
Partiu na madrugada de segunda-feira (01/11), o pianista que considerava o piano como se fosse uma pessoa, que o acompanhava desde sempre.
Artista brasileiro universalmente consagrado, recebedor de honrarias em muitos países, convidado a tocar nas melhores salas de concerto do planeta, com as orquestras mais prestigiadas e os regentes mais em evidência.
De Nelson Freire (1944 – 2021) guardamos a lembrança de seu piano magistral. Em cada interpretação iluminava a obra com um inigualável poder de recriação. Sua arte era mesmo transcendental!
A partida de Freire fez chorar o mundo da música. Segundo o crítico francês Alain Lompech (1954):
“é possível encontrar três ou quatro pianistas tão excepcionais quanto Nelson Freire, mas ninguém encontrará um melhor”.
Tantas honrarias, contudo, não alteraram o caráter do menino nascido na pacata Boa Esperança, nas Minas Gerais. Desde a mais tenra infância já demonstrou incríveis sinais de seu talento musical e sua família, impressionada por suas capacidades, transferiu-se para o Rio de Janeiro quando ele tinha apenas cinco anos de idade, buscando uma educação musical de qualidade para o prodigioso menino.

Em entrevista para a Revista BRAVO Nelson Freire assim se posicionou:
(…)“aos 5 anos, minha família toda mudou-se para o Rio por minha causa. Foi uma transferência incrível, penso nisso até hoje, pois meus pais já tinham uma certa idade — meu pai tinha 46 anos, era farmacêutico em Boa Esperança e até mudou de profissão, foi ser gerente de banco, deixou a farmácia. Éramos 9 irmãos e havíamos passado a vida inteira numa cidadezinha pequena, agradável, onde todo o mundo se conhecia. Eu causei uma revolução na vida deles, e eles tiveram uma coragem enorme de fazer isso por causa de um menininho de 5 anos, mudar-se para o Rio de Janeiro, que era outro mundo, uma capital da República!”

No Rio, Freire foi orientado por duas grandes educadoras, a gaúcha Nise Obino (1913 – 1995) e a paulista Lúcia Branco (1903 – 1973).

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“(…)Comecei muito cedo, e se nesse princípio eu tivesse sido mal orientado, poderia ter sido um menino prodígio explorado por professores”. Nelson Freire
Com Nise Obino, Freire teve uma relação de amor. Ele era movido pelo amor pelas pessoas e pela música. Nelson repetiu em muitas entrevistas: “Converso com a Nise todos os dias…”
Aos 12 anos, Nelson Freire foi finalista no I Concurso Internacional de Piano do Rio de Janeiro (1957), examinado por pianistas como Guiomar Novaes (1894 – 1979), pianista por ele sempre admirada e que compôs o júri na ocasião.
Após tão importante conquista, Freire recebeu do então presidente Juscelino Kubitschek (1902 – 1976) uma bolsa de estudos que o levou a Viena, onde estudou sob a orientação de Bruno Seidlhofer (1905 – 1982).

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Ao chegar na Europa conheceu a pianista argentina Martha Argerich (1941). Amigos desde 1959, Marta e Nelson eram mais que amigos, eram confidentes, eram irmãos, eram almas gêmeas.

Aos 19 anos conquistou o primeiro prêmio internacional, no Concurso Internacional Vianna da Motta, em Lisboa, que lhe garantiu a representação por uma importante agência de empresários musicais, Conciertos Daniel, com sede em Madri, fase em que tocou em quase todos os países da América Latina e também na Espanha. Foi esse o período da descoberta da virtuose de Freire pela crítica internacional:
“o jovem leão do teclado”Times, Londres
“um dos maiores pianistas dessa ou de qualquer outra geração”.Revista Time, Nova York
Nelson Freire se tornou um artista consagrado internacionalmente. Gravou com importantes selos internacionais. Recebeu numerosas condecorações como a de Cidadão Carioca, Cavaleiro da Ordem do Rio Branco, Légion d’Honneur, Comendador des Arts et des Lettres, Medalha Pedro Ernesto, Medalha da Cidade de Paris, Medalha da Cidade de Buenos Aires e o título de doutor honoris causa pela Escola de Música da UFRJ.
Em 2003, o cineasta João Moreira Salles estreou o documentário “Nelson Freire” – um filme sobre um homem e sua música. Ao saber da partida de Nelson Freire, assim falou:
“Os documentários que eu vinha fazendo até então tratavam de desordem, de violência e de desagregação. Tive vontade de filmar o contrário daquilo e Nelson foi o caminho. Ele encarnava valores de um humanismo essencial a todo projeto de civilização decente – a transmissão da beleza, o imperativo moral do trabalho bem feito, a recusa de toda vulgaridade e espalhafato. Um presidente que tira a máscara de um bebê e força uma criança a fazer uma arma com as mãos é uma imagem verdadeira e poderosa do país. Mas não é a única. Nelson Freire, o pianista, não o filme, representava e representa – nos discos, nos registros dos concertos, na vida discreta que levou -uma outra face do Brasil, o lado capaz de nos salvar. Seu talento não está ao alcance de maioria de nós, mas a decência, sim.”

O mundo da música não será o mesmo sem o piano de Nelson Freire. Mas, como ele mesmo disse:
A música tem esse poder de transmissão universal, talvez por ser etérea, não se pode segurar a música, ela precisa ser ouvida”.
Ouviremos Nelson Freire interpretando a Sonata ao Luar (n. 14) de Ludwig van Beethoven (1770 – 1827) em gravação de 2009 no Festival de Inverno de Campos do Jordão-SP.
Observe a interpretação magistral dessa famosa Sonata. Ouvir Nelson Freire é sempre um ato de amor.
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