O outro lado da moeda: que lições em tempos de pandemia?
Professora discute as diferentes perspectivas do ensino-aprendizagem a partir da nova realidade após a pandemia
*Maria Zenaide Alves
Iniciamos este ano letivo com as expectativas de sempre, recebendo estudantes, da graduação e pós-graduação de diversas regiões. A vida parecia seguir seu curso. Notícias nos chegavam de uma pequena cidade chinesa, Wuhan, onde um vírus altamente contagioso se alastrava a uma velocidade pouco antes vista. Mas quem se preocupava, afinal, as notícias era que a infecção se dava por contato direto, mas estamos há mais de 17 mil quilômetros desta cidade. E assim fomos tocando a vida, sem nos dar conta de que a globalização é um fenômeno que não escolhe fatos ou sujeitos. O mundo está conectado, para o bem e para o mal. E, neste caso, sentimos os efeitos dessa configuração, permeada por processos que desconhecem fronteiras. Mesmo cientistas experientes não foram capazes de alertar para os riscos, como o médico Dráuzio Varela que, em janeiro de 2020 acreditava que o Corona Vírus não tinha o potencial de contágio do vírus da Gripe Espanhola no século passado, o que reviu pouco tempo depois. Provavelmente ele falava das características dos dois vírus, mas não considerou o contexto em que as duas pestes se instalaram no nosso planeta.
Lição número um que o novo Corona Vírus nos ensina: não se trata apenas de uma questão epidemiológica. O enfrentamento ao vírus demanda envolvimento de profissionais de todas as áreas do conhecimento. É importante conhecer comportamentos sociais e culturais de povos de diferentes partes do planeta por onde o vírus circula; é fundamental compreender como o vírus tem nos afetado, não apenas do ponto de vista econômico ou da saúde física e mental, mas nas próprias relações interpessoais. É necessário que se elaborem modelos matemáticos que ajudem a visualizar possíveis cenários que expliquem o comportamento do vírus ao redor do planeta. Em síntese: mais do que nunca é inadiável pensarmos o mundo em uma perspectiva interdisciplinar, como nos provocou Fritjof Capra no final do século passado, além de consideramos outros tempos e espaços de formação além do tempo escolar dentro da sala de aula.
Lição número dois: se tivermos humildade suficiente esta experiência provocará reflexões profundas sobre o processo de ensino e aprendizagem na educação pós-pandemia. Quem ensina quem, afinal? Que saberes são importantes e para que eles são importantes? Qual o papel efetivo da escola e da família na educação dos filhos? Uma aluna me relatou o orgulho em saber que o filho, de quem a escola sempre reclamou das notas baixas e do pouco interesse pelos estudos, tem sido a pessoa de referência na sala de aula remota quando a professora tem uma dificuldade. Diz que a professora passou a demonstrar admiração pelo garoto ao perceber algo até então desconhecido pela escola, que o avalia pelo que espera que ele saiba, pouco se importando com o que ele sabe de fato. Paulo Freire nos provoca a pensar na educação como um processo dialógico, de narrativas plurais, mediatizado pelo mundo, pela realidade em que vivemos e pelas subjetividades e materialidade e que nos cerca.
A lição número três que me ocorre neste momento, e certamente não a última, diz respeito ao escancaramento de desigualdades que podem estar passando desapercebidas por educadores e gestores de todos os níveis de ensino: as condições por vezes precárias em que tanto docentes como discentes desempenham seus papeis, sobretudo referente às tarefas extra-escola/universidade. Sim, os papeis de aluno e professor não se limitam aos muros da instituição. Será que nos perguntamos que horário as crianças e jovens (e os professores) tem disponíveis em casa para realizar as tarefas escolares? Se dispõem de um lugar reservado para tal? Quantas pessoas dividem o mesmo local de moradia? Se dispõem das ferramentas adequadas para se dedicar aos estudos? Hoje em dia falamos tanto do potencial das novas tecnologias aplicadas à educação, mas será que nos damos conta de como essas ferramentas ainda são um privilégio de poucos? Será mesmo que o fato de o jovem ter um celular com acesso à internet através do uso de dados móveis limitados é suficiente para responder às nossas expectativas quando recomendamos atividades de pesquisas, enviamos tarefas pelo SIGAA, indicamos um filme para ser visto em casa, pedimos para fazer uma visita ao MoMA? Será que nos damos conta do quanto é desconfortável (e pouco eficaz) ler um texto científico na pequena tela de um celular (sim, muitos estudantes não tem computador nem dispõem de recursos financeiros para imprimir os inúmeros textos que indicamos para leitura).
Ainda não sabemos quando nem como isso tudo terminará. Não sabemos se já estamos no olho do furacão nem quando poderemos retomar a “normalidade” da vida acadêmica. Sequer sabemos o que exatamente é essa tal normalidade, mas uma coisa é possível dizer que sabemos: a vida não parou, como pode parecer para alguns e, apesar de toda dor e sofrimento que nos afetam neste momento, deveríamos nos desafiar a pensar o outro lado da moeda, fazendo deste período tão difícil um momento de reflexão das nossas práticas educativas. É fundamental repensarmos os currículos, fragmentados, desconectados e descontextualizados aos quais estamos acostumados. É urgente repensarmos a relação com a comunidade e problematizarmos juntos os meandros desta relação. É para ontem a tarefa de professores e gestores educacionais conhecerem minimamente as condições em que estamos vivendo as experiências docente e discente depois que vamos para as nossas casas. Quem sabe, buscando outros modelos e tempos de escolarização que dialoguem com a realidade fora dos muros da instituição, como nos ensina a pedagogia da alternância.
*Pedagoga e professora da Universidade Federal de Catalão
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Fonte: Secom