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Universidade Federal de Goiás
Rafael Bittencourt

O ataque do COVID-19 às nossas certezas

Em 27/03/20 14:33. Atualizada em 27/03/20 15:01.

Repensando a ordem internacional liberal

Rafael Bittencourt Rodrigues Lopes*

Rafael Bittencourt

Depois da pandemia do COVID-19, o nosso mundo nunca mais será o mesmo. Talvez esta seja a única certeza que este pequeno texto trará. Se há algo que está sendo globalizado, é o isolamento social. Dentro do possível, pessoas do mundo inteiro estão escolhendo ou sendo forçadas a restringir seu contato com outras pessoas, em vistas de mitigar o impacto da pandemia causada pelo Coronavírus. Um movimento tamanho não passará despercebido pelo mercado financeiro, pela política doméstica dos países e, por que não, pela ordem internacional liberal.

Este termo, ordem internacional liberal, pode soar um pouco estranho para quem não está familiarizado com a literatura de Relações Internacionais. Em termos simples, a ordem internacional é a forma como se dão as relações de poder entre os países, principalmente aqueles mais influentes por terem maior poderio militar e/ou econômico. O país mais importante nessa ordem possui um papel fundamental de liderança. Esta liderança pode se dar de várias formas, mas entre elas podemos destacar a difusão de um modelo econômico e social específico, ou a responsabilidade de assumir custos para evitar conflitos que afetariam a estabilidade desta ordem. Eventualmente, pode ocorrer de mais de um país disputar ou compartilhar esta liderança. Se no período da Guerra Fria a ordem internacional era marcada pela disputa entre dois polos de poder (Estados Unidos x União Soviética), nos anos 1990 vivemos uma ordem unipolar, na qual os Estados Unidos difundiram seu modelo baseado na democracia, no capitalismo e no liberalismo.

Pois bem: o COVID-19 não é o responsável pela crise desta ordem liberal. Desde o início do século XXI ela tem sido testada de tempos em tempos. Na virada do século muitos países periféricos vivenciaram profundas crises econômicas, como Argentina e Equador, mesmo fazendo as reformas estruturais que vinham sendo recomendadas pelo Consenso de Washington. O ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 mostrou que a liderança dos Estados Unidos não era vista de maneira positiva em outras partes do globo. As imagens de New Orleans após o furacão Katrina em 2005 revelaram a miséria e a desigualdade presentes na mais próspera economia global. A crise econômica de 2008 mostrou que os ganhos obtidos no mercado são individuais, mas que os custos para salvar este sistema são coletivos. A Primavera Árabe mostrou que o clamor por democracia dos povos magrebinos e do Oriente Médio não se alinhavam ao discurso de promoção da democracia e mudança de regime promovidos pela custosa Guerra ao Terror, em países como Afeganistão e Iraque. Mais recentemente, a escolha de outsiders antiliberais e nacionalistas nos Estados Unidos e Reino Unido revelaram a insatisfação com a nova divisão internacional do trabalho que esvaziou cidades industriais destes países na medida em que condições mais baratas em termos de custo de mão-de-obra surgiam em países asiáticos, com destaque para a China. Assim, o COVID-19, ao paralisar parte considerável das principais economias do mundo, serve como mais um teste de resistência a este sistema. 

Há uma ironia na pandemia atual que alimenta teorias conspiratórias, que é o fato desta nova epidemia ter surgido justamente na China, principal potência em ascensão e principal desafiadora dos Estados Unidos. Tais conspirações baseadas na ideia de que a China projetou esta crise não se sustentam nas duras consequências que a própria economia chinesa está sentindo, com previsão de recessão pela primeira vez desde 1976. Além disso, artigo recente publicado na Nature por Kristian G. Andersen, Andrew Rambaut , W. Ian Lipkin, Edward C. Holmes  e Robert F. Garry deixa claro que é improvável que uma manipulação em laboratório tenha criado este vírus. Entretanto, a realidade não impede que Donald Trump siga usando o termo chinese virus (vírus chinês) para se referir ao Novo Coronavírus, explorando a dimensão geopolítica do evento que fez com que este vírus seja agora um vírus globalizado. Ainda que o presidente dos Estados Unidos busque atrelar à China uma imagem de culpa, tal movimento não é capaz de retirar o elefante da sala: o que pode estar sofrendo seu teste derradeiro nesse momento histórico é a capacidade desta ordem internacional liberal de entregar bens públicos globais. Espera-se que uma ordem eficiente em um momento como este consiga difundir boas práticas para as políticas nacionais de saúde dos países afetados; que consiga trazer investimentos às economias mais ameaçadas; que pressione os governos que subestimam o potencial destrutivo do vírus a terem ações mais eficazes; principalmente, que proteja as vidas, em particular das pessoas em maior situação de fragilidade social, como migrantes, moradores em situação de rua, pessoas em extrema pobreza, moradores de aglomerados, desempregados e desamparados, dentre outros. 

Depois da pandemia do COVID-19, o nosso mundo nunca mais será o mesmo. Difícil ainda é responder qual o rumo, se será no sentido de fortalecimento desta ordem liderada pelos Estados Unidos ou se abrirá espaço para uma mudança profunda no sistema internacional, a ser liderado muito provavelmente a partir de uma competição entre Estados Unidos e China. Mais do que nunca, observar as práticas internacionais destes dois países nesta crise é fundamental para entender os rumos políticos que o mundo irá tomar.

 

Rafael Bittencourt é professor substituto na Universidade Federal de Goiás e doutorando em Relações Internacionais na PUC Minas. Sua agenda de pesquisa tem como foco o estudo de abordagens críticas ao Desenvolvimento no Sul Global.

O Jornal UFG não endossa as opiniões dos artigos, de inteira responsabilidade de seus autores.

Fonte: Secom UFG

Categorias: artigo FCS