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Universidade Federal de Goiás
André Cançado

PANORAMA

Em 15/06/20 14:24. Atualizada em 16/06/20 14:42.

Vidas em estatísticas: Como as mortes de George Floyd e João Pedro revelam o genocídio negro do século XXI

André Luiz Cançado Motta*

(Publicado originalmente no Lemonde Diplomatique)

André Cançado

A morte de George Floyd no dia 25 de maio de 2020 gerou comoção entre negros e brancos nos Estados Unidos. Segundo relatos, o cidadão norte-americano de 46 anos que trabalhava de segurança em um restaurante de Minneapolis teria sido abordado por policiais após uma denúncia de que estaria usando documentos falsos. Na ocasião, o uso de força excessiva por parte dos agentes da lei foi gravado por passeantes, que por minutos ouviram e viram os apelos de George de que não conseguia respirar, e que sentia dores em várias partes do corpo. Com os policiais forçando sua prisão a todo custo, mesmo sem aparentemente estar resistindo, o homem não resistiu às agressões e horas depois, levado para um hospital próximo ao local da abordagem, morreu ali mesmo.

No mesmo dia, como uma tragédia anunciada, uma mulher que andava pelo Central Park foi filmada pedindo para um homem negro, Christian Cooper, se afastar dela, chamando a polícia para que a protegesse da ameaça, que não existia, suspeitando que o homem oferecia perigo a sua segurança.

Pouco mais de uma semana antes, dia 18 de maio, agora no Brasil, João Pedro Matos, de apenas 14 anos, foi morto após sua casa ser fuzilada com mais de 70 tiros, decorrente de uma trágica troca de tiros entre a polícia militar do Rio de Janeiro e traficantes no complexo do Salgueiro. O menino, que estava em sua própria casa, apelou para os pais ajuda via aplicativo de mensagens, mas totalmente em vão: após ser baleado pelas costas, foi levado pelos policiais de helicóptero, sem nenhuma informação fornecida aos familiares, de São Gonçalo para a Lagoa Rodrigo de Freitas, a 40km de distância da sua casa, onde poucas horas após o ocorrido seria constatada sua morte.

O que esses relatos têm de comum? O absurdo da violência instrumentalizada pelas forças de segurança estatais contra a comunidade negra, e o racismo estrutural que ainda é uma variável que causa a morte e a exclusão de negros e negras pelos Estados Unidos, Brasil e mundo, demonstrada e comprovada por dados.


Estatísticas de mortes violentas e desemprego entre a população negra nos Estados Unidos e Brasil

A população negra norte americana é estimada em aproximadamente 33 milhões de pessoas, sendo proporcionalmente 14% do total de estadunidenses. No Brasil, são aproximadamente 10% da população, isso sem contar pardos.

Nos Estados Unidos, dados de 2018 da Bureau of Justice Statistics apontam que, embora o número de pessoas brancas mortas por crime violento seja maior, isso em razão de serem a maioria no país, a taxa percentual entre negros supera, desde 2014, a de brancos e hispânicos. No Brasil, o país com maior número de homicídios por ano no mundo, 65 mil apenas em 2017, chega na absurda marca de 179 por dia, dos quais 43,1 por 100 mil habitantes são apenas negros, o que representa 75,5% do número total.

O número de desemprego também chama atenção. O desemprego entre negros, em 2018, foi pelo menos o dobro do registrado entre brancos, segundo a Economic Policy Institute. No Brasil, de acordo com o IBGE, esse número chega a 64% dos desempregados.

O presente trágico que anuncia o futuro breve

Os desafios que seguem diante desse cenário é de como superar tamanha desigualdade. O racismo e a violência pela cor de pele estão longe de ser um fato apenas de Estados Unidos e Brasil. Os recentes acontecimentos comprovam que, ao menos nesses países, negros e negras marginalizados(as) do mercado de trabalho,são alvos fáceis para as políticas excludentes elaboradas por uma psicologia de guerra desproporcional entre os agentes de segurança pública. Ainda que nos Estados Unidos não se tenha o nível de desigualdade do Brasil, ambos praticam pelas suas vias institucionais uma política excludente e racista, continuamente justificada pela necessidade da garantia da lei e ordem que beneficia apenas aqueles que não vivem a violência no seu dia a dia, isto é, aqueles a quem o Estado cumpre sua função de garantir a segurança.

George Floyd, Christian Cooper e João Pedro Matos são três nomes para a lista infindável de mortos e vítimas de racismo no mundo. Mesmo após a abolição da escravatura, os centros decisórios de poder ainda enxergam a vida negra como descartável. Se nos séculos passados negros eram comercializados e mortos livremente com anuência dos Estados, atualmente são marginalizados e mortos aos poucos pelo mesmo, cada dia mais. Encontram inúmeras dificuldades na vida, entre um mar de impedimentos, que os constrangem a viver de maneira igual com brancos e outras etnias. E, ainda que lutem para sobreviver, mesmo que em suas próprias casas, caminhando no parque ou trabalhando de segurança, podem ser mortos por agentes da lei ou sofrer preconceito.

Assim, o que esperar do futuro? Apenas a luta justificável da sociedade civil e daqueles que se interessem pela causa, no intuito de que medidas sejam tomadas para preservar a vida negra, garantindo sua existência e permanência na sociedade com isonomia. Enquanto as comunidades não se revoltarem com o fuzilamento de uma criança de apenas 14 anos ou estrangulamento de um cidadão de 46 anos, será o mesmo que aceitar a nossa incapacidade de sermos humanos e cooperativos com a nossa própria existência. Não é possível falar de paz enquanto alguns vivem tragédias cotidianas, impostas por quem deveria os proteger. Não é possível não se revoltar e lutar para mudar as coisas. A luta que se seguirá diante da morte de George e João Pedro terá de ser ainda maior que a dor de suas perdas: ainda milhões podem ser as próximas vítimas para o caderno trágico da política de extermínio de negros nos Estados Unidos, Brasil e mundo.

*André Luiz Cançado Motta, graduado em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e mestrando em Política Internacional pela Faculdade de Ciências Sociais (FCS-UFG), é pesquisador e colaborador no Núcleo de Estudos Globais (NEG) e ex-pesquisador voluntário de iniciação científica do Projeto de Pesquisa de Iniciação Científica Voluntária (PIVIC) na área de Segurança Internacional e Política Internacional Contemporânea. Atualmente, trabalha na Assembleia Legislativa do Estado de Goiás como assessor parlamentar na coordenação do projeto Politizar UFG/ALEGO.

O Jornal UFG não endossa as opiniões dos artigos, de inteira responsabilidade de seus autores.

Categorias: colunistas