Filosofia e felicidade
O que é preciso para ser feliz? Professor da UFG, Rafael Rodrigues Pereira aborda o assunto na perspectiva filosófica
Rafael Rodrigues Pereira*
Como a filosofia pode nos ajudar a discutir a felicidade? E como este tipo de discussão pode efetivamente contribuir para sermos felizes? São essas questões que eu gostaria de tentar desenvolver, de forma bem sucinta, neste texto.
Em primeiro lugar, é preciso considerar que a maneira pela qual entendemos a felicidade nos dias de hoje é diferente de como os antigos a entendiam, ou, pelo menos, os filósofos antigos. De fato, a discussão sobre "o que é a felicidade" é um dos temas centrais da filosofia grega e romana. O fato de eles acreditarem que este assunto poderia ser discutido de uma maneira intelectualmente robusta já mostra que para eles a felicidade era entendida de forma mais objetiva do que nos dias de hoje.
A felicidade – ou eudaimonia, como eles diziam – não corresponde apenas à satisfação de desejos que já temos, mas sim a um padrão de boa vida que estabelece aquilo que devemos desejar. Esse tipo de abordagem perdeu força nos dias de hoje, em parte devido ao desenvolvimento das democracias liberais modernas, muito cautelosas acerca da possibilidade de certos grupos tentarem impor seus valores sobre outros. A felicidade, assim, individualizou-se e subjetivou-se. Desde que não interfiramos nos direitos dos outros, estamos livres para sermos felizes como bem entendermos.
É claro que há um ganho importante, em termos de liberdade, nesta visão moderna. No entanto, como ocorre com frequência – o mundo é um lugar complicado – coisas boas podem ter efeitos negativos. A subjetivação da felicidade, de fato, tornou-a menos passível de discussão. O resultado é que com frequência temos uma visão vaga daquilo que buscamos na vida, visão esta que foi formada de maneira mais ou menos passiva a partir de padrões de felicidade de nossa cultura (e até de outras culturas, através da mídia, por exemplo). Preocupamos-nos muito em como alcançar a felicidade, mas pouco em discutir o que ela é. Isso contribui, acredito, para doenças como a ansiedade e a depressão, que se tornaram crônicas no mundo de hoje.
Nesse sentido, embora não seja possível e nem desejável voltar ao passado, acredito que alguns elementos da maneira pela qual os filósofos antigos lidavam com esta questão podem ser úteis para nós. Gostaria de destacar três destes elementos:
Felicidade e valores. Hoje em dia tendemos a compreender a felicidade a partir de "sentimentos positivos". Os antigos, no entanto, a entendiam a partir de valores: você é feliz na medida em que consegue incorporar à sua vida aquilo que é, de fato, importante. Para nós os valores são mais uma escolha pessoal do que para os antigos, mas isso não impede que este aspecto também faça sentido na era moderna: assim, se para você a família é que é importante, então ter uma família bem estruturada será seu principal objetivo, e conseguir incorporar isto à sua vida o tornará feliz. O mesmo ocorre se aquilo que você considera importante for fama, dinheiro, conhecimento, amizade, relacionamentos amorosos, experiências prazerosas etc.
A abordagem centrada nos valores mostra como a concepção dos "sentimentos positivos" – tão difundida nos dias de hoje, através da neurociência e da psicologia positiva – é deslocada: aquilo que buscamos em nossa vida não é simplesmente ter estados mentais agradáveis, mas sim que esta vida decorra de uma determinada maneira.
Imaginemos, por exemplo, uma mulher chamada Rita, que acredita ter a família perfeita, com que sempre sonhou, até que um belo dia descobre que seu marido tem outra família em outra cidade. Será que Rita era feliz antes de saber disso? Embora se sentisse bem, não se pode dizer que ela levava a vida que de fato queria levar, ou seja, uma vida que incorporasse aquilo que era importante para ela.
A ideia de que a felicidade consiste em emoções positivas também distorce a relação que temos com diversos componentes de nossas vidas: não vemos nossos filhos, por exemplo, como um mecanismo para obter sentimentos agradáveis. É claro que estes sentimentos também podem, e até devem, fazer parte da felicidade. O ponto é que esta não pode ser reduzida apenas a isto, como se no fundo tudo o que fizéssemos fosse apenas para obtê-los. Sentimo-nos bem, na verdade, quando acreditamos que nossa vida está decorrendo de acordo com aquilo que tem valor para nós.
Uma concepção mais ativa de felicidade. Podemos afirmar que nossa vida é feita de duas coisas: aquilo que fazemos e aquilo que acontece conosco. Hoje em dia tendemos a dar um peso maior àquilo que nos acontece, como se a felicidade fosse algo que nos é ofertado pelo mundo. Os antigos, no entanto, tendiam a enfatizar o primeiro ponto: a vida era entendida como uma espécie de atividade, onde aquilo que fazemos é mais importante, em termos de felicidade (ou seja, de uma vida bem-sucedida), do que aquilo que nos acontece.
Se você tem o azar de ter um chefe chato, por exemplo, sua felicidade depende mais do que você faz em relação a isso do que do simples "fato" de ter um chefe chato. Da mesma forma, o que importa não é apenas ter dinheiro, mas sim o que você faz com o dinheiro. Não se trata apenas da ideia de que devemos "correr atrás" de coisas legais, ao invés de ficar esperando que elas caiam em nosso colo – embora este também seja um ponto relevante. A ideia é que a própria qualidade da ação, em si mesma, já é constitutiva da felicidade.
Esta forma ativa, por assim dizer, que os antigos tinham de conceber a boa vida me parece interessante para os dias de hoje, na medida em que permite que tenhamos mais controle sobre nossa felicidade. Acredito que a visão mais passiva que tendemos a ter – como se a felicidade fosse algo que "acontece" conosco – é um dos fatores que contribuem para a infelicidade, e até mesmo para doenças como a ansiedade e a depressão.
Uma compreensão revisionista da felicidade. A maneira mais objetiva que os antigos tinham de entender a boa vida – como uma forma de atividade, e a partir da incorporação de certos valores – contribui para que este tema também fosse mais passível de reflexão e de discussão. Hoje em dia tendemos a tratar o que é a felicidade como um fato óbvio, nos concentrando apenas em como obtê-la. Mas na verdade não existe nada de óbvio na maneira pela qual entendemos a felicidade.
Em primeiro lugar, esta concepção é formada, em grande parte, durante nossa infância e adolescência, quando tendemos a absorver de forma mais passiva as informações que recebemos de fora. Isso faz com que naturalizemos aspectos que são, na verdade, culturais, como, por exemplo, o consumismo ou o hedonismo.
Em segundo lugar, é preciso considerar que até mesmo estes elementos culturais são construídos historicamente. Nossa concepção de família, por exemplo, centrada nos relacionamentos amorosos e na intimidade, data do século XVIII. A dignificação do trabalho é resultado da reforma protestante no século XVI. O consumismo está relacionado ao modelo capitalista fortalecido durante os séculos XIX e XX.
A naturalização destes "fatos culturais" contribui, muitas vezes, para nossa infelicidade – por exemplo, se não temos muito dinheiro em uma sociedade consumista, ou se não correspondemos ao padrão de beleza em uma cultura hedonista. Neste sentido, a maneira revisionista que os antigos tinham de conceber a felicidade – como algo passível de reflexão – poderia, acredito eu, ter grande relevância nos dias de hoje. Isso não significa que tenhamos que achar que o dinheiro ou a família não importam – através da reflexão, porém, podemos compreender melhor porque eles importam, e qual é exatamente seu papel em nossas vidas.
Como disse, a felicidade deve ser entendida a partir da incorporação, em nossa existência, daquilo que tem valor para nós. Ora, valores são, justamente, passíveis de revisão. Podemos sempre nos questionar "por que isso é importante?". Este tipo de reflexão pode nos ajudar, assim, a "personalizar", por assim dizer, nossos juízos acerca da felicidade, ao invés de simplesmente corrermos atrás de padrões culturais pré-estabelecidos.
Por que a família ou o trabalho são importantes para mim? Como disse antes, a maneira subjetiva de entendermos a felicidade na era moderna – como um estado mental agradável, o que leva à ênfase nos sentimentos positivos que encontramos em livros de autoajuda – contribui para que tenhamos esta postura pouco revisionista quanto a "o que é" a felicidade.
É importante observar como esta abordagem centrada na reflexão não negligencia, necessariamente, a dimensão afetiva. Os antigos, mais uma vez, nos mostram como é exatamente o contrário. Na era moderna tendemos a compreender as emoções como impulsos cegos, reações que temos de uma maneira mais mecânica. Isso contribui para que tenhamos menos controle sobre nossa saúde emocional, que passa a depender mais de como o mundo nos afeta.
Os filósofos antigos, por outro lado, tinham uma concepção cognitivista das emoções, ou seja, acreditavam que respostas emocionais são resultado de nossas opiniões sobre o mundo, como, por exemplo, sobre aquilo que acreditamos ter de fato valor. Portanto, quando aprimoramos estas crenças através da reflexão – e eles acreditavam que a filosofia era importante pra isso –, tendemos a ter um quadro emocional mais estável e tranquilo. A instabilidade emocional seria resultado direto do fato de nossas crenças serem confusas.
Concluindo, procurei, neste pequeno texto sobre a felicidade, argumentar que seria relevante resgatarmos, nos dias de hoje, um pouco da visão mais objetiva dos filósofos antigos sobre este tema. Procurei sintetizar esta visão em três pontos: compreender a felicidade a) a partir dos valores; b) como uma atividade; c) como algo passível de revisão através da reflexão.
* Professor da Faculdade de Filosofia da UFG.
Fonte: Secom/UFG
Categorias: Artigo