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Universidade Federal de Goiás
Inova

INOVA

Em 14/06/23 12:01. Atualizada em 27/07/23 19:31.

A proteção dos conhecimentos tradicionais femininos como meio de preservação da sociobiodiversidade cerradeira

*Por Tatiana Ertner

Não é de hoje que se reconhece o papel fundamental das mulheres na transmissão dos conhecimentos tradicionais através das gerações.  É a mãe que ensina à filha, que ensina à sua filha e que zela para que a informação seja repassada o mais fielmente possível, como uma forma respeitar a sua ancestralidade e também de prover aos seus descendentes as capacidades necessárias para se desenvolverem no mundo. São, sobretudo, curadoras de um saber que vai para além do fazer, também traduz o ser.

No cerrado, as mulheres são reconhecidamente guardiãs dos saberes tradicionais, do modo de vida que garante o respeito e a preservação da sociobiodiversidade e do patrimônio cultural cerradeiro. Elas são indígenas de diversos povos, quilombolas, ribeirinhas, vazandeiras, retireiras, pantaneiras, raizeiras, quebradeiras, pescadoras artesanais... cada uma expressando seu modo de vida, sua relação com o ambiente, que evidencia respeito e amor e a compreensão de que a comunidade é parte integrante do ambiente e não pode existir sem observar sua conservação.

Não podemos, no entanto, confundir preservação com manter as pessoas em situação de fragilidade, sem acesso a serviços básicos de qualidade como saúde, saneamento, segurança, educação básica, em situação de pobreza ou fome. Conservar significa amparar, significa incluir o modo de vida das comunidades no mundo atual, tornando disponíveis a elas também todas as facilidades que os desenvolvimentos sócio-culturais e tecnológicos a elas também.  O meio eficiente para promover essa inclusão é a proteção da propriedade intelectual relacionada a esses saberes tradicionais. 

Produtos, processos, fatores de qualidade relacionados às práticas tradicionais, às localidades em que os produtos são criados, todos esses encontram proteção sob a forma de diferentes propriedades intelectuais. Podem ser direitos de autor e conexos, podem dar origem a marcas coletivas ou a indicações de procedência, podem gerar patentes, desenhos industriais e outras proteções sui generis que indicam a necessidade da proteção da biodiversidade para uma finalidade. A entrega dos produtos e saberes eficazmente protegidos aos consumidores no mundo moderno e demandante por novidades é uma forma de cumprir com 3 requisitos imprescindíveis para a proteção do modo de vida das comunidades:  

1) reconhecimento das comunidades. Uma vez que há um produto intelectual reconhecido e protegido, é mais fácil ter os produtos disponibilizados e relacionados aos diferenciais que só aquela determinada comunidade é capaz de entregar. 

2) valorização da capacidade produtiva e dos bens produzidos. Diversos tipos de proteção, como marcas, indicações geográficas, patentes, têm a capacidade inerente de agregar valor comercial ao que as comunidades podem produzir. Uma vez identificados e protegidos, podem, inclusive, criar mercados onde antes não existia. 

3) reconhecimento da estreita ligação dos saberes da comunidade com o ambiente. Dessa forma, a preservação por propriedade intelectual que vincula os saberes da comunidade ao ambiente em que está inserida, também se constitui num modo de preservar esse ambiente e de conservar sua biodiversidade.

Mas os conhecimentos tradicionais, por si só, devem ser reconhecidos e protegidos, como propriedade intelectual inalienável. É importante compreender que muitas vezes, a comunidade não tem um interesse comercial ou não conhecem os mercados para se sentirem confortáveis em batalhar por um espaço no mundo competitivo. Mas, certamente têm o interesse em garantir a manutenção de seu modo de vida em sua localidade. 

Por isso, a proteção aos conhecimentos tradicionais se constitui uma forma especialíssima de proteção intelectual, pois apresenta habilidades distintas daquelas da propriedade industrial ou do direito autoral: é a propriedade intelectual que traz consigo a capacidade da preservação, da conservação, do respeito à ancestralidade, às raízes, ao patrimônio genético e cultural. É a propriedade intelectual que torna esses conhecimentos patrimônios da humanidade. 

Diferente da propriedade industrial que é uma propriedade individual, que tem olhos no futuro, usa os recursos para promover mudanças e tem motivação primariamente econômica, o conhecimento tradicional representa tradição, representa a propriedade intelectual de uma coletividade, que respeita a ancestralidade e que se motiva pela manutenção dos costumes e da tradição.

Por essas características, os conhecimentos tradicionais são a única propriedade intelectual que tem a capacidade inerente de contribuir para com todos os objetivos do desenvolvimento sustentável. Por meio deles, se combate a pobreza e a fome das comunidades, resulta em desenvolvimento, melhores condições de vida, acesso a infraestrutura, educação e saúde. Por meio do reconhecimento do papel fundamental feminino, leva à igualdade de gênero, promove paz e justiça, nos ensina o que quer dizer realmente consumo sustentável, além de fornecer reais exemplos do que devem ser as comunidades sustentáveis.

Apesar de sua importância, não é tão evidente, para nenhum de nós, a forma correta de proteger essa relevante propriedade intelectual. No Brasil, nos apoiamos na Lei 13.123/2015 que, em seu capítulo 3, estabelece que o Estado reconhece os direitos das comunidade tradicionais sobre as tomadas de decisões referentes à proteção, conservação e uso dos conhecimentos tradicionais de modo sustentável, além de reconhecer que esses saberes constituem o patrimônio cultural brasileiro. Os primeiros passos incluem o cadastro desses saberes associados ao patrimônio genético no Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado (SisGen), com a discriminação dos usos que se pretende fazer desses saberes, bem como a informação de toda a responsabilidade relacionada a esses usos. 

A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (WIPO), desde 2017, tem se preocupado em preparar especialmente as mulheres das comunidades nas questões e definições sobre a propriedade intelectual aplicada aos seus conhecimentos tradicionais. Por meio de palestras, eventos, cursos, produção de material informativo e ação in situ nas comunidades, a WIPO tem investido no treinamento das mulheres desses povos para que reconheçam sua capacidade produtiva, valorizem seus produtos e processos, disseminem seus conhecimentos e tenham meios de receber o reconhecimento econômico aos seus esforços que seja capaz de alavancar o progresso em suas comunidades. 

No Brasil, em que o conhecimento sobre a propriedade intelectual é pouco em todos os lugares, as mulheres ainda estão na luta para se fazer ouvir, por meio da publicação de manifestos e cartilhas, participando de discussões sobre o tema e se envolvendo nas questões políticas relativas à preservação do conhecimento tradicional e do meio ambiente. Pouco a pouco elas ganham espaço, conhecem-se, conhecem suas capacidades e valorizam-se, para que o país também reconheça seu valor. Nós, de nossa parte, devemos nos envolver nessas ações e promover, também, conhecimento sobre a propriedade intelectual referente aos conhecimentos tradicionais e sobre como protegê-los corretamente.

 

* Tatiana Duque Martins Ertner de Almeida é professora do Instituto de Química, presidente da Comitê Interno de Internacionalização do IQ, mantém linhas de pesquisa sobre propriedade intelectual, projetos de extensão de PI no ensino básico e coordena o curso de especialização em Propriedade Industrial da UFG

 

O Jornal UFG não endossa as opiniões dos artigos e colunas, de inteira responsabilidade de seus autores.

 

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