PORQUE O ESTADO IMPORTA
Escola fechada: quem se importa com meridianos, protozoários e ditongos?
Caio Sena*
Estourou uma pandemia. Saiu um decreto. E por isso mesmo ficou decretado: “escola fechada”. Inicialmente por uns dias, depois por meses e, agora, a maioria das salas de aulas das escolas públicas estão fechadas por mais de um ano. Nunca é demais destacar: em nenhum momento os professores ficaram parados, ou deixaram de dar aula, apenas mudaram de ambiente. Ampliaram por duas vezes, se homens, a jornada de trabalho e, por três vezes, quatro ou mais vezes, se professoras mães, a jornada de trabalho. Curioso perceber também que, depois de algumas semanas com filhos em casa, poucos ainda defendem o homeschooling. Percebemos que já é 2021 e ainda não há tecnologia que substitua professores em sala de aula, sobretudo na educação básica.
A dura realidade mostrou que no Brasil da fome, uma escola não “serve” apenas para o que ela se propõe na essência: um lugar em prol da busca por conhecimento. Como aprender com fome? Hoje, com a chegada de vacinas, lembramos novamente das escolas públicas como ponto de vacinação. Talvez o que é novidade para alguns, é a realidade de outros. Os estudantes de faziam suas principais refeições nas cantinas das escolas públicas, nunca esqueceram que as escolas são muito mais do que salas de aulas, professores, livros, quadra de esportes e afins. Aliás, parte significativa dos meus colegas de profissão da educação básica, queriam muito “se dar ao luxo” de apenas entrar em uma escola pública para lecionar. Pena que a realidade dura e concreta não permite. Como deve ser bom se preocupar principalmente com tigres asiáticos, vírus, protozoários, meridianos e paralelos.
Durante a gestão da pandemia, a maioria das secretarias de estado e dos municípios se esforçaram bastante para documentar tudo. Menos o que importa. As fichas de conteúdo estão todas em dia. Os diários, as planilhas alinhadíssimas com a BNCC (Base Nacional Comum Curricular), coisa de dar orgulho para qualquer fiscal de professor. Ficou combinado em algum lugar que era obrigatório cada professor postar pelo menos 16 atividades por semana. Só esqueceram que, para que as postagens fossem acessadas, era necessário que do outro da tela, na casa do estudante, tivesse internet de qualidade boa ou pelo menos razoável.
Os gestores educacionais da pandemia, lamentavelmente também se esqueceram que 4,8 milhões de crianças e adolescentes, na faixa de 9 a 17 anos, não têm acesso à internet em casa, ou seja, 17% de todos os brasileiros nessa faixa etária (Fundo das Nações Unidas para a Infância - UNICEF, 2020). Poucos quiseram saber que, mesmo os professores utilizando seus próprios aparelhos digitais para produzir as tais atividades e vídeos-aulas semanais, antes de falar em internet na casa do estudante, pulamos uma etapa bem importante: 100 milhões de pessoas, ou 47% dos brasileiros, não possuem saneamento básico adequado.
Já que a ordem do momento é quantificar tudo com números e em planilhas, aqui vão mais alguns para preencher as lacunas dos floridos diários de conteúdos programáticos para o bimestre: 16% da população, ou quase 35 milhões de pessoas, não têm acesso à água tratada, e apenas 46% dos esgotos gerados nos país são tratados (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento – SNIS, 2018).
Para completar o caos, muitas das políticas públicas da educação, foram elaboradas por quem há muitos anos não pisa em uma sala de aula. Quantas vidas isso custa? Quanto tempo ainda vamos perder com “empreendedores da educação” que pensam que a escola pública “não vai para frente” por falta de “conteúdo” de qualidade? Geralmente essas pessoas extremamente preocupadas com o “conteúdo” são as menos informadas acerca do que realmente ocorre na sala de aula. Salvo raras exceções, os professores são lembrados apenas no momento de executar os planos controversos de gestões para gestões, que troc a cada novo cenário político no âmbito federal, estadual ou municipal. Poucas vezes os professores são chamados para formular políticas públicas relevantes para a educação. Quantas vidas poderiam ser evitadas se quem está na linha de frente fosse ouvido?
Isso porque ainda não falamos do ensino híbrido antes da vacinação. Uma forma de expor professores em uma semana e as famílias dos envolvidos na semana seguinte. Resultado? Quem está em casa não assiste a aula porque o professor está muito ocupado tentando evitar que os estudantes no presencial se aglomerem. E quem está presencialmente não consegue entender a aula porque o professor parece um apresentador de TV à beira de um ataque de nervos: com as dezenas de comandos vindos de cada em um dos ouvidos, ora das crianças ora dos pais que estão assistindo às aulas com medo do professor doutrinar seus anjinhos. No futuro talvez vamos compreender que era absurda essa tentativa, mas hoje ela é usada especialmente por redes privadas de ensino para mostra que os professores “não estão parados”.
Antes de mencionar números ou o conteúdo objetivo que está sendo perdido com a escola fechada, deveríamos recordar que parte considerável dos estudantes também não aprendiam no presencial porque estavam muito ocupados, pensando na comida do intervalo. O mapa da fome também é um mapa escolar. Demorou outros bons meses para que os gestores entendessem que a escola deveria ser parte central na estratégia de combate a covid-19. Não apenas a linha de frente dos hospitais. Na linha de frente da escola, ficou evidente que ninguém consegue pensar em meridianos, paralelos, hipotenusa ou em qualquer conteúdo sem o básico para sobreviver (e ainda não estamos considerando a vacina). Paremos um instante para olhar os números de matriculados no ensino fundamental, ensino médio e educação de jovens e adultos no Brasil, em 2020, o fatídico ano de início da pandemia no Brasil.
Volte quantas vezes for necessário nesse ou em qualquer outro gráfico e responda: Quantos estudantes dependiam da escola para fazer as principais refeições do dia? Adiante: quantos estudantes viam no território da escola um espaço onde eles pudessem ficar algumas horas sem sofrer toda sorte de abusos psicológicos, físicos e até sexuais? Quantos estudantes iam para a escola porque a quadra de esportes é o único acesso a um espaço público com possibilidade de praticar algum esporte? Quanto tempo demorou para transformar, dentro da burocracia do Estado, a verba da merenda em cesta básica? Quem vai conseguir somar o número de vidas que perdemos só com esses entraves e burocracias de perceber o estudante para além do que ele ou ela podem ou não aprender em Ciências? Talvez seja possível descobrir alguns desses números e dessas famílias, mas que políticas públicas foram executadas para essas pessoas?
É certo que não era possível abrir escolas e ignorar uma pandemia viral. Mas aqui não estamos debatendo o fechamento ou a abertura da escola, mas sim o significado dela para a sociedade. Precisamos ir além: a maioria das comunicações oficiais do governo, via decreto ou orientações de ofícios, cobraram números de aulas postadas, número de diários on-line, número de formações para aprender a lidar com o virtual a serem assistidas, número de qualquer factoide “pedagógico”. A maioria (não colocaremos a totalidade para não sermos injustos com as exceções) ignorou completamente o sujeito professor (a) e o sujeito estudante.
Agora nossa cabeça ainda está atordoada com uma pandemia descontrolada que se desdobrou em uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) e ainda é cedo para interpretar todo esse contexto que nos cerca. No futuro entenderemos o impacto da pandemia da covid-19 em países que déspotas negacionistas no poder e capazes de subverter qualquer lógica, inclusive consensos científicos sólidos que norteiam os rumos de países que já experimentam algo próximo a um mundo pós pandemia. O resultado dessa nossa reflexão deve chocar mais do que os números que agora, pela velocidade que aparecem em nossa tela, ainda não conseguimos personificar.
Quem sabe em um futuro próximo tudo que nos cerca faça algum sentido. Até lá, as lives de resistência ou as que nos entretêm se perdem em números. Aulas on-line são números. Dias sem abraços são números. Dias sobrevivendo sem emprego, são números. Ônibus lotados são números. As atividades entregues por aqueles professores “heróis” depois de andar de barco, balsa e de se fantasiar, são números. A aglomeração dos pastores em cultos, são números. A pergunta que fica é: quando vamos conseguir parar de contar?
Para mais informações
Plataformas de Dados do Observatório do Estado Social Brasileiro
http://obsestadosocial.com.br/
https://observatorio.spatialize.com.br/#/
Canal Porque o Estado Importa
https://www.youtube.com/channel/UCuZDu3jkiPMfxYTmfzVzKWw
* Caio Sena é professor de educação básica e doutorando em Geografia pelo IESA/UFG, membro do Laboratório de Estudos e Pesquisas das Dinâmicas Territoriais (LABOTER)
Fonte: Secom-UFG
Categorias: colunistas Porque o Estado Importa