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Universidade Federal de Goiás
PORQUE O ESTADO IMPORTA

PORQUE O ESTADO IMPORTA

Em 15/06/21 08:50. Atualizada em 15/06/21 10:02.

Por que os alunos e suas cidades não estão no remoto atlas do professor Khan?

Tadeu Alencar Arrais*

... é o desesperado momento em que se descobre que este império, que nos parecia a soma de todas as maravilhas, é um esfacelo sem fim e sem forma, que a sua corrupção é gangrenosa demais para ser remediada pelo nosso cetro, que o triunfo sobre os soberanos adversários nos fez herdeiros de suas prolongadas ruínas.

Italo Calvino, Cidades Invisíveis, p. 9.

As cidades que Marco Polo descreve para Kublai Khan são, mais do que invisíveis, remotas. Cidades comunicadas a partir de discursos, gestos, imagens. O Imperador dos Tártaros, a cada pausa, interroga, duvida, acusa Marco Polo. Como pode, tais cidades romperem o silêncio, uma vez que não estão representadas no Grande Atlas do Império?

Imagino, como professor, que o silêncio dos alunos corresponda, pontualmente, ao silêncio dos povos que habitavam, ao tempo do cruel Khan, as vastas planícies da Mongólia. Reclamo, protocolarmente, das câmeras e dos microfones silenciados.  Interpreto o silêncio, no entanto, de maneira peculiar.  Os alunos estão, certamente, sincronizados nas centenas de slides que preenchem, de erudição, desktops, notebooks, celulares. Metade dos slides em inglês, afinal, para um curso de humanidades, só o que há de melhor na literatura. Ofereço, além de textos de vanguarda, pronomes possessivos, preferencialmente, na primeira pessoa. Meu lattes, meu artigo, minha bolsa de produtividade, minhas viagens internacionais, meu projeto financiado, provocariam constrangimento, diante de Kublai, ao jovem mercador veneziano.

Do outro lado do monitor, no entanto, a inercia predomina. Ocorre que Kublai nunca preocupou-se, até a chegada de Marco Polo, com os pormenores do Império. Essa é uma prerrogativa reservada, apenas, para os conquistados. Espelho Khan. A inércia, imagino, é protetiva. A cidade remota constrange. Sussurram, os alunos, que meus modelos teóricos sucumbiriam ao mínimo contato com a realidade. Aceito o desafio. Abram tudo! Cidade branca. Demão de cal. Negra, porque periférica. Claustrofóbica, porque densa. O PVC simula conforto térmico. Do quarto, vê-se a beliche. Salgadinhos, processados, na mesa. Catarata, presbiopia, hipermetropia.   A internet, cedida pelo vizinho. Na cozinha, alumínio amontoado. Sons, ruídos, vazam pelas frestas das janelas. De noite, o breu da rua e o alarme canino. De manhã, a vizinha diante do portão pedindo açúcar. Veloz, porque aprendida da motocicleta. Trêmula, porque repreendida no shopping. Mães amamentando, crianças suplicando carinho. Homens impacientes! Da aldeia, poeira. Goteiras, rugas, estafa, pálpebras flácidas, olhos secos. Permaneço inflexível, irredutível diante da inflação de sons e imagens que tentam, mas não conseguem, dobrar o raciocínio retilíneo.

Minha didática e meus instrumentos analíticos são assentados na minha objetividade e na minha indiferença. A conjuntura política, econômica e sanitária não polui o método. Isso se chama cientificidade! Pouca coisa mudou, afinal, com a pandemia. Todos, francamente, sabemos. A moradia não influencia na aprendizagem. Eles já moravam lá... O deslocamento para a universidade jamais interferiu no desempenho acadêmico! E se interferiu, pronto, não interfere mais... Estão em casa. O álibi para o atraso sumiu. A história da periferia fica na periferia, assim como o suor e os assédios permanecem grudados nas barras de alumínio do 268. Até incorporei, em uma espécie de concessão, depois de uma dessas palestras enfadonhas, estratégias metodológicas inovadoras. Aumentei a fonte das letras e mudei a cor dos slides. Criei métricas de produtividade síncronas, inflacionei as atividades assíncronas e investi em metodologias panópticas, afinal, no conforto privado, qualquer estímulo poderá fazer a diferença entre o sucesso e a derrota. Os alunos, no futuro, farão homenagens.  Também estou cansado, muito embora nutrido, isolado, empregado e, principalmente, remunerado. Preciso de uma praia! Vejam só. Engordei! Confesso esse pecado, em tom jocoso, em conversas corporativas. Ainda bem que esse fantasma não assombra 25 milhões de brasileiros famintos. Meu bíceps, exposto no facebook, testemunha a fadiga cotidiana. Meu Bordeaux é genuíno e não simula a ambição por um tipo de ascensão social característica das mais belas personagens de Honoré de Balzac.

Repito. Não sou insensível. Não desconsidero que a renda sofreu uma ligeira redução, que adiamos o horizonte do pleno emprego, que a violência doméstica extrapolou aquele limite tolerável, que as doenças causam algum desconforto e que os professores do ensino básico trabalham um pouquinho mais e ganham um tiquinho menos que seus mestres catedráticos. Um conhecido confrade, mais inteligente, porque gosta de equações, explicou tudo isso em um vídeo escatológico. O argumento da depressão também não aceito. Jovens, afinal, tem a vida pela frente! Essa é a oportunidade para superarmos, separadamente, as adversidades temporárias. Já fizemos isso. Recordem. Ocupamos, em 2016, de verde e amarelo, a Avenida 85. Em comunhão com inúmeros colegas, alguns mais recatados, mudamos, para nossos alunos, o país. É imperativo, como em 2016, converter a revolta em energia positiva. Substituir o rancor, próprio desse ambiente tóxico e polarizado, por gentileza, amor, altruísmo. Invista em suas competências, habilidades, afinal, as ideias inovadoras e o empreendedorismo sempre terão espaço em instituições, como a universidade, que cultivam a concorrência saudável.

Soube que uma aluna insinuou, em conversa paralela com um orientando, que meus slides são como o Atlas do Grande Khan: inúteis e efêmeros porque representam, apenas, meu melancólico desejo de grandeza. Tolice. Como Khan duvidava dos relatos de Marco Polo, também essa opinião, por ser pessoal, não será objeto de análise. Não serve como evidência e, portanto, seu destino será a lixeira do meu novo MacBook.

A morte remota venceu novamente. Uma câmera nunca mais se abrirá. Uma de nós já não está entre nós. Combinamos, no dia 27 de maio de 2021, no mesmo horário, abrir cada janela ou cada portão com o propósito de filmar, durante 30 segundos, a cidade. Dezenas de cidades apareceram. Do Maranhão, vigiada por colinas, sua cidade invisível foi revelada. Por uma mensagem de whatsapp ela registrou: “Conheço literalmente todos os meus vizinhos e quase todos estão no trabalho agora kkk.” Ela não encontrou, infelizmente, refúgio no atlas do grande professor kublai khan. 

 

Link para o vídeo Cidades Remotas produzido na disciplina geografia urbana, ministrada no segundo semestre (ou sei lá o que!) de 2021: https://www.youtube.com/watch?v=Mzo8rdKXgyo

* Tadeu Alencar Arrais é professor do Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa) da UFG e coordenador do Observatório do Estado Social Brasileiro.

O Jornal UFG não endossa as opiniões dos artigos e colunas, de inteira responsabilidade de seus autores.

 

Fonte: Secom-UFG

Categorias: colunistas Porque o Estado Importa IESA