Jornadas pela Democracia apontam rumos de ação em contexto de retórica do ódio
Dominar a lógica das redes e fazer frente ao imediatismo são fundamentais para a democracia
Texto: Luana Borges
Foto: Weslley Cruz
Universidades têm papel preponderante, mas não atuam sozinhas, na retomada das ideias democráticas no Brasil. Foi esse engajamento – repleto de esperança, mas calcado na realidade – que marcou a última palestra do ciclo de 2023 das Jornadas pela Prevalência das Ideias Democráticas e Progressistas. O evento ocorreu na noite da última segunda-feira (13/11), no auditório do Sindicato dos Docentes das Universidades Federais de Goiás (Adufg).
Com cerca de 60 pessoas presentes, os palestrantes mobilizaram uma plateia que participou ativamente. A mesa-redonda, intitulada "Luta ideológica em defesa da democracia", se estendeu, em decorrência das várias perguntas, até 22h30. Conceitos como "guerra cultural", "retórica do ódio" ou "dissonância cognitiva coletiva" foram esmiuçados.
Além disso, foi constatado pelo público que o detalhamento desses termos não é mero formalismo teórico. Os palestrantes tomaram essas problemáticas como elementos fundamentais – e estruturantes – para se estabelecer um plano concreto de ação ante o recrudescimento de ideias fascistas no Brasil.
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Professor da UERJ, João Cezar Rocha, complexifica os lugares comuns e provoca o campo progressista à ação
A esfinge
"A universidade é muito atacada porque somos nós quem deciframos a esfinge, somos nós que podemos revelar publicamente o que a extrema direita faz", ponderou o professor João Cezar de Castro Rocha, um dos palestrantes. Ele é docente da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e autor de obras como Guerra cultural e retórica do ódio, lançada em 2021, e Bolsonarismo: da guerra cultural ao terrorismo doméstico, recém-lançada neste mês de novembro.
Juntos ao professor, compuseram a mesa outros três docentes, todos reitores: a professora Joana Angélica Guimarães da Luz, reitora da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e estudiosa da área ambiental; a professora Maria Amalia Andery, reitora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisadora na área de psicologia; e o professor José Arnóbio, que é educador físico e reitor do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN).
O debate foi mediado pelo deputado constituinte Aldo Arantes, um dos idealizadores das Jornadas pela Democracia. "Não foi à toa a ideia de convidar os três reitores – que representam as universidades federais, as universidades católicas e os institutos", iniciou Aldo. Essa amplitude de representação, segundo ele, é porque "está em jogo a defesa do processo civilizatório" e, nesse sentido, é fundamental que as instituições atuem em conjunto.
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Na plateia, políticos e lideranças ligadas às causas democráticas, reitores de universidades, além de professores e estudantes
Não é erro
Para uma plateia voltada ao viés democrático – e progressista por formação, independentemente de filiações partidárias, que ali não eram únicas –, alguns sensos comuns, constantemente repetidos, foram movidos de lugar, agitando-se a possibilidade do pensamento. O primeiro deles foi a ideia de que a extrema direita está em "erro" ou vive em uma perspectiva delirante, algo como uma "realidade paralela".
"É preciso, do ponto de vista do psiquismo humano, diferenciar erro de ilusão", ponderou o professor João Cezar, que é historiador, doutor em Literatura Comparada e vem se aprofundando no contexto político atual. O estudioso foi a Sigmund Freud – no livro O futuro de uma ilusão – para esmiuçar o argumento. "O erro se dá no plano objetivo e se pode corrigi-lo objetivamente. Mas, em uma perspectiva freudiana, o fundamental para se compreender o psiquismo humano não é o erro, é a ilusão. Isso porque é na ilusão que há a projeção de um desejo", analisou.
Para João Cezar, a partir dessa compreensão, o setor progressista, em vez de negar a realidade por considerá-la absurda, poderá enfim agir. "Nós precisamos parar de tratar os bolsonaristas, os trumpistas, como aqueles que estão em erro. Eles não estão, mas estão em ilusão. Quando 58 milhões de pessoas estão em ilusão ao mesmo tempo: essa é a realidade política concreta e nós precisamos enfrentá-la", alertou, frisando, com tom firme, o verbo no presente.
O professor mostrou ainda que as lideranças e as pessoas comprometidas com as causas democráticas caem em um engodo preparado pela extrema direita: o de se pensar que os extremistas estão em uma "realidade paralela". Para o docente, repetir isso é cair em uma ausência de ação, pois, evidentemente, por sua natureza alheia ao real, seria impossível agir em tal realidade.
Professora Maria Amalia Andery, reitora da PUC-SP, alertou sobre os perigos das redes
Polarização?
Outro conceito utilizado de forma equivocada pelo campo progressista é o de que a sociedade está "polarizada". Para João Cezar, que recorre ao filósofo Emmanuel Levinas, a polarização é própria ao pensamento humano. Pensar prevê o "eu" e o "outro", o convencimento, o diálogo, compondo-se pela alteridade, pelo "não igual", pelo "desconhecido". O que há atualmente, de acordo com ele, é um binarismo que, em vez de ir ao outro, almeja eliminá-lo, temendo-o.
Para entender a questão, o professor da UERJ apontou que é importante compreender o que é a guerra cultural. "Ela é a produção de narrativas binárias com a finalidade de gerar medo. E esse medo é capaz de gerar ódio. Como o ódio não é um sentimento abstrato – como o ódio tem de ser canalizado contra uma figura específica e concreta –, gera-se um inimigo imaginário", afirmou.
A mesa-redonda "Luta ideológica em defesa da democracia" encerrou o ciclo de palestras em 2023
Despolitizados
João Cezar pontuou ainda que a guerra cultural se transforma em uma poderosa máquina eleitoral quando desenvolve uma linguagem, chamada por ele de retórica do ódio. "Essa retórica consiste na hiperpolitização pela imposição de afetos", tais como o temor e a raiva. "Junta-se a isso uma transferência, ao plano da política, de um tempo específico: o tempo das redes sociais, o tempo do imediato", frisou o estudioso.
"Nenhum político progressista consegue isso: despolitizar a polis pela hiperpolitização do cotidiano; substituir, como faz a extrema direita, os projetos pela noção de imediato". Trata-se, em suma, do contexto atual: uma política despolitizada, pois constituída sem tempo histórico, apenas por reações súbitas em rede; pois constituída menos pela razão e mais pela emoção e pelo rompante; pois embasada menos no diálogo e mais na adesão irrefletida e na eliminação do outro. "Pensamento binário, sem alteridade". Diante disso, João Cezar ponderou que há um efeito acumulado: a dissonância cognitiva.
Conforme explicou o estudioso, o termo foi proposto por Leon Festinger em 1957, e ocorre quando há um desacordo entre a intenção e o ato. "Festinger sabia do caráter individual dessa dissonância. Mas o que ele jamais conseguiria imaginar, no seu tempo, é isto: as redes sociais – isto é, a onipresença cotidiana do universo digital – possibilitou um caráter coletivo desta dissonância cognitiva". Conforme se aventou, da mesa-redonda, este contexto universalmente dissonante gera – em toda a população, sem distinção – uma incongruência entre o fazer político e o pensamento racional.
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Professor José Arnóbio, reitor do IFRN, destacou a importância do movimento estudantil
A comunidade
A professora Joana Angélica da Luz, reitora da UFSB, em diálogo com João Cezar, provocou: para ela, a sociedade brasileira apenas sairá do campo do afeto imediato – e da hiperpolitização vazia – quando a lógica de melhoria da qualidade de vida das pessoas sair da demanda do consumo. "A lógica do capitalismo é insaciável. Eu quero mais e mais e mais. Isso não tem fim", reiterou.
De acordo com a docente, tal insaciabilidade gera uma demanda individualista e, assim, perde-se a noção de cidadania, vital para a democracia, substituindo-a pela ótica do desejo consumista, desagregadora e tendente apenas à autossatisfação. Para ela, nos governos petistas, houve melhorias concretas na vida do povo, mas sob um viés que precisa ser aprimorado. "A gente vendeu a ideia de que isso é a felicidade: sair da periferia e ir para a classe média. E o padrão cultural que a gente estabeleceu foi aquele do consumo excessivo, e não o do fortalecimento da comunidade", acrescentou.
A ideia, segundo a professora – que ascendeu pelo estudo e veio das periferias brasileiras –, não é evidentemente negar aos mais pobres avanços em bens de consumo. Ela explica que isso deve ser feito, mas, mais além, os jovens não podem abandonar suas comunidades. "A gente precisa deixar de ser ensimesmado. A universidade decifra a esfinge, mas ela precisa aprender a falar a linguagem do povo, a linguagem das periferias".
Professora Joana Angélica da Luz, reitora da UFSB: "precisamos retomar a ideia de comunidade"
Velha novidade
Para a reitora da PUC-SP, professora Maria Amalia Andery, a lógica da satisfação imediata faz parte da condição humana: pensa-se mais no "hoje" do que em um programa a longo prazo. Essa ótica, hiperbolizada pelos likes rápidos das redes, é o grande desafio para se pensar uma democracia. "Na internet, imediatamente eu tenho a consequência: o 'outro' me respondendo de forma unidirecional. Eu só falo com iguais. Esse é o problema, pois aí se criam as tais das bolhas", alertou.
A este contexto da reação imediata e ensimesmada, somam-se problemas estruturais. "O que nós temos de novidade é uma campanha política cotidiana, nas redes, que atinge, com muito pouco custo, uma enormidade de pessoas que são atavicamente conservadoras. A direita no Brasil nunca foi civilizada: com os indígenas, com os negros, com as mulheres, com os pobres. Ela os criminalizou".
Já o professor José Arnóbio, do IFRN, trouxe à tona – de certa forma ilustrando a realidade de criminalização da população – exemplos de uma ação truculenta da polícia no Instituto Federal do Rio Grande do Norte. Segundo ele, os estudantes foram fundamentais para resistirem às intervenções da extrema direita no IFRN.
Motivado pelas provocações da mesa, público presente ao evento participou ativamente
Ações efetivas
No plano concreto, após a desconstrução conceitual que deixou a plateia estimulada à discussão – e, por vezes, estupefata pelos sensos comuns deslocados –, inferiram-se, da mesa-redonda, três ações que devem ser executadas pelos setores democráticos e progressistas da sociedade. A primeira delas consiste em uma ação jurídica mais consertada.
"É rigorosamente fundamental que nós saibamos lançar mão do arcabouço jurídico que o Estado democrático oferece", disse João Cézar. E ele exemplificou: "No Código Penal, por exemplo, não existe crime de fake news. Não podemos mais falar isso! Não podemos deixar a extrema direita nos pautar. Mas, constantemente, as fake news incorrem em crimes de honra – injúria, calúnia, difamação – e estes estão no Código Penal".
Outras iniciativas dizem respeito à criação de um centro audiovisual nacional, de caráter suprapartidário, para fazer frente ao canal Brasil Paralelo. Por fim, João Cezar provocou: "A terceira ação diz respeito à linguagem: precisamos recriar a nossa, encontrar um tom, uma dicção... Para arrebatarmos mentes, corações e mãos".
Show
As Jornadas pela Democracia são fruto do esforço de seis Instituições de Ensino Superior (IES) goianas e duas entidades de classe na área da educação, além de lideranças ligadas às causas democráticas: a Universidade Federal de Goiás (UFG); o Sindicato dos Docentes das Universidades Federais de Goiás (Adufg-Sindicato); o Instituto Federal Goiano (IF Goiano); o Instituto Federal de Goiás (IFG); a Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO); o Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Goiás (Sintego) e as Universidades Federais de Catalão (UFCat) e de Jataí (UFJ).
No próximo dia 21 de novembro, como encerramento das Jornadas neste ano, ocorrerá um show de música popular brasileira, com entrada gratuita, no Centro Cultural UFG, a partir das 19h.
Acesse aqui a programação.
Fonte: Secom UFG
Categorias: Resistência Humanidades Jornadas pela Democracia Reitoria