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Universidade Federal de Goiás
Criança

Pandemia gera interrupção das terapias de crianças com Zika vírus

Em 12/04/21 12:58. Atualizada em 12/04/21 13:28.

Mães começam a organizar lives com profissionais. Sobrecarga materna é relatada por pesquisadoras em evento da UFG

Rafaela Ferreira

Discutir sobre a produção da Ciência, a epidemia do Zika e a pandemia do coronavírus foi o objetivo da palestra “Quando duas epidemias se encontram: repercussões do covid-19 no cuidado e cotidiano de crianças com Síndrome Congênita do Vírus Zika”, realizada na última sexta-feira (09/04). O Coletivo de Antropologia das Resistências e Ontologias Ambientais - o Ateliê Caroá, da UFG, convidou a discente Júlia Garcia e a docente Soraya Fleischer, ambas da Universidade de Brasília (UnB), para debater sobre a questão das crianças em tratamento devido ao vírus Zika que foram atravessadas pela pandemia da covid-19. De acordo com as pesquisadoras, o impacto é observado pela interrupção das terapias e a sobrecarga na maternagem.

Pandemia e zika

Através do Youtube do núcleo de pesquisa, o evento foi realizado e continua salvo e disponível no canal do Ateliê Caroá. Com o apoio da Faculdade de Ciências Sociais (FCS/UFG) e o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), a palestra foi mediada por Suzane de Alencar, coordenadora do Caroá. A palestra começou com a fala de Júlia Vilela, graduada em Publicidade e Propaganda e menstrada do PPGAS/UnB. 

A pesquisa realizada pela docente Soraya Resende e as estudantes do programa de pós-graduação da UnB gerou diversas outras produções. Intitulado: “Síndrome Congênita do Vírus Zika em Recife: Uma antropologia dos impostos maternos, científicos e políticos", o estudo foi realizado desde 2016 ao ano de 2019 de forma coletiva. Entre relatos das 15 famílias atravessadas pelo vírus Zika e os diários de campo das estudantes do PPGAS/UnB, a pesquisa não parou em 2019, como explicou Júlia Garcia. 

Em 2020, foi produzido o livro “Micro: Contribuições da Antropologia” e, durante a produção da obra, a pandemia do coronavírus atingiu a pesquisa da docente e discentes. “Assim que eu estava finalizando o capítulo sobre a inserção das crianças nas escolas, a gente foi surpreendido pela pandemia da covid-19. E, esse encontro entre essas duas epidemias, motivou uma nova pesquisa, que dá continuidade ao contato com essas mulheres nesse novo cenário, que é a pesquisa que dá nome ao título da nossa apresentação”, relatou Júlia.

Epidemia atravessada pela pandemia

Apesar de não ter surgido no Brasil, foi aqui que o vírus Zika se popularizou. Em 2015 a epidemia da síndrome congênita começa a afetar diversas pessoas, mas a estudante destaca um grupo em especial: “O vírus atingiu principalmente as mulheres negras, pobres, residentes da periferia do sertão do nordeste brasileiro, que foi a região mais afetada pela síndrome”, disse. Com aproximadamente quatro mil crianças nascidas com a síndrome, 400 foram em Pernambuco, região estudada por elas, lembrou Júlia. A Organização Mundial de Saúde (OMS) configura o Zika vírus como uma epidemia pela transmissão vertical, ou seja, de mãe para filho.

Diante disso, Júlia Garcia fala como a interrupção das terapias afetou a vida dessas crianças, uma vez que, com a pausa no tratamento, algumas das crianças começaram a apresentar a volta dos quadros de quando não faziam o acompanhamento. “Aparentemente, o que era considerado um serviço vital para essas crianças, não foi considerado essencial para o estado”, apontou a estudante. Com a paralisação, Júlia conta que as próprias mães começaram a organizar lives junto com as profissionais para não ficarem sem o acompanhamento.

Outro ponto apresentado pela mestranda foi a reconfiguração da maternagem das mães de micro durante a pandemia. Com uma dupla jornada de trabalho, muitas vezes até tripla, as mães se desdobram entre os filhos, a casa, trabalhos e agora como terapeutas, informou Júlia. “Essas mulheres têm relatado uma rotina de cansaço extremo, de uma piora no quadro de depressão, síndrome do pânico e ansiedade, sintomas que surgiram com a epidemia do Zika e se intensificaram com a pandemia de covid”, contou ela.

A falta de subsídios do governo estadual é mais uma questão que foi relatada durante a apresentação. Com nenhuma rede de apoio psicológico, muitas mães apresentam piora no quadro psicológico e, além disso, Júlia conta que muitas dessas mulheres relataram uma falta de auxílio financeiro do estado durante essa crise sanitária. “Uma mãe chegou a me falar uma frase muito forte que se a filha dela não morrer de covid, ela morre de fome”, disse a discente.

Ciência do Zika

A antropóloga e pesquisadora, Soraya Fleischer, relatou sobre as diversas pessoas que foram invisibilizadas na produção das ciências do Zika. Os cientistas locais, que muitas vezes, se dividiam em ser os médicos, as acompanhantes e terapeutas, mas também pesquisadores/pesquisadoras foram apontados como um grupo invisibilizado. Além deles, Soraya também fala das famílias como produtores de ciências e não apenas objetos de pesquisa. “Ainda falta a gente pensar nas famílias atingidas pela epidemia, como participar diretamente da própria produção científica do Zika”, relatou a pesquisadora.

Além disso, a separação dos indivíduos é algo que foi apontado nas observações da docente. Muitas vezes separam a casa dos pacientes da clínica, a mãe da especialista, o objeto observado do observador. Soraya conta que, apesar dessa dicotomia que muitos pesquisadores criaram, durante sua pesquisa muitas mães relataram uma sensação de respeitabilidade pela Ciência, por isso colocaram suas narrativas para jogo e respondiam sempre as perguntas, mesmo que repetidamente e, em momentos, invasivas.

Diante disso, a pesquisadora debateu sobre três eixos que foram notados ao longo da pesquisa e relatos das interlocutoras. A primeira é que muitos dos profissionais de saúde estabeleciam um “prazo de validade” para muitas dessas crianças da síndrome congênita, ou seja, ao nascerem era relatado aos responsáveis que elas não sobreviveriam ou só iriam até certa idade. “Muitas vezes era dito que uma criança não sobreviveria, e se ela sobrevivesse ela vegetaria inerte em cima da cama. Porém, se não vegetasse, não duraria muito tempo. A maior parte dessas crianças estão completando 6 anos de idade atualmente”, relatou Soraya.

A professora destacou a importância de, dentro da produção da Ciência, valorizar os interlocutores, pois eles mostram um problema na conduta ética. “Essas não são queixas frívolas. Elas comunicam um desnivelamento grande na relação dessas famílias com a Ciência. Se elas ajudaram tanto, por que não foram ajudadas de volta?”, disse. Além disso, a antropóloga destaca o valor de uma Ciência mais crítica. “Em tempos tão sombrios vividos pela Ciência e pelas cientistas nesse país, eu preciso reforçar que levantar espelhos críticos na Ciência não é o mesmo que negar a Ciência. Como muitas dessas famílias no Recife, eu também sou uma entusiasta da Ciência, mas não sou entusiasta de qualquer Ciência”, afirmou Soraya Fleischer.

Fonte: Secom-UFG

Categorias: Saúde FCS