PORQUE O ESTADO IMPORTA
Ensino Remoto Emergencial e vulnerabilidade discente ou uma breve incursão sobre nossa cegueira
...se queres ser cego, sê-lo-ás.
Jose Saramago, Ensaio sobre a cegueira, p.73.
Observatório do Estado Social Brasileiro
Observatório do Mundo do Trabalho
Quem é o discente que, durante a pandemia da Covid-19, desenvolveu suas atividades acadêmicas e escolares na modalidade Ensino Remoto Emergencial? Esse discente será o mesmo que retornará, de forma progressiva, aos bancos universitários e escolares? Há uma parcela da comunidade acadêmica que imagina que esse discente é o mesmo e que as condições de vulnerabilidade, durante os distintos períodos da pandemia da Covid-19, serão minimizadas com o retorno para a modalidade presencial.
Não é isso, no entanto, que revela a pesquisa desenvolvida pelo Observatório do Estado Social Brasileiro e pelo Observatório do Mundo do Trabalho. Os pesquisadores empreenderam um esforço para oferecer para a comunidade acadêmica um retrato do Ensino Emergencial Remoto a partir das experiências discentes no Instituto Federal de Goiás (IFG), na Universidade Federal de Goiás (UFG) e na Universidade Estadual de Goiás (UEG). A pesquisa envolveu 7.602 discentes que responderam 49 questões sobre a caracterização domiciliar, passando pela renda e pelas avaliação quantitativa e qualitativa das aulas síncronas e das atividades assíncronas.
Os resultados, que serão divulgados no dia 14 de dezembro de 2021, impressionam, especialmente por três aspectos. O primeiro é que os resultados confirmam as pesquisas recentes do IBGE, como a PNAD-Covid (2020) e a Síntese de Indicadores Sociais 2020 (IBGE, 2021). O segundo deriva da possibilidade de uma análise comparativa institucional das três instituições de ensino superior com maior capilaridade no território goiano. O terceiro é que os resultados permitem avaliar a relação entre vulnerabilidade e as condições de aprendizagem na modalidade Ensino Remoto Emergencial.
Mas quem é, de fato, esse discente?
Alguns resultados descritos na Figura 2 seriam suficientes para comprovar a hipótese, mesmo sem a segmentação de gênero ou cor/raça, da vulnerabilidade e das condições desiguais de acesso a infraestrutura, nos domicílios, para a realização do Ensino Remoto Emergencial. Dois exemplos, de vários que podem derivar da correlação de variáveis entre o conjunto das instituições ou em cada curso das instituições, saltam os olhos:
Primeiro. O percentual de discentes que declararam conviver com idosos e/ou crianças que demandam cuidado foi de 43,55%. Desse total, 61,15% são mulheres, o que traduz a vulnerabilidade relacionada ao gênero. No Brasil, segundo a PNAD (2021), o rendimento domiciliar per capita foi de R$ 1.349,00, sendo R$1.381,00 para homens, R$ 1.318,00 para mulheres e, caso essa mulher viva em Goiás, a média reduz para R$ 1.204,00. O rendimento reduz substancialmente quando a mulher é parda, negra e, principalmente, exerce trabalhos informais. As desigualdades de renda e gênero, portanto, foram acentuadas e atingiram os núcleos familiares dos discentes, determinando o desempenho acadêmico e escolar na modalidade de Ensino Remoto Emergencial.
Segundo. O percentual de estudantes que declarou ter ocorrido redução da renda domiciliar foi de 68% e aqueles que receberam Auxílio Emergencial do Governo Federal foi de 53%. É preciso registrar que a progressiva redução da renda domiciliar da última década foi interrompida, em 2020, em função do Auxílio Emergencial que atendeu 45% dos domicílios brasileiros (IBGE, 2021). O que preocupa, em relação a informação da presença do Auxilio Emergencial na composição da renda familiar é, justamente, o fato de que, a partir de 2022, 53% dos discentes não contarão com essa transferência monetária. O desemprego do último trimestre, segundo o IBGE (2021), atingiu a taxa de14.1%. Quando o dado é segmentado para os jovens entre 18 e 24, o desemprego sobe para 29.5%, atingindo uma parcela significativa dos discentes. Na UFG, por exemplo, 68,40% dos alunos matriculados na graduação tem idade, justamente, na faixa de desemprego de 29.5, ou seja, entre 18 de 24 anos (Analisa-UFG, 2021).
Mas a interrogação inicial ainda permanece. Quem é esse discente que retornará, progressivamente, aos bancos universitários e escolares? O risco é que esses discentes, que participam de núcleos familiares e domiciliares que assistiram a mais drástica redução da renda das duas últimas décadas, resultado dos efeitos cumulativos da precarização do trabalho e do desemprego, agravados pela pandemia da Covid-19, sejam, novamente, invisibilizados. A ambiência relativamente homogênea de nossas salas de aula foi diluída a partir de um mosaico de paisagens periféricas e ruídos do Ensino Remoto Emergencial. Não é banal que 25,4% dos discentes tenham declarado não abrir as câmeras (por não sentirem-se confortáveis e/ou não possuir câmeras) durante as aulas e outros 25,69% declararem raramente abrirem as câmeras. Além disso, 34% dos discentes declararam participar das aulas a partir do celular. Esses dados manifestam, de modo inequívoco, os limites da idealização do Ensino Remoto Emergencial.
A provocação, portanto, não é se o discente será o mesmo, mas se o docente e a própria instituição terá a sensibilidade para entender que o Ensino Remoto Emergencial desnudou, como ponto positivo, aquela desigualdade social que, para muitos, estava fora dos muros das instituições públicas de ensino superior. Essa pesquisa é, sobretudo, sobre a cegueira de cada um de nós.
Acompanhe a divulgação dos resultados no dia 14/12/2021, a partir das 14:30, pelo canal do IFGoficial.
https://www.youtube.com/watch?v=BUc6Nb8-M8c
Fonte: Secom-UFG
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