Painel do HC remete ao Cerrado, poesia e resistência
Obra de Eliane Chaud e Selma Parreira foi construída no hall de entrada do novo prédio do Hospital das Clínicas
Luciana Santal
Onde havia apenas a opacidade de uma parede de tijolos e cimento, vislumbrou-se a potencialidade da luz trazida pela arte. Em visita às obras do Hospital das Clínicas (HC) no segundo semestre de 2019, o reitor da Universidade Federal do Goiás (UFG), Edward Madureira, percebeu que o lado direito da sala de espera, que tem dez metros de largura e cinco de altura, carecia de uma função maior que a de servir de suporte para televisores informativos. Ela poderia ser local de acolhimento e contemplação. E decidiu pedir à Faculdade de Artes Visuais (FAV) que transformasse a sua ideia em arte. As professoras, artistas e pesquisadoras de poéticas visuais, Eliane Chaud e Selma Parreira, prontificaram-se a cumprir essa missão.
Selma conta que se dispôs à essa realização por vários motivos, entre eles, atender a uma solicitação do professor Edward Madureira, que teve esse olhar sensível para o espaço público, já que o pedido não fazia parte do projeto arquitetônico. Outra razão reside “na importância de se ter uma obra nesse lugar, onde as pessoas vão buscar um auxílio à saúde e estão em uma sala de espera, um lugar grande, quem sabe um devaneio, uma proposta artística? Faz bem para todo mundo”, defendeu. Com o desafio aceito, Eliane e Selma seguiram até o HC para conhecer as possibilidades do espaço e definir qual técnica seria mais coerente. Pensaram num material que fosse mais permanente, com qualidade e de fácil manutenção. Houve um diálogo com a Botânica, a Literatura e a Medicina, para que a abordagem fosse ampla, ao mesmo tempo em que representasse a localidade onde a obra está inserida.
O nome “Sertão são” carrega essa mensagem de trazer o Cerrado para um ambiente de saúde. Mas não uma ideia estereotipada dessa vegetação, com a representação de galhos retorcidos e folhas secas. O que se quis foi, por meio de uma estética original, levar o público a um jeito subjetivo de se perceber o Cerrado, aquele que há dentro de cada pessoa. As pesquisadoras também viram, nesse bioma, uma identidade “relacionada ao entendimento de sertão, onde os sujeitos se apresentam também com características próximas à paisagem do Cerrado, ou seja, com a força física de resistir, o que nos levou a analogias em relação ao espaço/hospital, ao local onde se busca energia e saúde”. De acordo com texto de autoria das duas professoras, “Uma janela para o Cerrado: natureza e arte”, publicado na revista Botânica Pública, a pesquisa em arte para a construção do painel se debruçou sobre vários conceitos, estudos e reflexões.
Foram oito meses de trabalho. “Todo o processo de pensar o conceito, da elaboração da imagem, que elementos viriam, tudo foi feito a quatro mãos. Isso foi possível graças à experiência acadêmica de coordenar ateliês juntas, Eliane trabalhando no tri e eu no bidimensional, há mais de 20 anos”, relembrou Selma. A escala se mostrou o primeiro desafio apontado pela professora, pois nem ela nem Eliane tinham experiência com uma tela tão grande. Definiram então que o trabalho seria realizado em azulejaria, mas sem a intenção de preencher com cores todos os espaços. Elas pensaram um Cerrado que convidasse o observador a adentrar no plano de instalação da obra. Ele é formado de caminhos, há uma vegetação que remete ao Cerrado, com plantas que se relacionam com a medicina popular; há uma distribuição das peças que formam uma ampla paisagem, com “percursos possíveis de se fazer com o olhar em devaneio”, explica Selma.
O ponto de partida para a criatividade veio por meio de uma pesquisa botânica em fotografias. Acrescentou-se aí as referências de Eliane adquiridas em uma visita à Chapada dos Veadeiros e os conhecimentos de Selma extraídos em sua cidade natal, Buriti Alegre, “praticamente no sertão. Os buritizais estão no meu DNA, a minha família tem impregnada essa paisagem”. Então, foram feitos os desenhos, com nove módulos, inspirados na “arnica” (Lychnophora) e na canela-de-ema (Vellozia), por aproximação estética, porque são duas plantas exóticas. Selma, ao visitar Serra Dourada, ficou impressionada ao se deparar, no topo, com uma areia muito branca que abrigava moitas pretas de arnica. Na escolha das plantas para os desenhos, Selma trouxe a imagem que tanto lhe marcou, pois “graficamente, o resultado também ficaria muito legal”. O Parque Estadual Serra Dourada está localizado nos municípios de Cidade de Goiás, Mossâmedes, Buriti de Goiás, distante 131 quilômetros de Goiânia (GO).
Para a escolha das cores, o branco, o ocre e o preto, levou-se em conta alguns aspectos, entre eles, a representação subjetiva do Cerrado, por meio da terra e da queimada; “o branco permite esse caminhar dos olhos na obra, esses vários percursos, uma espécie de perspectiva de penetração nesses trieiros; menos cores também trazem harmonia, sutileza, delicadeza. Não é uma obra de impacto imediato”, afirma Selma. Após concluída a fase de elaboração dos módulos, as duas artistas contaram com a ajuda da estudante da FAV, Karina André, para digitalizar os desenhos e experimentar todas as possibilidades de construção da paisagem. Para a transferência da imagem aos azulejos, foi criada uma chamada pública, em que foi escolhido o egresso da FAV, Rogério Milani, hoje artista visual e profissional da técnica de azulejaria.
Para Eliane, o trabalho “foi muito envolvente, desde o início, fazer essa obra em espaço público, e pensar nas pessoas que poderão usufruir”. Antes de definir a imagem, elas se debruçaram sobre o local de instalação da obra, sobre o que é estar em uma sala de espera de hospital. O pensamento era o de trazer uma paisagem não estereotipada, mas sim subjetiva, peculiar para as duas, de como elas poderiam traduzir a experiência de cada uma com o Cerrado e levar para o HC. No local, é possível perceber a integração do participante com a obra promovida pela dispersão do olhar, efeito pensado pelas professoras para que o painel fosse absorvido aos poucos por quem o contemplasse.
A professora Eliane atribuiu à dedicação e ao envolvimento da equipe o sucesso no alcance do objetivo em oito meses. “Sempre falo para os meus alunos que a imersão é fundamental para se chegar a um resultado que nos deixe satisfeitos”. A construção do painel foi concluída em meados de março de 2020, quando a universidade acompanhou o processo de distanciamento social provocado pela pandemia de COVID-19. Assim, a inauguração do painel foi adiada para 14 de dezembro, como uma das comemorações do aniversário de 60 anos da UFG. Eliane reforçou a fala inicial de Selma: “foi muito importante a visão do Edward de possibilitar a arte acessível às pessoas, não restringir a uma sala de exposição. O painel pode agradar ou não, mas o olhar da pessoa vai andar por ele”.
As informações vistas até aqui podem ser conferidas na 1ª edição da Websérie “Mulheres nas Artes”, exibida no Programa Lives #CulturaNaUFG, disponível no Canal UFG Oficial . Por meio da live realizada no dia 29 de outubro, com mediação de Maria Tereza Gomes, as artistas dividiram com os participantes os passos de construção do painel. Vera Wilhelm estava presente e comentou que “a composição e a distribuição dos elementos, além das cores escolhidas permitiram que a obra, embora de grandes dimensões, mantivesse uma leveza no espaço arquitetônico. Parabéns às artistas!”. O professor Bráulio Vinícius Ferreira participou também e lembrou que houve um trabalho coordenado entre a Secretaria de Infraestrutura da UFG (Seinfra), a construtora Engemil e as artistas para que o espaço fosse adequado para abrigar a obra, “foram alterações significativas para que o painel tivesse as dimensões finais”. Inicialmente, a obra seria aplicada horizontalmente para dividir a parede com equipamentos eletrônicos. Após diálogos entre o grupo, as artistas conquistaram a tela inteira.
Antes de finalizar a live, a professora Eliane agradeceu à Reitoria pelo convite para realizar a obra de arte, e também à diretoria do HC e à construtora Engemil, pelo acolhimento durante o tempo em que elas estiveram lá. “A partir desse momento, o painel é nosso, da comunidade. Ele é para estabelecer diálogos com outras disciplinas da comunidade”, explicou Selma, antes de se despedir dos presentes. De acordo com a professora, alunos de Arquitetura vão ter aula naquele espaço para discutirem a importância de agregar a arte aos projetos arquitetônicos em áreas públicas. A Faculdade de Letras também mostrou interesse em trazer para o lugar um encontro para falar sobre os escritores que tratam da temática do Cerrado e do Sertão. E ela aproveitou a oportunidade para fazer um convite a outros docentes e pesquisadores que tenham interesse em construir esse pensamento do “Sertão são”.
O reitor da UFG, Edward Madureira, contou que, em uma conversa com o diretor da FAV em 2019, disse que gostaria que, naquela parede do hall de entrada do HC, tivesse uma obra assinada com o DNA da UFG. O pedido então foi aceito por Eliane e Selma e resultou em um excelente trabalho. “Eu entendo o Painel como uma marca para reforçar a arte e a cultura goiana e da UFG. As duas artistas foram muito felizes em eleger elementos de plantas medicinais do Cerrado para constar naquele painel. Realmente ficou extraordinário, todas as pessoas que passam por ali, a primeira coisa que olham é para aquele painel. Mesmo sem perceber o significado da “canela-de-ema” ou da “arnica”, que são as espécies representadas ali, o painel impacta as pessoas de maneira muito profunda. Essa foi uma decisão da reitoria, que a exemplo de outras universidades, de outros locais do país que têm obras de arte de seus artistas plásticos, quis fazer uma provocação para que a nossa Faculdade de Artes Visuais nos brindasse com esse presente”, enfatizou.
Fonte: Secom UFG
Categorias: HC fav destaque Institucional