupadas), a predominância da construção de moradias populares em áreas isoladas e segregadas, a carência de equipamentos urbanos nos novos bairros e o difícil acesso aos centros econômico e cívico. “A reestruturação da metrópole, vista pela ótica da apropriação desigual do espaço, do padrão de moradia entre as classes sociais e formas de inserção na cidade, evidencia que a desigualdade urbana, funcional e social se aprofunda, gerando uma cidade partida cujos processos de segregação residencial vêm se acentuando paulatinamente”, defende.
Outro aspecto ressaltado por Elcileni diz respeito ao déficit de moradias existente na Grande Goiânia. Mesmo Goiás tendo sido o estado brasileiro que mais recebeu recursos do Crédito Solidário e o sexto na lista dos beneficiários do MCMV (o terceiro na modalidade MCMV Entidades), a produção habitacional do setor privado não solucionou o problema. Sobretudo, como diz a pesquisadora, se considerados os números acumulados do passado e as perspectivas de crescimento populacional do futuro. “A demanda é muito alta e os conflitos não param de crescer. Exemplos disso são as recentes ocupações espontâneas no Parque Atheneu, Santa Rita, Jardim Novo Mundo e Jardim Abaporu”, conclui.
Fonte: Ascom UFG