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Universidade Federal de Goiás
Paulo Duarte

História Natural de Goyaz: os arquivos e as práticas artísticas contemporâneas

Em 26/10/23 14:10. Atualizada em 20/12/23 13:40.

Coletivo promove a exposição "Não há terra sem saúvas" na Galeria da FAV

Paulo Duarte-Feitoza*

Como muito bem explicou o filósofo Xavier Antich, a questão memória é possivelmente uma das maiores e mais antigas preocupações da cultura ocidental; dos inícios da escritura às atuais hemerotecas digitais. E, por incrível que pareça, de alguma maneira, não há medida certa quando falamos de memória, ou nos encontramos num excesso de memória ou num excesso de esquecimento. Esquecer, por sinal, além de verbo, é quase esporte olímpico em nosso país. Nos últimos anos, a questão memória passou de ser somente um problema histórico ou político para ser um problema estético e artístico; aqui, a virada da memória e a virada do arquivo se encontram irremediavelmente nas práticas artísticas contemporâneas. Em 2011, a historiadora da arte Anna Maria Guash publicou Arte y archivo, 1920-2010. Genealogías, tipologías y discontinuidades onde se propôs traçar uma cartografia entre arte e arquivo ao longo do século XX, incidindo sobre os usos do arquivo por parte de diversos artistas. Aquela publicação apareceu três anos após a exposição Archive Fever: Uses of the Document in Contemporary Art, curada por Okwui Enwezor, e que naquele então diagnosticou uma “febre arquivística” nas práticas artísticas através de estratégias conceituais. Curiosamente, voltamos a recuperar Xavier Antich, em pouco mais de uma década passávamos do Mal d’archive de Derrida (1995) para a Archive fever de Enwezor (2008), o que não é pouca coisa!

saúvas

Neste sentido, é preciso celebrar a exposição Não há terra sem saúvas, do coletivo História Natural de Goyaz (Ana Flávia Marú, Henrique Borela e Octávio Scapin), com curadoria de Cacá Fonseca, na Galeria da FAV, como um exemplo inquietante e bem sucedido de quando os artistas se lançam a devorar e pensar os arquivos coletivos. A mostra parte do histórico slogan do naturalista francês Auguste de Saint Hilaire que, após percorrer o Brasil durante anos, afirmou: “Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”. As obras ali expostas, como afirma a curadora, “testemunham mundos coletivos coconstruídos, onde a inseparabilidade entre humanos e mais que humanos, coreografam outras ontologias dos modos de desenhar, narrar, representar e fabular a história de Goyaz”.

As obras que lidam com as imagens de arquivo são por demais interessantes. As ações do coletivo em relação às imagens são das mais diversas: ampliam, recortam, ressignificam, as colocam uma ou lado da outra sugerindo múltiplas narrativas ou, invocando Agnès Varda, as descrevem em um minuto. A operação do grupo passa não somente por acessar ao arquivo, mas por acioná-lo e enunciá-lo de forma singular como somente as práticas artísticas contemporâneas são capazes de fazer. Em resumo, os arquivos estão lá, mas precisamos tocá-los, acioná-los, interpelá-los e fazê-los falar, seja através da história documental, da teoria arquivística ou da arte. O coletivo opera, em parte, de acordo com os discursos de Michel Foucault em A Arqueologia do Saber (1969), um texto que revolucionou as ciências humanas, e que trata também, evidentemente, dos arquivos. Foucault afirma que “a história propriamente dita, a história pura e simplesmente, parece apagar, em benefício das estruturas fixas, a irrupção dos acontecimentos” (2008, p. 6). Segundo o filósofo, “O arquivo não é o que protege, apesar de sua fuga imediata, o acontecimento do enunciado e conserva, para as memórias futuras, seu estado civil de foragido; é o que, na própria raiz do enunciado-acontecimento e no corpo em que se dá, define, desde o início, o sistema de sua enunciabilidade. [...] o arquivo define um nível particular: o de uma prática que faz surgir uma multiplicidade de enunciados como tantos acontecimentos regulares [...] entre a tradição e o esquecimento, ele faz aparecerem as regras de uma prática que permite aos enunciados subsistirem e, ao mesmo tempo, se modificarem regularmente. É o sistema geral da formação e da transformação dos enunciados” (p. 147-148). Para além da confabulação, penso que assim opera, em parte, a prática do coletivo História Natural de Goyaz, que se lança aos arquivos para fazer emergir, formar e transformar novos enunciados. Talvez aqui radica, em minha opinião, algumas das questões que me fazem celebrar, e muito, esta exposição.

 

Referências

ANTICH, Xavier. Del “mal d’arxiu” a la “febre d’arxiu”. La noció d’arxiu en la cultura contemporània. in Revista Lligall: revista catalana d’arxivística. Barcelona, n. 32, 2011, p. 12-41.

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

 

Paulo Duarte-Feitoza é Professor de História da Arte e Estética da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás

 

O Jornal UFG não endossa as opiniões dos artigos e colunas, de inteira responsabilidade de seus autores.

Fonte: Secom UFG

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