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Universidade Federal de Goiás
Inova

INOVA

Em 30/01/23 07:55. Atualizada em 12/04/23 17:33.

O Impacto da Propriedade Intelectual no Setor Público

Tatiana Ertner*

É evidente o protagonismo da propriedade intelectual no desenvolvimento do setor privado. É por meio dela que o setor encontra meios de valorizar seus produtos, combater a concorrência desleal, criar sua reputação e sua credibilidade para o mercado e para a sociedade. Para isso, o setor privado lança mão de diversas estratégias de propriedade intelectual para aperfeiçoar e alavancar seus negócios e inovar.

Logicamente, pelas diferenças de finalidade e ambientes, o setor público desenvolve diferentes interesses sobre a propriedade intelectual. Numa análise rápida, as entidades públicas não têm fins lucrativos, o que já demonstra uma diferença importante entre os objetivos do setor público e privado. Também, a maior parte das pesquisas científicas conduzidas nas universidades brasileiras têm financiamento público e, então, as universidades também não dependem do retorno financeiro de suas criações para reinvestir em pesquisa. Portanto, está claro que o uso que esses setores fazem das estratégias de propriedade e intelectual são diferentes e isso não significa que seus impactos sejam menores ou menos importantes no setor público.

Precisamos, portanto, compreender qual o impacto que a propriedade intelectual é capaz de causar no setor público, se não é utilizado com o fim primordial de gerar lucro. Para isso, é preciso, primeiro entender o impacto que o setor público tem sobre a propriedade intelectual no nosso país.

Na realidade brasileira, os maiores produtores de propriedade intelectual são do setor público, por meio das universidades, principalmente. Isso suscita o interesse em entender com qual objetivo o setor público investe tanto, proporcionalmente, na produção e proteção da propriedade intelectual. Também, o setor público é o maior investidor em pesquisa e desenvolvimento e, paradoxalmente, promove  pouca transferência de tecnologia, o que, novamente, nos faz pensar sobre seu objetivo. Além disso, é quem regula e fiscaliza o sistema de proteção intelectual no país.

A motivação do setor público para compreender e usar a propriedade intelectual é muito distinta da motivação do setor privado. A mais importante é a motivação não comercial, indicando, portanto, que sua motivação é a promoção da função social da propriedade intelectual. Além disso, pauta-se pela governança pública. Portanto, quando falamos do uso da propriedade intelectual pelo setor público, estamos falando de intervenção pública na economia, com motivações e mecanismos específicos.

Para entender essa intervenção e os mecanismos com que ela se dá, vamos fazer um paralelo com a propriedade imóvel, em que há critérios e motivações claras para desapropriação, por exemplo.

Na propriedade intelectual, a motivação é especificada na legislação, mas os mecanismos para utilizá-la para a intervenção direta não são claros, há apenas sua caracterização como um ato discricionário, ou seja, que confere ao agente público a possibilidade de escolher a solução que satisfaça o interesse público. Na lei brasileira de propriedade industrial (LPI 9.279/96), a licença compulsória de patentes é apresentada como um mecanismo apropriado e reconhecido internacionalmente, tendo bases no artigo 31 do TRIPS.

De acordo com o disposto, a licença compulsória pode ocorrer com diversos objetivos, por exemplo, como meio punitivo à atuação abusiva do titular da patente (disposto no artigo 68 da LPI), por razões de ordem técnica (artigo 70) e, após uma alteração da LPI ocorrida em 2021, por meio da Lei 14.200/2021, também em razão de emergência e por razões humanitárias, como o caso dq pandemia como a que vivemos nos últimos dois anos.

Mais especificamente, o recém adicionado artigo 71A dispõe que por razões humanitárias, patentes podem ser licenciadas compulsoriamente a países com capacidade insuficiente de fabricação no setor farmacêutico. Ou seja, é o interesse público, fazendo uso do sistema patentário para colocar o país como protagonista em questões humanitárias. No entanto, há que se considerar que nossas indústrias farmacêuticas não são inovadoras a esse ponto. Não esqueçamos que nossas indústrias são primordialmente voltadas à fabricação de genéricos e isso não as coloca na ponta do desenvolvimento científico e tecnológico na área farmacêutica. Aqui, portanto, há uma distonia entre a visão e o objetivo do setor público e o interesse e a capacidade produtiva do setor privado nacional, mostrando quão grande é esse distanciamento no Brasil.

De outro modo, como uma forma de sustentar o mercado interno e promover o interesse público interno, a licença compulsória promove vantagens imediatas como  menores preços dos produtos considerados chave ao interesse público, é uma estratégia fundamental para que a segurança nacional seja garantida e isso é um uso não comercial das patentes, e promove a tão difícil transferência de tecnologia e know-how para a inovação.

Apesar disso, é notório que o desenvolvimento tecnológico não é alcançado no Brasil e, de fato, a licença compulsória não em sido usada com esse fim. O atraso nos exames de pedidos de patentes pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), chamado de backlog, criou uma insegurança jurídica que levou em 2020 à proposição da extinção da autarquia e até a inferir sobre concessão de patentes sem o devido exame. Na proposta, órgãos e associações privadas seriam as responsáveis pela gestão da propriedade industrial. Apesar disso ser uma afronta ao que significa a proteção intelectual, deve-se considerar que o INPI tem feito esforços significativo no que tange à diminuição do backlog, mas ele não pode se deixar ser alvo de propostas como essas, pois a existência de uma autarquia reguladora e independente dos interesses comerciais das indústrias, em sua maioria, multinacionais, é crucial para o desenvolvimento de qualquer país.

Portanto, o que fica claro é que é necessário esclarecer a população sobre o que realmente significa a propriedade intelectual, sua importância e promover a popularização de que a proteção de suas criações é uma ação que todos podem tomar. Além disso, há a necessidade de uma maior compreensão do setor público de sua interferência na propriedade intelectual e no mercado e que suas decisões e mecanismos tem forte influência sobre o setor produtivo. 

O setor público, para acertar, precisa se aproximar do setor privado, sempre observando os anseios da sociedade em primeiro lugar. Precisa interagir com o setor privado observando os aspectos da governança pública como a transparência, a participação social, a equidade, a legalidade, a integridade e a efetividade. E, assim, conferir segurança jurídica para a licença compulsória, para que seja explorada para outros fins, inclusive.

Ao setor público, por suas características não comerciais, de governança pública e de prover função social aos seus desenvolvimentos, deve sempre caber o papel regulatório, não sendo aceitável justificar nos atrasos dos exames de patentes, por exemplo, a diminuição de sua ação.

Tatiana Duque Martins Ertner de Almeida é professora do Instituto de Química, presidente da Comitê Interno de Internacionalização do IQ, mantém linhas de pesquisa sobre propriedade intelectual, projetos de extensão de PI no ensino básico e coordena o curso de especialização em Propriedade Industrial da UFG

 

O Jornal UFG não endossa as opiniões dos artigos e colunas, de inteira responsabilidade de seus autores.

Fonte: Secom UFG

Categorias: Coluna IQ