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Universidade Federal de Goiás
Tânia Rezende

Problemas de comunicação desmascaram diferenças sociais

Em 13/11/20 13:43. Atualizada em 17/11/20 13:46.

Professora Tânia Rezende da Faculdade de Letras analisa o que há por trás do ódio nas redes sociais e como a pandemia só agravou um quadro social pré-existente

Kharen Stecca

Mal-entendidos existem, mas não podem ser naturalizados e precisam ser entendidos em sua complexidade, de forma a desmascarar problemas sociais arraigados na sociedade. É assim que a professora Tânia Ferreira Rezende da Faculdade de Letras que estuda a Sociolinguística começa a descortinar o que há por trás dos discursos de ódio que têm sido cada vez mais escancarados com a internet, as redes sociais e, agora, a pandemia. Para ela, no Brasil esses conflitos são amostras da forma como nossa sociedade foi construída. Ela também avalia ser difícil mudar esse quadro: “Nem todas as pessoas engajadas têm formação e maturidade teórico-políticas suficientes para enfrentar os debates.”, avalia. Ela também acredita que sem uma séria e honesta promoção de letramento digital massificado fica muito difícil o sucesso de qualquer ação no combate às tramas da comunicação nas redes sociais. Confira abaixo a entrevista com a professora Tânia Rezende que estará presente na ação do Siass: com o tema “Língua que fere, língua que adoece” no dia 18/11 (quarta-feira), às 17h. No evento a professora vai falar sobre processos de subalternização histórica de grupos sociais através da linguagem e como podemos prevenir violência linguística e promover na comunicação o respeito às diversidades de raça, gênero e sexualidade. Confira a entrevista:

Tânia Rezende

Qual o efeito da violência na comunicação para a sociedade?


Tânia Rezende - Os efeitos para a sociedade são os mesmos de sempre, desde que a sociedade começou a entrar em contato com as diferenças interculturais, sob o signo da violência para a dominação: a construção da inimizade, com desentendimentos, conflitos de comunicação e de interação social. O que temos de entender é que o insulto e a “fofoca”, assim como seus efeitos, são antigos, vêm de rodas de amigos(as), das reuniões de famílias, das portas das igrejas, das quermesses, de todos os eventos sociais, requintados ou não. Foram potencializados com o rádio, depois com a televisão e, agora, mais ainda, com a internet. Cada vez que há democratização do uso da voz e da produção de informações, os donos do capital se reinventam e retomam o comando. Com as redes sociais, temos os robôs e a disseminação de fake news. Essa “política de inimizade” (Mbembe, 2011) leva à destruição moral e à morte. Em casos menos extremos, ocorrem adoecimentos progressivos, que também podem levar à morte.

Avalia que a pandemia piorou a comunicação entre as pessoas?

Tânia Rezende - A pandemia piorou a vida social, em todos os aspectos, porque estabeleceu uma norma de convívio social, nem sempre possível para muitas pessoas e muitos grupos, por diferentes razões. Para evitar o contágio pelo coronavírus, há a exigência vital do distanciamento físico entre as pessoas, a permanência em casa e com determinados hábitos de higiene. Essas regras limitam a mobilidade e o convívio social interpessoal. Para muitas pessoas e para muitos grupos sociais, são normas difíceis e até impossíveis de serem observadas e seguidas por falta de condições mínimas e básicas de sobrevivência. Essas pessoas ficam expostas a maior risco de contágio, de adoecimento e de morte. Para muitas pessoas que podem cumprir com as normas, em condições materiais ou inseguras ou mais confortáveis de sobrevivência, a convivência interpessoal está se mostrando insustentável. A OMS e o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do Brasil têm demonstrado preocupação com o aumento de denúncias de violência doméstica e familiar contra as mulheres desde o início da pandemia do coronavírus. Além de tudo isso, por conta do distanciamento físico, a pandemia estabeleceu um modo e um meio de comunicação, de interação social, de trabalho e prestação de serviço para uma grande parcela da população: o remoto. Uma nova modalidade de vida que se implementa, em meio a uma crise sanitária e a sérias crises políticas. Um novo modo do viver, a se aprender e a se adaptar, em estado de medo. Temos medo das pessoas, da proximidade com as pessoas, temos medo do que as pessoas representam, do que elas são e do que elas dizem. Temos medo de adoecer, de morrer. Temos medo do óbvio, que deixa de ser óbvio. Negamos a verdade. Todo esse afetamento é descarregado no meio virtual, nas redes sociais, por quem tem acesso e para quem este está sendo o principal meio de comunicação e de interação social. Por outro lado, há muitas pessoas que, ao contrário, estão fazendo das redes sociais um meio de compartilhamento de afeto para amenizar as dores e os sofrimentos, há muitas redes de solidariedade.


Há ações que podemos tomar para evitar as dificuldades na comunicação? Por exemplo, cuidados que podem ser adquiridos como hábitos?

Tânia Rezende - Sem uma séria e honesta promoção de letramento digital massificado fica muito difícil o sucesso de qualquer ação no combate às tramas da comunicação nas redes sociais. O que podemos fazer para minimizar é um trabalho vigoroso e sério de letramento digital e de conscientização a respeito dos danos que a comunicação violenta e os discursos de ódio causam nas pessoas atingidas, mostrando que os alvos são sempre os mesmos ao longo da história e que o objetivo é atingir a dignidade humana, é humilhar, inferiorizar e silenciar as pessoas. Ademais, é fundamental a responsabilização dos(as) agressores(as). Temos de ter consciência de que quando os insultos nas redes sociais têm o objetivo de incitar a violência coletiva contra um indivíduo ou um grupo o resultado pode ser desastroso e isso deve ser evitado com a constante responsabilização dos(as) atores e atrizes por tais manifestações de ódio. Podemos ainda ir adquirindo cotidianamente “o constante cuidado com o dizer”, em seus menores detalhes, como muito sabiamente nos ensina o intelectual A’uwẽ Jacinto Tsororawe. É ter sempre o cuidado de escolher as palavras, expressões e enunciados que não ferem a dignidade das pessoas, ter cuidado com a tonalidade discursiva do enunciado, que é diferente de tom ou timbre de voz e, ao ouvir ou ler um comentário, procurar pensar nas diferentes possibilidades de interpretação e não se fechar na interpretação única de um só frame de entendimento, afinal, vivemos em um país e em um mundo plurais. Não temos de ser monoglotas, porque o sistema-mundo foi projetado para que algumas pessoas sejam mono-. Agredir a dignidade de uma pessoa para lacrar nas redes pode resultar em alguns likes para quem lacra, um efeito passageiro, e em muito sofrimento para a vítima, um efeito duradouro. Não vale a pena.

E se o problema já ocorreu? O que fazer quando percebemos que incorremos em uma violência linguística?

Tânia Rezende - Em geral, a violência linguística acontece em relações sociais com algum tipo de assimetria de poder. A pessoa que violenta se sente superior e quer diminuir a outra pessoa, quer mostrar que é superior ou quer tirar dela algum poder, se ela tiver. Em outras palavras, quem violenta quer mostrar à pessoa violentada qual é o seu lugar no mundo. Nesse caso, pouco será feito. Não haverá reconhecimento de responsabilidade e não haverá reparação, como, por exemplo, um pedido de desculpa. Entretanto, a única forma de reparar é reconhecer a violência, assumir a responsabilidade pelo ato e que estamos todos(as) em processo de aprendizagem de como lidar uns(umas) com os(as) outros(as) em um mundo que se transforma tão rapidamente, e apresentar uma reparação. A pessoa violentada pode se sentir melhor, respeitada.


Por que as pessoas são tão violentas em suas comunicações na internet?

Tânia Rezende - O comportamento sociolinguístico é muito complexo, é arriscado determinar as razões que levam as pessoas a serem violentas em suas comunicações na internet. O que temos até o momento são hipóteses com base nos enunciados responsivos aos necroenunciados oficiais, ou seja, os comandos enunciativos do Estado. Circulam nas redes sociais postagens sobre o fato de a morte estar sendo naturalizada, o que demonstra falta de empatia. Os mesmos perfis, no nosso grupo de acompanhamento, há algum tempo, compartilhavam postagens enunciando que “bandido bom é bandido morto” e postagens similares. No contexto desta discussão, a morte dos grupos subalternizados pela colonização e pelo imperialismo, os corpos discriminados pela sociedade e os corpos rejeitados pelo capitalismo neoliberal, sempre foi naturalizada, a empatia e a compaixão sempre foram seletivas. O que ocorre é que esses sentimentos estão escancarados, aumentando a naturalização também do dizer sobre o assunto. Há uma autorização e uma legitimação da violência. As pessoas se sentem seguras, pois não correm o risco, ao serem violentas, de sofrerem um revide direto, elas podem violentar e sair, por exemplo, e não tem o risco de uma reação física. Além do mais, o ciberespaço é um “mar aberto, sem dono e sem lei”, onde tudo pode. O documentário “O dilema das redes”, da Netflix, faz sérios e importantes alertas nesse sentido, com relação à desinformação, à má informação, dentre outros problemas, e a predisposição para a violência. As redes sociais estimulam a violências, expondo postagens de atos violentos e discursos de ódio. A comunicação violenta e o discurso de ódio se tornaram produtos de alta demanda nas redes sociais, porque há esse interesse pela violência, que pode ser visto também no cinema. Se ser violento(a) é mais atrativo e põe o perfil em maior evidência, então, que assim seja. As pessoas com necessidade de visibilidade pagam o preço, lamentavelmente.


É comum termos problemas de comunicação mesmo quando ela é feita pessoalmente. Com as redes sociais isso tornou-se mais comum?

Tânia Rezende - As práticas de linguagem são práticas políticas prenhes de ideologias. Ao falar, expressamos nossas ideologias, tendo ou não consciência disso. Há, por outro lado, problemas de comunicação, como os desencontros de entendimento na interpretação dos enunciados, os mal-entendidos. Esses problemas são comuns, mas não podem ser naturalizados e nem justificar insultos.
Nas sociedades colonizadas, como o Brasil, grande parte dos desencontros sociointeracionais decorre da mentalidade construída historicamente sob as bases fundantes do capitalismo: colonialismo, escravagismo e patriarcalismo; e dos projetos de construção dos estados-nação e estados nacionais, ancorados nas ideologias sustentadoras do projeto de unidade nacional: monolinguismo, monoculturalismo, monoepistemicismo, monoteísmo. O atual modelo de capitalismo, o neoliberalismo, vem reconfigurando e acentuando essas ideologias.

O que quero dizer e mostrar, é que o Estado, responsável por proteger a dignidade humana e a vida de todas as pessoas, tem sido responsável pela manutenção das bases fundadoras e sustentadoras dos conflitos sociointeracionais. A “pessoa raivosa” não é raivosa individualmente nem por sua livre e individual decisão, mas não é, pelo menos nem sempre é, uma “pessoa doente” e, por isso, deve ser responsabilizada por seus atos.

Com relação ao papel das redes sociais nos conflitos de interação, é evidente que as mídias sociais potencializaram a comunicação violenta. Elas tornaram público e muito mais visível o que existe há séculos, tornando possível enxergar a complexidade do problema. É importante avaliar a questão em sua complexidade para não atribuir às redes sociais uma responsabilidade que é de quem administra e usa o ambiente virtual como canal de comunicação, de informação e de interação social, e como mercado.

Sempre houve assimetria profunda de poder no controle do acesso aos meios de comunicação de massa. Um grupo, que detinha o poder, falava e atingia outro(s) grupo(s), que não tinha(m) acesso com igualdade de direito aos meios de comunicação. Com a popularização da internet e, principalmente, dos aparelhos de celular, ainda que estejamos longe de uma difusão democrática e inclusiva, esse quadro foi mudando. O(s) grupo(s) atingido(s) começaram a reagir e a se defender, entrando nas narrativas, travando lutas sociodiscursivas e disputando os espaços de fala e tensionando os efeitos de verdade. Para isso, esses grupos silenciados pela negação do espaço de fala, e que antes pareciam silenciosos, passaram a travar verdadeiros embates nas redes sociais. Essa polifonia vem criando o que é entendido pelo poder constituído como problemas de comunicação e de interação. Ao mesmo tempo, esses grupos continuam sendo alvos da comunicação violenta e dos discursos de ódio, agora também nesse mesmo espaço onde foi construído seu lócus de enunciação.

Evidentemente, nos embates ocorrem extremos e imposturas, ferem-se a ética, por todos os grupos envolvidos. Nem todas as pessoas engajadas têm formação e maturidade teórico-políticas suficientes para enfrentar os debates. Perde-se, frequentemente, o limite entre liberdade de expressão, defesa de opinião, insultos e ofensas. Os insultos de agora são ainda a reverberação dos insultos do passado em direção aos mesmos alvos, pelos mesmos sentimentos de ódio, com o propósito de atacar a dignidade da pessoa insultada, inferiorizando-a, humilhando-a, silenciando-a.

Para ver a entrevista na íntegra acesse aqui.

Fonte: Secom UFG

Categorias: Entrevista FL SIASS Institucional