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Universidade Federal de Goiás
Defesa Publica - foto geral

Frente às desafetações, afeto pelo espaço público: a UFG vai à Rua do Lazer

Em 11/12/19 14:46. Atualizada em 01/09/20 18:22.

Defesa de tese em local aberto convida à ocupação de espaços da cidade

Gustavo Motta

Goiânia é uma cidade em que o pó batido e o concreto compartilham da mesma vizinhança. A paisagem é rica em contrastes, irregular como a imagem de raízes quebrando o meio-fio para invadir o asfalto. Quem caminha pela região central encontra mostras de uma ocupação (e reocupação) diversificada do espaço. E assim, cinemas populares dão lugar a igrejas, e as memórias do pastel com caldo de cana dão lugar ao sabor industrial de algum fast-food.

A Rua Oito, no Centro, por muito tempo chamada “Rua do Lazer”, é exemplo disso. Ocupada por galerias e salas comerciais, além de uma igreja, ela deixou de lado a boemia dos barzinhos e a diversão do cinema que movimentavam a região nas décadas de 1970 e 1980. Os prédios em art-déco continuam ali, mas cobertos pelas extensas fachadas das lojas. O calçadão deixou de ser um espaço para a ocupação popular - exercício do direito que as pessoas têm à cidade. É essa ocupação que precisa ser retomada, como defende a arquiteta Maria Ester de Souza.

Por isso, ela fez questão de defender sua tese de doutorado ali. Foi um trabalho intenso para montar a tenda que abrigaria os presentes, erguer os banners com resultados da pesquisa e ajustar o som. Quem passava pelo local assistia à cena com empolgação, estranheza ou curiosidade. Muita gente se aproximava para prestar atenção. Alguns se sentavam nos banquinhos de concreto ou nas cadeiras abaixo da estrutura montada. Enquanto isso, eram distribuídos copos com água e café.

Pessoal assistindo defesa publica

Defesa Publica - presentes

Defesa pública contou com participação de pessoas que paravam para observar (Fotos: Gustavo Motta)

 

Maria Ester é especialista em paisagens urbanas e fez doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás (Iesa/UFG). Em sua pesquisa, ela abordou as chamadas "desafetações dos espaços públicos", que consistem na destinação de áreas municipais para a iniciativa privada. Para a pesquisadora, esses processos têm práticas erosivas, ou seja, de perda do controle do poder público sobre as espacialidades. Foram analisados terrenos desafetados entre 1954 e 2016, e a pesquisadora percebeu que as desapropriações foram mais intensas nos bairros da Região Sul.

“Essa é uma região que já foi ocupada por fazendas de famílias tradicionais na política goiana. Hoje, é a mais verticalizada e que conta com a melhor infraestrutura da cidade”, aponta. Bairros como Alto da Glória, Serrinha, Jardim América, Nova Suíça e Jardim Goiás fazem parte dessa região. A pesquisadora conta que teve interesse em abordar o tema após ter sido convidada a trabalhar na Secretaria de Meio Ambiente em Aparecida de Goiânia, em 2009.

“Naquela época, eu comecei a perceber que não tinha como diferenciar uma área do município de um espaço privado, porque não havia regulamentação sobre os terrenos”. Assim, o uso das áreas públicas no município vizinho à Capital se tornou tema em sua dissertação de mestrado

O problema nessa falta de indicação sobre os terrenos é que a entrega deles à iniciativa privada acontece sem “a população saber quando está perdendo um espaço que poderia receber praças, escolas, postos de segurança e saúde, vendido para favorecer interesses privados”, alerta.

Maria Ester
Maria Ester de Souza durante defesa pública (Foto: Gustavo Motta)

 

Enquanto realizava sua pesquisa, a arquiteta começou a perceber um movimento pela erosão dos espaços públicos em Goiânia, o que a motivou a abordar o assunto em um posterior doutorado. “Inclusive, houve uma grande discussão sobre o Projeto de Lei Complementar 50, proposto em 2014, que previa a entrega de um milhão de metros quadrados para vendas”. Na época, a UFG elaborou um relatório no qual afirmava que a medida passava por cima da sustentabilidade municipal e do Plano Diretor vigente.

O professor Tadeu Arrais (Iesa/UFG) foi quem orientou a pesquisa. “Fomos nos aproximando para participar de manifestações populares contra a desafetação de áreas em Goiânia, o que fez com que ele se tornasse meu orientador”, lembra a arquiteta. Maria Ester compõe o Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Goiás (CAU/GO), e participou de audiências públicas sobre a implementação do Bus Rapid Transit (BRT), quando percebeu que a paisagem da Avenida Goiás seria descaracterizada em decorrência das obras. “Eu virei para o Tadeu e disse: ‘se eles derrubarem uma árvore naquela avenida, vamos fazer uma manifestação lá’”.

O que a arquiteta não esperava é que as árvores seriam marcadas com um “X” para serem derrubadas. “Entramos no canteiro central da avenida e tiramos várias fotos. Isso nos causou uma grande indignação”. O símbolo usado para marcar a morte de uma das paisagens mais históricas de Goiânia está estampado na camiseta dos professores que participaram da defesa. “Por isso, a ideia era defender a minha tese durante a manifestação na Avenida Goiás. No entanto, percebemos que seria mais viável fazer isso aqui, na Rua do Lazer”, aponta.

arvores marcadas
Árvores foram marcadas para serem derrubadas (Foto: Maria Ester)

 

Na Avenida Goiás ou na Rua do Lazer, a iniciativa conseguiu chamar a atenção das pessoas. “Essa é a primeira defesa em uma rua, e esperamos ter outras”, comemora o professor Tadeu Arrais. O docente destacou a importância de se ocupar os espaços públicos. Nesse sentido, o que ocorre é um movimento de resistência popular frente à degradação, invisibilização e perda das áreas que pertencem à comunidade.

A defesa faz parte da Primeira Ciranda Literária Pública, evento idealizado por professores da Rede Municipal de Goiânia e da UFG. A programação foi realizada em parceria com o Sindicato dos Docentes das Universidades Federais de Goiás (ADUFG), Fundação de Apoio à Pesquisa (FUNAP), Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Goiás (CAU/GO) e o Laboratório de Livros, Leitura, Literatura e Biblioteca (Libris).

banca defesa publica
Banca de avaliadores: da esquerda à direita: Adriana Mara Vaz (Faculdade de Artes Visuais - FAV/UFG), Leandro Lima e Tadeu Arrais (ambos do Iesa/UFG), Patrick Zechin (Universidade Estadual de Goiás - UEG) e Benny Schvarsberg (Universidade de Brasília - UnB). Foto: Gustavo Motta

 

A iniciativa de contato com a comunidade agradou quem passava por ali. Teve até lanche, com pão de queijo, biscoito de queijo e suco de laranja. A venezuelana Lauris Barrera fez alguns chocolates com recheios de maracujá e limão, que também foram servidos aos presentes. Ela mantém um pequeno negócio, com o qual ajuda a sustentar a família que veio de Caracas, e aproveitou para vender outros doces e trufas. Barrera conta que veio da Venezuela porque "as condições de vida no país estão complicadas", mas ressalta que pretende voltar em breve.

 

Centro

Quem parou para participar do lanche (e da defesa) sentiu Goiânia à flor da pele. Primeiro, no tempo que oscilava entre o sol forte e a chuva, comum durante a primavera no Cerrado; tinha quem abria o guarda-chuva, fechava, e voltava a abrir logo depois. “Eu vou até acelerar aqui, porque vem chuva”, brincou Maria Ester. Felizmente, quando chegou, era fina e tranquila.

Segundo, na percepção de uma nova Rua do Lazer. Isso porque o espaço foi revitalizado pela Prefeitura de Goiânia e entregue à população no dia 19 de outubro. O local conta com novos bancos e mesas de concreto, luminárias e dá acesso a becos repletos de grafites.

Rua do Lazer - 1

Rua do Lazer - 2

Grafite na rua do lazer

Luminárias, mesas e cadeiras de concreto, além de grafites, compõem a paisagem da Nova Rua do Lazer (Fotos: Gustavo Motta)

 

Enquanto uma menina corria pelo espaço, com a camiseta estampando “lute como uma garota”, Seu Neury parava para prestar atenção ao que era dito por Maria Ester. “E olha, rapaz, faz muito sentido tudo o que ela diz sobre a cidade”. Neury Ribeiro de Rezende trabalha como engraxate há cerca de 10 anos e diz que estava presente quando a Rua do Lazer foi reentregue à população. 

“O problema é que eles [os políticos] chegam aqui, fazem toda uma festa, e depois abandonam o lugar de novo. A gente sofre muito com a insegurança por aqui. E também não adianta inaugurar uma obra dessas e não zelar dela, e isso é responsabilidade do povo, mas das autoridades também”, confessa.

O repórter perguntou se poderia tirar uma foto dele. Seu Neury respondeu que sim, e ainda disse que vai compartilhar a matéria com um amigo. "Eu falei pra ele passar aqui, mas ele não veio. Agora ele vai ver que eu saí no jornal e ele não", disse cheio de risadas.

Seu Neury é uma enciclopédia do Centro de Goiânia. O homem conhece todas as ruas e edifícios daquela região, e começou a perguntar ao repórter se ele conhecia um lugar ou outro da cidade. “Não?”, perguntava assustado. Recebeu a resposta de que, hoje em dia, muitas pessoas não decoram mais endereços porque usam GPS, que pode ser acessado até pelo celular. “Mas até no GPS vocês apanham”, respondeu. Para quem quiser conhecer histórias do Setor Central, ele atende “durante os dias de semana, na Rua Quatro, esquina com a Oito”.

Seu Neury
Seu Neury assistindo à defesa

Fonte: Secom/UFG

Categorias: Ciências Naturais destaque