Ecologia, Epidemiologia e o valor da Ciência na pandemia da COVID-19
Professor apresenta a importância do estudo acadêmico para correta interpretação do crescimento da pandemia
José Alexandre Felizola Diniz Filho*
* Versão completa do artigo - confira a íntegra
Desde o início da pandemia, e em especial do início das medidas de distanciamento e isolamento social, estamos vendo que cada vez mais colegas da área de Ecologia passaram a participar de discussões sobre a expansão da pandemia, em diferentes graus. Muitas informações começam a circular sobre a expansão da doença e muitos estão utilizando seus conhecimentos de estatística e computação na análise de padrões e construção de modelos para sistemas complexos, tentando entender o que está acontecendo.
Os modelos epidemiológicos básicos partem do mesmo princípio, mas a ideia é que eles estão avaliando não o crescimento da população (humana) em si, mas de fato a dinâmica de “compartimentos” dessa população, começando com os indivíduos que vão se infectando. No caso da COVID-19 com a qual estamos lidando, por exemplo, à medida que o vírus se espalha o número de pessoas infectadas aumenta e algumas delas apresentam sintomas e eventualmente algumas morrem. O parâmetro mais falado é o chamado R0, que é o número médio de novas pessoas que cada pessoa infectada é capaz de contaminar, em condições "ideais" de transmissão. Mas, por outro lado, parte da população se recupera e se torna imune, de modo que à medida que a epidemia aumenta e mais e mais pessoas vão ficando doentes, o número total de pessoas que podem ser infectadas vai diminuindo. Isso cria o efeito logístico e, de fato, chega a um momento que há cada vez menos pessoas podem se contaminadas. Desse modo, a epidemia começa a diminuir rapidamente e tende a desaparecer. Essa é a ideia geral dos chamados modelos de compartimento da classe "SIR" (de Suscetíveis, Infectados e Recuperados) que tem sido tão usados para mostrar o impacto das medidas de isolamento social em termos de “achatar” a curva epidêmica. Esse achatamento ocorre porque, com um maior isolamento e distanciamento social, o R0 tende a ser menor, pois o contágio é menor. Assim, a epidemia avança mais devagar, dando mais tempo para que os sistemas de saúde consiga se organizar e ser capaz de receber os pacientes doentes da melhor forma possível.
Considerando esse cenário e a partir de seu conhecimento básico em Ecologia de Populações, certamente muitos ecólogos podem auxiliar, de diferentes formas, no combate a uma epidemia e ajudar os profissionais da saúde, gestores e tomadores de decisão em momentos de crise. Há com certeza muitos ecólogos e biólogos trabalhando “emergencialmente” nessa questão. Na verdade, pensando em um contexto histórico, esse interesse dos ecólogos por epidemiologia e esse forte potencial de integração que estamos vendo aqui não é algo recente.
Precisamos, portanto, conversar muito com os colegas da área médica e de saúde, os epidemiologistas e infectologistas, bem como outros profissionais da área de saúde, que terão uma compreensão muito melhor do fenômeno “em si”. Eles entendem melhor o que significam os diferentes compartimentos e em que situações as pessoas são “transferidas” entre eles, por exemplo, o que leva uma pessoa à hospitalização, ou em que condições a doença se agrava e o paciente passa a necessitar de uma UTI.
Isso pode ser certamente colocado em um contexto mais amplo e há diversas evidências de que a pandemia está rapidamente mudando a maneira como fazemos ciência. Durante anos temos discutido, principalmente no Brasil, questões sobre colaborações entre diferentes área da Ciência, em termos de multi, inter e transdisciplinaridade. Apesar da importância potencial, sempre achei que muitas dessas discussões pareciam distantes da realidade e de implementação muito difícil, principalmente em função da estrutura social da academia.
Isso também nos leva a outro ponto importante, pois não adianta construirmos os modelos ou fazermos análises estatísticas sofisticadas se isso não for de alguma forma útil para os tomadores de decisão nos órgãos governamentais. A interação entre a academia e os órgãos públicos envolvidos nessa questão é bastante complexa e passa por uma série de problemas. Por um lado, é bem possível que os órgãos não se interessem pelas análises realizadas porque os gestores podem não compreender bem como elas funcionam, ou por não confiarem nos parâmetros utilizados pelos pesquisadores. Por outro lado, isso sugere claramente que esse conhecimento científico, para ser aplicado, precisa ser construído coletivamente entre os pesquisadores e as pessoas que vão, em um segundo momento, utilizar essa informação para tomar decisões.
Essa discussão sobre a colaboração entre os pesquisadores e os gestores ou tomadores de decisão nos leva ainda a um próximo nível de necessidade de integração, pois não basta pensarmos na saúde pública e nas medidas de isolamento e distanciamento, é preciso avaliar todo um cenário socioeconômico e político nas decisões Governamentais (a discussão não é tão simples e trivial quanto tem sido feita, em termos de “escolher” entre “vidas e economia”). Mas essa questão de tomadas de decisão sobre cenários complexos e com alto grau de incerteza é um outro assunto, muito complicado por si só.
* Professor titular do Departamento de Ecologia da Universidade Federal de Goiás
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