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Universidade Federal de Goiás
Silvia Zanolla

Escola de Frankfurt em tempos de deformação política

Em 05/04/19 15:27. Atualizada em 17/04/19 16:12.

Para a professora Sílvia Zanolla os ataques à Escola de Frankfurt comprovam a dominação bárbara de uma racionalidade cega, provida de interesses irracionais

Silvia Zanolla

Silvia Rosa da Silva Zanolla*

 

Está em curso nas redes sociais um debate sobre o que se denomina marxismo cultural, o que inclui uma crítica contundente à Escola de Frankfurt. Assim, é preciso retomar uma polêmica divulgada no início deste ano, sobretudo na internet, sobre a publicação do artigo: A Escola de Frankfurt Satanismo, feiura e revolução, do administrador e economista Murilo Ferreira. Não proponho um debate amplamente acadêmico aqui pelo limite de espaço. Quem conhece as obras dos autores frankfurtianos, sua base conceitual e complexidade frente à teoria do conhecimento, compreenderá do que falo.

Trato aqui de um movimento sutil, que denomino “deformação de sentido do esclarecimento”, do ponto de vista da forma e do conteúdo.Na atualidade, a distorção do esclarecimento inverte a realidade, esvazia-a de sentidos, difama a verdade (os próprios frankfurtianos, Adorno e Horkheimer, na obra Dialética do esclarecimento estudam esse tipo de distorção).

Como educadora, oriento os alunos a não se preocuparem com a defesa pessoal de quaisquer autores ou teorias, mas, sim, estudá-los, contrapô-los, criticá-los, fazer emergir suas contribuições, contradições; dos clássicos aos contemporâneos.  Por vários motivos, subjetivos e objetivos, autores são deturpados de modo arbitrário (sobretudo, devido a inclinações políticas). Como evitar essas distorções? Lendo-os na fonte e cotejando traduções. Isso não garante a compreensão exata do seu pensamento, mas, evita injustiças épicas. Devido a isso esclareço: os frankfurtianos, definitivamente, não se fizeram apresentar no texto A Escola de Frankfurt Satanismo, feiura e revolução (2018).  Para além de o referido texto ser ou não acusado de plágio, vejamos o porquê dessa não representação, considerando a estrutura e a forma textual do referido texto. Lamentavelmente, observa-se o descaso da exposição, do respeito às citações e normas do trabalho científico, obstaculizando a própria base de análise. Não por acaso está sendo acusado de plágio (o que não será objeto aqui). Mas o que causa perplexidade é a inversão do pensamento dos autores frankfurtianos o que exige, por honestidade intelectual, algumas advertências.

O texto destaca conceitos, os quais não desenvolve. Como a ideia de “feiura”. Na perspectiva de Adorno, autor frankfurtiano, é impossível explicar a “feiura” sem contrapor ao sentido do que vem a ser o “belo” e, a “beleza natural” (ver a obra: Teoria estética e, A Indústria cultural).  Assim, ao contrário, este autor critica a modelagem, a padronização estética e a submissão dos consumidores à administração da Indústria cultural. Por isso, atenção: os autores da Escola de Frankfurt, ao invés do que aparece no texto de Ferreira (2018), não subsidiam ou apoiam a Indústria Cultural, a denunciam, resistem à sua deformação e alienação no sentido material e humano (ver ainda as obras de Adorno e Horkheimer: A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas; e de Adorno: Tempo livre; Capitalismo tardio ou sociedade industrial, Televisão e formação, Teses sobre sociologia da arte). Ademais, cabe esclarecer que os autores frankfurtianos não defendem o que se convencionou a chamar “politicamente correto”.  Deixam muito claro sua defesa de uma cultura humanista, diversa, crítica e emancipatória. Para tanto, denunciam qualquer fascismo e totalitarismo relacionando-os à barbárie, às desigualdades e ao preconceito. Além do que, qualquer ação ou pensamento extremado, fanático, leva à identificação com a violência e a estágios desumanizantes. Embora uma de suas bases seja marxiana, criticaram seguidores marxistas dogmáticos (ver as obras: Notas marginais sobre teoria e práxis e, Capitalismo ou sociedade industrial de Adorno). Outrossim, onde há extremismo, há totalitarismo, que por sua vez alimenta o preconceito, a deformação da consciência e a violência (ver em Adorno: Personalidade autoritária; Educação após Auschwitz, Educação contra a barbárie; Educação para quê; Educação e emancipação).

Não há sentido em afirmar, conforme Ferreira (2018), que há “inspiração no pansexualismo de Freud”. A aproximação dos frankfurtianos com Freud se deu pela desmistificação de visões comportamentalistas limitadas acerca de um sujeito ideal (em termos, psicológicos, políticos, culturais e conceituais). Freud desnuda as contradições da consciência ao apresentar a dialética do aparelho psíquico como básico para se elaborar a cultura a partir da superação dos comportamentos instintuais inconscientes (alienantes). Isso subsidia aspectos subjetivos para se compreender porque a humanidade ainda é regida pela desumanização, à parte de um desenvolvimento amplamente tecnológico (ver em Adorno obras: Acerca da relação entre Sociologia e Psicologia, Personalidade autoritária, e, Educação após Auschwitz).

Segundo Ferreira (2018), “A tarefa da Escola de Frankfurt consistiria em destruir o legado judaico-cristão, por meio de uma abolição da cultura e a criação de novas formas culturais que levariam a uma alienação crescente da população e um novo barbarismo”.  Afirmativa inconsistente. Na verdade, estes autores propõem ampla crítica ao conhecimento elaborado ao longo da história da civilização, seja empírico ou filosófico; desmistificam qualquer idealização teórica ou prática apresentando suas contradições (ver: Adorno e Horkheimer: O conceito de esclarecimento; Juliette ou esclarecimento e moral; Ulisses ou o mito do esclarecimento; elementos do anti-semitismo; Adorno: Dialética do esclarecimento)

Em relação ao papel da música na sociedade, Adorno conhecia com propriedade o assunto e escreveu várias obras sobre seu papel de motivação cultural em termos sociológicos e educacionais (era formado em Filosofia, Sociologia e Música). As distorções de Ferreira sobre isso são incompreensíveis, do ponto de vista intelectual. Duas obras básicas demonstram tais imprudências (ver em Adorno: Filosofia da nova música; Sobre Música popular e outras).  

Outro equívoco chama a atenção. É comum, naqueles que leram apressadamente os frankfurtianos, desvarios como a identificação de um certo caráter “pessimista”. Isso facilita aos adversários do pensamento crítico, de modo incipiente, encerrar o debate sem grandes esforços. Quando se chega a esse ponto, o diálogo torna-se inviável. Prevalece o aniquilamento do contraponto, arrisca-se emergir triunfante o totalitarismo denunciado pelos próprios Adorno e Horkhheimer. Ocorre que, acusar os autores de “pessimistas” é intenção ideológica, visa enfraquecer suas denúncias, diluir a resistência à realidade de desigualdade, preconceito e injustiça. Reconhecer isso levaria à reação contra a inversão da consciência à alienação. Diante de tal descaso com o conhecimento, conclui-se que é preciso resistir, pois, não há como aniquilar ou distorcer as contribuições dos frankfurtianos pelo fato que, àqueles estudiosos sérios e compromissados com o conhecimento crítico, não escapa que se concretizam justamente aqui e agora suas denúncias, quais sejam: o investimento no esvaziamento e na inversão de sentido como impacto político por meio da cultura que objetiva perpetuar o poder econômico.  Os ataques à Escola de Frankfurt comprovam a dominação bárbara de uma racionalidade cega, provida de interesses que ao fim e ao cabo, são irracionais; na sua própria origem e essência instintuais, desumanos e, dissimulados.

 

*Silvia Rosa da Silva Zanolla é psicóloga e professora  titular da Graduação e da Pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás

Categorias: Artigo