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Universidade Federal de Goiás
Freud

Freud continua presente

Em 25/09/19 14:49. Atualizada em 26/09/19 15:59.

80 anos após o seu falecimento as ideias do pai da psicanálise continuam impactando no século XXI. Por quê? 

Reportagem: Caroline Pires

Produção audiovisual: TV UFG

Podcast: Silvânia Lima (Rádio Universitária)

Edição: Carolina Melo e Kharen Stecca

 

Leia a matéria especial ao som da playlist relacionada ao tema:

 

Não é fácil escrever um texto jornalístico sobre Sigmund Freud. E esse é um texto jornalístico. Pelo menos deveria ser. Esse lugar da fala, do texto e do emaranhado de signos, significantes e significados foi pensado por esse austríaco antes mesmo do surgimento da Linguística. Não é sem motivo que as feridas nunca cicatrizadas de suas teorias continuam ainda hoje, ao mês que se completa 80 anos do seu falecimento, pulsando vivas, mostrando desde o primeiro olhar que o ser humano não é naturalmente bom. E não para por aí. Para Freud, o indivíduo também não controla o próprio psiquismo, não têm garantias de superar o mal estar da vida em civilização e, como diz a canção de Caetano Veloso, “não sabe o lugar certo de colocar o desejo”. 

As teorias freudianas começaram a ser formuladas nos últimos anos do século XIX e desarticularam de maneira irremediável as bases aparentemente acalentadoras do pensamento tradicional ocidental e de seu patriarcado. A tríade de ideias de que a sexualidade não começa na puberdade, de que o ser humano não tem controle sobre o próprio psiquismo na imensidão do inconsciente e de que somos todos absolutamente pulsionais,  desestabilizaram uma era e ecoam até os dias de hoje.

Em 1900, quando Freud estabeleceu seus estudos, a Europa vivia o auge da Belle Époque e com ela a convicção do progresso da civilização, do desenvolvimento científico e a euforia quanto ao futuro da humanidade. Tão alta quanto às expectativas de uma época foi a sua queda nos anos que se seguiram, com guerras mundiais, holocausto e um descrédito completo em sentimentos de bondade e altruísmo humanos. Antes de todas essas tragédias e enquanto a população européia comemorava feitos como a energia elétrica, carros e bondes, Freud antecipou que isso não bastava e que nada preencheria a busca humana por um colo, um lugar idealizado de refúgio e um apaziguamento que não chega.

Freud
Foto: Max Halberstadt

O resultado é que o corte epistemológico adotado por ele altera de maneira irreversível as bases mais acalentadoras do pensamento e da tradição ocidental. Vale lembrar que, antes de Freud, Copérnico já havia postulado que a Terra não é o centro do universo e Darwin tinha tirado o homem do local de criação divina para o posto de resultado de uma evolução animal. Essa destituição sobre o controle do seu próprio psiquismo, com o estabelecimento do inconsciente, “é poderosa e desaloja os sujeitos porque estão ancorados no pensamento ocidental com seus pressupostos religiosos ou do senso comum”, explica o professor Altair José dos Santos, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás. 

Colocando um pé de cada vez na corda bamba que ninguém se aventurara até então, no entremeio entre medicina, filosofia, história e arte, seu percurso enquanto pensador escancarou uma porta que ainda não tinha sido aberta. Freud estava preocupado com o que não se limita a um laboratório, não se cura com remédio e não se discute na metafísica. “Freud surpreende pois mostra algo que só cabe na psicanálise, ela é especialmente singular e inédita nesse sentido. Eu chamaria isso de radicalidade”, considera o professor Giovani Burgarelli, da Faculdade de Educação da UFG. 

Segundo o professor, ao lidar com o sofrimento psíquico, e o arcabouço que vem daí como morte, paixões, loucura, sexualidade e relações que moldam a subjetividade, a psicanálise se propõe a lidar com os espaços não abarcados por uma ciência. Assim, em vez de pensar em termos médicos ou conceitos filosóficos, o que é olhado é o humano e a materialidade do que ele é, e isso é desenvolvido na experiência da fala, privilegiando simbolizações e as relações do homem com o seu discurso. “Então a psicanálise caminha como pode em seu método e sua ética, insistindo que o modo de pensar e desejar do homem não se dá na dependência de um neurônio e que o desejo não é uma secreção química”, acrescenta Altair, da Faculdade de Educação da UFG. 

Freud foi  responsável, como ele mesmo afirmou no texto Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, em 1916, por desferir um “irritante insulto” ao homem e a sua mania de grandeza. Suas teorias destituíram o ser humano do trono de senhorio de sua própria vida. “Com a hipótese do inconsciente, ou seja, de conteúdos psíquicos que operam de modo determinante na vida de um sujeito, sem que ele tenha consciência deles, o homem deixa de ser senhor na sua própria casa”, explica o professor.

Assim, o sujeito é posto em um espaço muito peculiar no que se refere ao sofrimento: o lugar de escuta. Na era das respostas imediatas e prontas, a psicanálise oferece um espaço para que o sofrimento humano seja ouvido pelo próprio sujeito ao dizê-lo a um analista, sem que ele sofra uma imposição de saber prévio ou normatização de regras para superar os percalços da condição humana. E são a clínica psicanalítica e as aplicações práticas das teorias freudianas os pontos-chave para a permanência das ideias de Freud ao longo dos anos, segundo a avaliação da professora da Faculdade de Educação, Elizabeth Cristina Landi. “O aspecto clínico da psicanálise é fundamental: se as pessoas parassem de fazer análise e ficassem tomando Freud apenas como um teórico, talvez isso tudo se perderia”. 

A consequência desse arsenal de ideias inaugurado por Freud é o estabelecimento da psicanálise enquanto método que se sustenta nas regras básicas da Associação Livre, que consiste no analisante falar o que lhe vier à mente, e da Atenção Flutuante, que é a contrapartida do analista ao não direcionar o que é dito. Aos poucos e de infinitas formas, tudo aquilo que se fala no setting analítico promove um deslocamento dos sintomas do sujeito em análise. “Por que cura? Cura porque move! Por meio da fala há mudança. Nisso reside a importância da obra de Freud. Havendo uma criação no nível da poética, do discurso, essa criação interfere no corpo porque o inconsciente é fisgado pela fala”, explica o professor Giovani. Segundo ele, é muito comum, depois de uma trajetória de análise, o sujeito falar que se sente bem, apesar de nada ter aparentemente mudado. “Ou seja, ocorre um deslocamento de sintomas e você põe-se a ver em uma implicação subjetiva de seus sintomas”.

A resistência à psicanálise muitas vezes reside nesse caminhar longo e sem regras fixas do espaço de escuta e de fala que vem do inconsciente. Ao teorizar sobre o inconsciente, Freud abriu uma ferida narcísica que não sara, uma vez que fez cair por terra, mais ainda, o reino das verdades absolutas sobre o humano e reconheceu que o encontro com a realidade é parcial e passa pela edição da subjetividade nebulosa do inconsciente, sempre tecida na linguagem. 

O sujeito é então responsabilizado pelo seu desejo inconsciente e pela forma como ele lida com a sua própria incompletude. Ou seja, com a rachadura estruturante fundamental que vem para o primeiro plano no processo psicanalítico. “Na análise o sujeito passa a encarar essa falta estruturante que ele não consegue se livrar ou tapar. Partindo desse lugar, ele tem a chance de desmascarar seus ideais e fantasias, que muitas vezes o sustentam enquanto indivíduo e estão na causa do seu sofrimento psíquico”, diz Elizabeth Cristina Landi.

Medicalização da vida: dá para escapar?

Nesses 80 anos desde o falecimento de Freud muita coisa mudou. Aviões comerciais, invenção da penicilina, transplante de órgãos e conexão rápida à internet. Entre os avanços farmacêuticos, teve início na década de 1960 a produção de medicamentos a base de benzodiazepínicos, princípio ativo que abriu as portas para o tratamento medicamentoso do sofrimento psíquico. Altair Santos considera haver uma banalização do uso desse tipo de fármacos ao afirmar que há muito tempo a tristeza foi proscrita da experiência humana. “É como se ninguém mais  pudesse ser triste e nem ter o direito a uma tarde de tristeza. Se você se mostrar triste para alguém, vai ouvir um conselho, uma recomendação do que fazer, a prescrição de uma medicação ou uma oração”. A clínica médica mostra a importância do uso de medicamentos em quadros específicos. Mas um questionamento que sempre ressoa, segundo ele, é se a utilização dos medicamentos consegue, de fato, aplacar de forma permanente as mazelas do ser.

Medicamentos (Foto Pixabay)
Foto: Pixabay

 

Em meio a essa questão, o século XXI foi  inaugurado com o aumento das estatísticas relativas à depressão e à ansiedade. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), entre 2005 e 2015 o número de casos de depressão no mundo cresceu 18% e hoje afeta 322 milhões de pessoas. No Brasil, 11,5 milhões de pessoas convivem com a doença e chega a 9,3% o índice da população brasileira acometida por distúrbios relacionados à ansiedade. Anualmente são registrados 800 mil casos de suicídio no mundo, fora as milhares de subnotificações. 

Segundo dados do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), são vendidos 1,4 bilhão de comprimidos por ano no Brasil para depressão, ansiedade e doenças associadas aos distúrbios psíquicos. Seja por orientação médica ou não, o fato é que os dados mostram que o uso de medicamentos está em uma curva ascendente desde meados do século XX, visando conter dores que não cabem em receituários. 

No olho do furação da efervescência de exposição das vidas nas vitrines de redes sociais e da pouca tolerância para lidar com as frustrações em meio às telas touchscreen e aos stories que não acabam mais, a psicanálise convida a um respiro e um olhar para si e não para o outro. “O que a psicanálise propõe é pensar a vida em sociedade e a subjetividade individual não sobre o viés do idealismo ou dos conceitos metafísicos, mas sobre o viés daquilo que nenhuma ciência ou medicamento dá conta”, explica Giovani Burgarelli. 

Especialistas avaliam tratamentos para os sofrimentos psíquicos

O sofrimento é parte da condição humana e está presente por toda a vida. Medicamentos chegam cada vez mais nas farmácias com a promessa de tratar as aflições humanas, abrindo espaço para a medicalização da vida. A TV UFG abordou o tema sofrimentos psíquicos e as formas de alívio apresentadas pela psicologia e pela psiquiatria. Confira:

“Devagar… esquece o tempo lá de fora”

A psicanálise falha em dar respostas. E não há qualquer problema com essa afirmação uma vez que a falta é tomada como algo estruturante do humano e com a qual ele é convocado a lidar de uma forma singular pelo processo da análise, conforme explica a professora Elizabeth Cristina Landi. Segundo ela, no emaranhado de construções simbólicas que vão sendo construídas pela fala e escuta em um processo de psicanálise, os nós do próprio psiquismo vão sendo afrouxados e o sujeito vai reposicionando seus olhares sobre a própria vida. “Sem receitas prontas ou ‘dez passos’ para alcançar qualquer coisa que seja, a psicanálise convida à desaceleração”.

Levando em consideração a clínica psicanalítica, o professor Giovani Burgarelli afirma que é muito comum as pessoas chegarem para sua primeira análise falando do desejo de conhecer melhor e mais a si mesmo. Segundo ele, essa busca é um engano inicial, uma vez que a psicanálise traz a evidenciação da impossibilidade de ter um acesso límpido e direto ao inconsciente. “Na verdade, na psicanálise há uma dimensão que tem a ver com o impossível na própria psicanálise: não se descobre nunca, mas mesmo assim faz efeito”, afirma. 

De acordo com o professor, o espaço psicanalítico só existe se tiver a implicação e o comprometimento do sujeito com o processo todo da análise, privilegiando as simbolizações e as relações subjetivas com o seu próprio discurso e ato de fala. De uma forma que não pode ser mensurada ou comprovada por meio de testes ou experiências empíricas, a psicanálise proporciona que à medida em que a fala e a escuta vão se desenrolando os laços que prendem o sujeito aos seus sofrimentos vão aos pouco se desenrolando e se deslocando pela vivência humana. “Freud entendeu que na raiz da estruturação humana o que a gente tem é uma rachadura, é uma divisão inegociável. Cada um ali irá fazer algo a partir desse defeito de estrutura e vai encontrar uma saída para se colocar no mundo, tentando evitar o sofrimento e buscando a felicidade”, explica a professora Elizabeth Cristina Landi. 

Segundo ela, nesse caminhar o sujeito irá se deparar com uma felicidade limitada e uma vida que será plena apenas parcialmente. E tudo bem por ser assim, porque o problema inerente ao humano, em última instância, não é com uma pessoa, uma situação, ou algo que seja externo a si mesmo. Na psicanálise não há espaço para passos simplificadores para lançar à plenitude ou fornecer explicações que isentam o sujeito de culpa. “A psicanálise não é para todo mundo porque não é todo mundo que quer ver essa falta estruturante”. 

Quando alguém busca o psicanalista querendo uma solução rápida, o que fazemos é tentar contornar e tentar levar o sujeito a entender que não tem como ser rápido”, conclui. Assim, segundo ela, quem quiser um alívio superficial e rápido para o sofrimento psíquico não irá conseguir sustentar a análise. A professora ressalta, contudo, que quando o sujeito está em um processo de sofrimento agudo, como depressão que o impede de sair de casa ou crise transtorno de pânico, pode ser necessária a adoção de medicamento. 

Como é realizada a formação do Psicanalista

A jornalista Silvânia Lima da Rádio Universitária entrevistou a Psicanalista Isabela Mundim sobre como se dá a formação do psicanalista. Confira o podcast:

Freud e as mulheres

O ano era 1889 e Freud estava iniciando os seus estudos para o que viria a se tornar a psicanálise. Foi em um dos seus atendimentos a Emmy von N, que Freud ouviu um grito de “cala-te”. Esse momento emblemático marcou algo inédito até então: um homem, branco, médico, aparentemente detentor do saber, se calando diante de uma mulher e disposto a ouvir o que ela tinha a dizer. Freud ouviu mulheres que nunca tinham sido escutadas. Apesar de profundas represálias, ele se calou para mulheres que até então recebiam de médicos da época diagnósticos afirmando que seus sintomas eram fingidos e prescreviam “pênis em doses regulares” para que elas obtivessem a cura para seus sintomas que refletiam sofrimentos psíquicos. Em um contexto histórico de profunda repressão sexual, há quem diga que, foi ao ouvir essas mulheres chamadas de histéricas, Freud fundou a psicanálise.

No decorrer de seus estudos, ele escreveu com todas as palavras que a menina se ressente da ausência do pênis e realizou afirmações que são interpretadas, ainda hoje, como misóginas por muitos leitores. Mas Altair Santos considera que é necessário ter cuidado com conclusões precipitadas e fora de contexto, especialmente porque Freud é filho do seu tempo e por isso deve ser lido e interpretado dentro do seu contexto histórico. “É preciso lembrar que anos depois das afirmações iniciais, em 1924, no texto Organização Genital Infantil, ele é claro ao dizer que o que se trata alí não é de pênis mas sim de falo. E o falo dentro desse elemento teórico é aquilo que nenhum ser humano tem, o falo comparece na sua condição de faltoso, enquanto significante daquilo que teríamos se fôssemos completos”. Segundo o professor, muitos críticos de Freud ignoram essa afirmação e pensam que ele sustentou um falocentrismo até sua morte. “Eu discordo frontalmente disso, eu penso que o falocentrismo está antes e depois de Freud, não em seus estudos propriamente dito, porque a questão central não é o falo em si, mas o lugar de faltoso do indivíduo”, argumenta. 

Ainda de acordo com o professor, destituir e reconfigurar esse modo de pensamento do patriarcado e do falocentrismo é uma missão do tempo atual. “Freud não tinha condições de produzir isso porque seu estudo foi antes da linguística ou do estruturalismo. Ele não tinha arsenal metodológico e científico para isso. Essa é uma missão contemporânea, para os psicanalistas contemporâneos, que não se constituiriam  sem Freud”, afirma. O professor lembra que em 1932, em uma de suas últimas conferências ele foi humilde o suficiente para afirmar que a mulher segue sendo um continente desconhecido para a psicanálise. 

Elizabeth Cristina Landi lembra que a questão da mulher deve ser vista também por outro ponto de vista, uma vez que a criança descobre a falta estruturante na sua experiência com a mãe. “A experiência da castração se dá quando a criança descobre que algo falta à mãe. E não é o pênis que lhe falta, mas a questão principal é que ela não tem tudo para lhe dar o tempo todo”, explica a professora ao afirmar que quem introduz a criança na experiência de falta é mãe. De forma mais ampliada essa situação vai se desdobrando como um estranhamento a tudo o que é diferente. “Então aquele horror da castração se desdobra no feminino, entendendo que isso remete a algo muito além das mulheres. A gente pode pensar que hoje há um discurso de horror aos indígenas, aos negros, aos pobres, ou seja, é um ódio ao diferente. E nisso Freud é genial”, considerou a professora. “Eu penso que por mais que Freud seja criticado enquanto homem da sua época, com posições machistas e reducionistas do lugar da mulher, o que ele fez pelas mulheres foi muito mais libertador do que aprisionador”, conclui.

Centro de Psicologia oferece atendimento à comunidade

A UFG, por meio do Centro de Psicologia, coordenado pelo curso de Psicologia da UFG, oferece atendimento à comunidade. Confira matéria produzida pela TV UFG:

Fonte: Secom UFG

Categorias: Especial Humanidades