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Universidade Federal de Goiás
PORQUE O ESTADO IMPORTA

PORQUE O ESTADO IMPORTA

Em 21/07/21 10:07. Atualizada em 09/08/21 15:59.

Terrorista bom é terrorista morto?

Matheus Pfrimer*

Enquanto a média de mortes diárias por Covid-19 no Brasil alcançava ao número oficial de mortos nos atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos, o presidente da Câmara de Deputados, Arthur Lira, instalou uma comissão para avaliar um projeto de lei (PL) sobre ações contraterroristas. Me refiro ao PL n.1595 de 2019 que dispõe sobre ações contra terroristas. Se na atual circunstância de pandemia os esforços do governo deveriam estar voltados para medidas sanitárias, o que chama a atenção é a utilização de um jargão militar para difundir a sensação de uma nova ameaça ao país e criar o clima de uma suposta “guerra”, dessa vez ao terror. Pode-se sugerir que trata-se apenas de um dispositivo legal para regular  a atuação do Estado em  caso de um eventual atentado de grandes proporções. Contudo, mais do que um movimento diversionário em meio a pandemia,  o mencionado PL engendra sérias consequências à titubeante democracia brasileira. Tipificar certos eventos como terrorismo e não como crime representa apenas um jogo de palavras? 

Não, palavras são ferramentas fundamentais para interpretar e construir o significado da realidade. Ao mencionar certos eventos como terrorismo estamos caracterizando-os como ato de guerra e não como crime comum, isto é, como contrários à soberania nacional, tipificados como crime de guerra e julgados segundo uma lógica marcial. Classificar um certo ato como terrorismo invoca a sensação de ameaça à soberania nacional - para não dizer de “traição à pátria” - o que não ocorre para atos caraterizados como crime. Claramente, isso instiga e implica numa categorização dos cidadãos em patriotas e não patriotas, em amigos ou inimigos. Mediante o emprego da lógica da segurança nacional  justifica-se medidas  urgentes, excepcionais e sigilosas, em suspensão aos princípios democráticos. Isso é ainda mais evidente, ao  verificar que a própria ideia de ações contraterroristas, matéria do PL n.1595, apenas ganha sentido em contraposição à definição dada a terrorismo,  legitimando assim tais medidas  para combater o que quer que se classifique como ato terrorista.

Nesta discussão, o eixo fulcral se volta à natureza dos atos classificados como  terrorismo. Fica evidente a intenção do PL n. 1595 em apliar a abrangência dos atos clasificados como terrorismo para interpreta-los de forma extensiva. Ao ressaltar as principais modificações a serem trazidas à legislação atual, o mencionado PL apresenta como destaque: “...(I) melhor definição, no âmbito de aplicação da lei, ao incluir atos que, embora não tipificados como crimes de terrorismo, serão devidamente confrontados conforme art. 1º, §2º da presente proposição”. Isto é, ainda que um ato não esteja classificado como terrorismo em qualquer dispositivo legal, ainda assim, “ao arrerio da lei” este mesmo ato poderá ser caracterizado como terrorismo tendo como parâmetro o disposto no parágrafo segundo do artigo primeiro. O que dispõe este dispositivo legal?  “Esta Lei será aplicada também para prevenir e reprimir a execução de ato que, embora não tipificado como crime de terrorismo: a) seja perigoso para a vida humana ou potencialmente destrutivo em relação a alguma infraestrutura crítica, serviço público essencial ou recurso-chave; e b) aparente ter a intenção de intimidar ou coagir a população civil ou de afetar a definição de políticas públicas por meio de intimidação, coerção, destruição em massa, assassinatos, sequestros ou qualquer outra forma de violência”. Com estes referenciais tão gerais, boa parte dos crimes contra vida vida potencialmente acabariam sendo classificados como terrorismo a depender do rigor e subjetividade de quem os julgue.

Contudo, há ainda elementos que são ainda mais preocupantes. Mais particularmente, a substituição da lógica da segurança pública por aquela da segurança nacional. Esse paradigma fica bastante evidente na justificativa da proposta de lei ao fazer alusão a medidas preemptivas, ao ufanismo e, por fim, à desconfiança em relação à democracia. A ênfase dada pela justificativa nas ações preemptivas se sobressaem quando o PL n. 1595 faz menção que apesar do “fato de não parecermos alvos nada nos impede de sermos palco para ataques”. Aqui fica evidente a construção de uma potencial ameaça que deve ser rechaçada preemptivamente, ou seja, antes ainda que ela esteja na iminência de acontecer. Em segundo lugar, a militarização da segurança pública ocorre por meio de um ufanismo que constantemente recorre a “ameaças estrangeiras”. Segundo consta no PL n.1595, “à medida que nossa importância cresça no âmbito internacional, nossos interesses e posicionamentos começarão a se contrapor à de grupos estrangeiros radicais, cuja ferramenta maior de pressão sobre adversários é o terrorismo”. Aqui depreende-se claramente a lógica do amigo/inimigo a fim de classificar estrangeiros como “radicais”, logo potencialmente enquanto terroristas. Mais a frente ainda, o projeto reforça novamente essa ideia ao se referir à porosidade das fronteiras e ao fluxos de imigrantes: “a permeabilidade de nossas fronteiras e a recente aprovação do novo estatuto do estrangeiro tornam ainda mais frágeis as barreiras estatais que deveriam dificultar a entrada de terroristas em nossos domínios”. Como se a entrada de imigrantes necessariamente aumentasse o número de terroristas adentrando o território nacional.

Por fim e mais grave, a justificativa do mencinado PL cita “a falta de coragem de discutir, com seriedade, os limites entre ações legítimas e democráticas de movimentos sociais e os crimes por suas alas radicais cometidos, muitos dos quais extremamente próximos conceitualmente do que seria o terrorismo”. Ou seja, a natureza da ala do movimento social que cometa um ato criminoso - neste caso ser radical - já seria o bastante para transformar um crime em ato de guerra, em terrorismo. Estranhamente, o documento não menciona o que vem a ser objetivamente “grupo ou ala radical”, deixando à subjetividade da autoridade competente decidir o que significa ser radical. Levando em conta que este projeto de lei ainda prevê várias condecorações aos agentes públicos pela atuação em ações contraterroristas, não se pode negligenciar que haverá uma crescente tendência a classificar certos atos como terrorismo a fim de se alcançar estas condecorações.               

Em suma, este o PL n. 1595 emprega uma lógica excepcional a fim de classificar os cidadãos em amigos ou inimigos ao mesmo tempo em que “normaliza” um procedimento  excepcional da segurança nacional para atos do âmbito da segurança pública. Assim, fica evidente neste projeto de lei o intuito de legitimar a  tão difundida lógica do “bandido bom é bandido morto”.   

 

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*Matheus Pfrimer é professor do curso de graduação em Relações Internacionais e do  Programa de Pós-graduação em Ciência Política (PPGCP) da UFG. E-mail: Matheus Pfrimer

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Fonte: Secom-UFG

Categorias: colunistas PPGCP Iesa