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Universidade Federal de Goiás
Marcella Hannah

O lugar da palavra no silêncio absoluto

Em 27/08/19 14:44. Atualizada em 08/10/19 15:17.

Autora discute a necessidade de acolhimento para evitar o suicídio

*Marcella Hannah

Para a psicanálise não há uma substância propriamente humana. A das Ding – “a Coisa” – que, aos olhos de Freud, constituiria o objeto da pulsão (com destaque para o artigo definido), aquilo que supostamente traria para o sujeito a completude, está perdida desde sempre. Em virtude disso, Lacan vai dizer que o ser só pode se estruturar enquanto falta-a-ser, o que implica, entre outras coisas, em sustentar que no que diz respeito aos processos humanos não há nada de natural, nem de estático (definitivo). É justamente pelo que chamou de primazia do significante – ou seja, pela inexistência de um determinado significado específico às experiências e à existência humana -  que o sujeito pode advir. 

Entretanto, são vários os discursos que engendram uma lógica (perversa) que promete garantias e saberes capazes de trazer a completude ao sujeito e eliminar de vez o mal-estar, operando na prática de forma silenciadora. Uma saída imaginária ao desamparo frente ao real. Freud advertiu: “se a boca se cala, falam as pontas dos dedos”, ou seja, frente à incompletude e aos resíduos de mal-estar oriundos do processo civilizatório, melhor apostar na saída pelo simbólico.  

Não é fácil, porém, contornar com palavras o próprio desamparo e fazer da ausência de um sentido pré-determinado para a vida o motor de uma deriva inusitada. Dá trabalho e mais: dói. Infelizmente, nem todo mundo topa. Não é por acaso que dizem por aí (e eu discordo) que “a ignorância é uma benção”, é o reflexo de uma sociedade que ainda insiste na cultura do “melhor não saber” produtor das mais brutais formas de alienação, silenciamento, exclusão e sofrimento. A isso, o sujeito responde com o sintoma que, para além de outros compromissos, denuncia aspectos do que não pode ser dito. Nesse sentido, como podemos escutar os 32 casos de suicídio que ocorrem diariamente no país? O que o gesto de tirar a própria vida denuncia a respeito do conjunto, atual, de nossa sociedade? Mais um dado: segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde) 9 a cada 10 casos de suicídio poderiam ser prevenidos. Quando li isso, pensei que, talvez, a cada 10 suicídios somente 1 seja o caso de um desejo pela morte. Se minha impressão for coerente com a realidade dos casos, isso não aponta para um fracasso em nossa escuta? 

A convocação é no plural por que se trata aqui de abordar o suicídio enquanto um sintoma social, ou seja, enquanto aquilo que se constrói como resposta aos discursos coletivos predominantes e que mantém relações com o laço social o qual todos fazemos parte – portanto, uma problemática para todos nós. Nesse sentido, vale mais uma questão: quais discursos estamos autorizando e reproduzindo mesmo “sem (querer) saber”? 

Segundo o filósofo coreano Byung-Chul Han, o regime de auto-exploração orquestrado pela gramática neoliberal engendra um discurso de agressão contra o próprio sujeito claramente observável nos efeitos depressivos que a doutrina meritocrática, a filosofia do empreendedorismo e o marketing do “self made man” produzem. Trata-se de um modo de organização econômica que sustenta uma política que intervém desfazendo laços; impedindo a transformação das vivências em experiência e sua posterior transmissão; e solapando os processos que permitem ao sujeito alcançar um discurso seu dentro do próprio sofrimento. 

Na medida em que se vende e se consome uma leitura de mundo que amputa a palavra do sujeito, afirmando que o que ele tem a dizer a respeito do mundo não tem o menor valor caso não coincida com o “padrão” (do mercado, da família, da religião etc etc) estamos no terreno da barbárie. Conforme Rinaldo Voltolini, professor de psicanálise da Universidade de São Paulo, “a guerra acontece quando a palavra, como mediadora, se extinguiu. Isso acontece entre duas pessoas, entre países. Sem a mediação da palavra, se passa diretamente ao ato violento”.

Talvez aí esteja um ponto de denúncia no suicídio: a necessidade de nos empenharmos mais na construção de um modo de política que leve em consideração a palavra do sujeito e acolha sua narrativa acerca daquilo que compõe seu mundo íntimo e coletivo. A radicalidade do silêncio que o ato suicida inscreve – o morto é o único que nada tem a dizer – aponta para o quão nocivo é um laço que não ofereça ao sujeito a escuta de sua singularidade e que não considere a pluralidade no espaço do comum.

Marcella Hannah é psicanalista e estudante do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Goiás

Fonte: Secom UFG

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