
PORQUE O ESTADO IMPORTA
Minha ex-casa, minha vida? Os efeitos da pandemia sobre a moradia no Brasil
Leandro Lima*
Juheina Lacerda Viana*
É quase um consenso no Brasil que o maior programa de habitação já registrado na história urbana desse país foi o Minha Casa Minha Vida. Há muita pesquisa em curso mapeando a espacialidade do programa e demonstrando sua capilaridade continental. Depreende-se que seu principal fundamento urbano é sua familiaridade com a periferia geográfica dos principais centros urbanos do país. Segundo as informações da Câmara Brasileira da Construção Civil, com base na Resolução n° 928 do CC-FGTS de 30 de julho de 2019 do Ministério da Economia, o volume de recursos oriundos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), previstos para o Plano de Contratações e Metas Físicas, vinculados à investimento em habitação popular, foi da ordem de 54.9 bilhões de reais, com destaque para o aporte de 51,1% destinados ao sudeste brasileiro (28 bilhões de reais), fato justificado pela concentração espacial dos postos de trabalho na referida região. O Plano previa ainda a execução de 1.4 bilhões de reais para a região Norte, constatando-se a persistência de déficit habitacional em regiões menos populosas, mas ainda assim, demandante de políticas públicas urbanas. Os dados apontavam a cobertura de 506.760 mil famílias atendidas pelo programa em 2019, com efeitos econômicos diretos sobre a construção civil gerando 1.31 (86,3%) de empregos somente no segmento da habitação popular. Como se percebe, a política urbana no Brasil, ancorada pelo financiamento público, é um componente excepcional para a tão sonhada retomada do crescimento.
Uma questão pouco debatida na literatura urbana sobre o Minha Casa Minha Vida é o seu caráter frágil no tocante à estabilidade da moradia constante nos contratos. Suas repercussões jurídicas reverberam sobre o fundamento excludente da habitação popular no Brasil. Em 2014, a Fundação João Pinheiro, usando os dados da PNAD, indicava que o déficit habitacional do Brasil para famílias com renda mensal de até 3 salários mínimos era da ordem de 83,9, o que revela que a política habitacional é totalmente dependente do fluxo de renda oriunda do trabalho. O déficit habitacional para famílias com mais de 10 salários mínimos foi 1.4 em 2014. A política urbana assentou, via financiamento, entre 1964 e 2016, financiadas pelo FGTS e o SPBE, 17.120.121 milhões de unidades habitacionais.
O agravamento da pandemia, em associação com os vínculos de financiamento imobiliário do PMCMV, garantidos pela flexibilização da legislação (destaque para a Lei 9.14 de 1997 e suas alterações), lançou um mar de gente na instabilidade dos contratos, em favor do sistema bancário. A Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997, ao estabelecer o instituto da alienação fiduciária de bens imóveis, alterou a forma predominante para financiamentos imobiliários, favorecendo as instituições financeiras no sistema de garantias do ordenamento jurídico. O texto da referida lei, ao dispor sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, deu celeridade jurídica e facilitou a execução dos contratos em casos de inadimplência. Fato é que, segundo cláusula comum nos contratos de financiamento do PMCMV, em prazo de até três meses, atualmente, é possível desalojar uma família, podendo, inclusive, tal decisão ser obtida por via extrajudicial. Por isso mesmo, prevendo os efeitos da pandemia, o congresso nacional fez tramitar (diga-se de passagem, com certa celeridade) diversas alterações legislativas evitando aquilo que seria um dos maiores programas de “execução fiduciária” do Brasil. Como sabemos que os efeitos econômicos se prolongam no tempo, julgamos que estaremos assistindo ao início da era da execução hipotecária no Brasil. Para se ter ideia do peso dessas decisões jurídicas, entre 2010 e 2017 houve 69.487 mil execuções hipotecárias no Brasil, resultando numa média de 8.685 contratos executados anualmente. Destaca-se que essas execuções são dotadas de uma espacialidade trágica, pois 47% (ocorreram na região Nordeste com destaque para o Maranhão – 23% do total de execuções). Como a Geografia nos ensina, números são pessoas, com seus dramas e suas experiências de vida. Nesse sentido, estimamos que mais de 347 mil famílias sofreram algum tipo de dano jurídico ocasionado pela correspondência entre contrato jurídico e crise econômica entre 2010 e 2017.
Enfim, é preciso entender que a moradia popular no Brasil tem fluxo de renda invertido em desfavor da população. Se as políticas de transferência de renda fazem parte da natureza solidária do Estado Social, no caso da habitação no Brasil, a solidariedade está em favor do sistema hipotecário-bancário. Tal realidade sócio-espacial-jurídica aponta para a necessidade de políticas públicas urbanas perenes com foco sobre os brasileiros e brasileiras nos mais remotos confins do país. Os sucessivos desequilíbrios que pairam sobre a qualidade na geração do emprego, além, é claro, dos custos econômicos com a saúde e a educação, levam-nos a duvidar sobre a eficiência e perenidade das políticas habitacionais. Por isso mesmo, torna-se cada vez mais urgente reposicionar as políticas urbanas no contexto do Estado Social, pois não é demais lembrar que o artigo 82 da Constituição Federal ainda prevê a função social da propriedade. Aqui, nosso clamor não é pela falência do sistema bancário, mas é pela garantia existencial (existir é ocupar lugar no espaço) de milhões de pessoas que povoam reduzidos apartamentos, condomínios e conjuntos habitacionais nas inúmeras periferias do Brasil urbano. Não é demais lembrar que falta (ainda) saneamento básico, saúde e educação às inúmeras favelas onde o Estado social sequer botou o pé. E é por isso que o Estado importa.
Fontes
BRASIL. Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997. Dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências.
BRASIL. Ministério da Economia. Resolução n° 928 do CC-FGTS de 30 de julho de 2019 - Secretaria Especial de Previdência e Trabalho. Disponível em: <https://cbic.org.br/habitacao-interesse-social/downloads/>.Acesso em: 02 Maio de 2021.
Fundação João Pinheiro. Centro de Estatística e Informações. Déficit Habitacional 2014. Brasil. Com base em Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)-IBGE, v.34, 2014.
Para mais informações
Plataformas de Dados do Observatório do Estado Social Brasileiro
http://obsestadosocial.com.br/
https://observatorio.spatialize.com.br/#/
Canal Porque o Estado Importa
https://www.youtube.com/channel/UCuZDu3jkiPMfxYTmfzVzKWw
* Leandro Lima é professor adjunto do IESA, integrante do Observatório do Estado Social Brasileiro
* Juheina Lacerda Viana é integrante do Observatório do Estado Social Brasileiro. Email: juheinalacerda@hotmail.com
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Fonte: Secom-UFG
Categorias: colunistas Porque o Estado Importa IESA