Série "The Boys" estimula debate sobre desafios atuais da comunicação
Com base no seriado, pesquisadora da UFG reflete sobre o papel das mídias e do jornalismo
Pôster da quarta temporada de "The Boys": tensão é ampliada com discursos extremistas de um líder intolerante e supremacista (Imagem: Reprodução)
Eduardo Bandeira
Vigor, honra e coragem são valores frequentemente explorados na ficção ao descrever a figura dos heróis. Entre os exemplos emblemáticos está a narrativa do alienígena que busca refúgio na Terra e se torna jornalista, escondendo sua verdadeira identidade sob o terno que oculta o traje azul e a capa vermelha, usados por ele enquanto combate o crime. No entanto, nem todas as narrativas seguem essa tradição heroica. Um exemplo é a série "The Boys", que subverte os valores tradicionais ao explorar um mundo onde super-heróis são corporativos e frequentemente corruptos.
Na trama, esses "supers" são manipulados por grandes empresas e muitas vezes se envolvem em comportamentos moralmente questionáveis, desafiando a concepção típica de heroísmo. A série examina temas como poder, corrupção e moralidade, e oferece uma visão crítica e satírica do gênero de super-heróis. Apesar de ser uma ficção seriada, "The Boys" estabelece diversas analogias e suscita questionamentos profundos.
Uma das principais reflexões que a série aborda é em relação à comunicação. Com a evolução tecnológica e a rápida disseminação de informações, o jornalismo enfrenta o desafio crescente de combater a disseminação de narrativas distorcidas e as bolhas sociais criadas deliberadamente pelas empresas de comunicação. Em um cenário onde a verdade dos fatos é frequentemente obscurecida a favor de agendas específicas, o papel do jornalismo em promover a transparência e a precisão torna-se ainda mais crucial. E esse é um dos debates suscitados pela série.
Os super-heróis Luz-Estrela e Capitão Pátria são antagonistas na série, utilizando a mídia para promover interesses e valores (Imagem: Reprodução)
Entre a realidade e a ficção
Séries como "The Boys", ao explorarem a manipulação da informação e a polarização na sociedade contemporânea, ampliam o debate sobre como a mídia pode ser usada para influenciar massas e moldar percepções públicas. A série não apenas entretece uma trama complexa e intrigante, mas também promove uma reflexão provocativa sobre os desafios enfrentados pelo jornalismo na era da pós-verdade.
No seriado, os super-heróis não realizam salvamentos sociais por meio de uma benevolência interior. Pelo contrário, são gerenciados e assessorados por uma empresa, a Vought International, farmacêutica que os criou a partir de uma fórmula química, o Composto V. Para defender seus interesses e enaltecer as atividades do principal grupo de super-heróis do mundo – Os Sete –, a empresa explora sua ampla presença na mídia, incluindo televisão, redes sociais e cinema. Inclusive, entre a realidade e a ficção, uma página na rede social X foi criada para promover a série.
Os super-heróis estampam propagandas, participam de programas televisivos, estrelam longas cinematográficos, fazem coletivas de imprensa e vendem uma imagem de fiéis escudeiros do povo norte-americano. Na mais recente temporada, a quarta do seriado, a tensão é ampliada por um discurso extremista do líder do grupo, o caricato Capitão Pátria. Isso provoca uma divisão entre os apoiadores extremistas dessa figura intolerante e supremacista, e aqueles aliados à causa da nobre heroína Luz-Estrela, que representa os interesses sociais.
Os espaços midiáticos são disputados pelos personagens que constroem a polarização na narrativa da série. Cada lado utiliza a mídia e a informação para promover seus próprios interesses e valores. O lado extremista recorre às fake news e à manipulação da mídia, promovendo o negacionismo, o terraplanismo e se utilizando das lutas sociais para fins comerciais e empresariais. Enquanto o outro lado recorre aos furos jornalísticos, fontes testemunhais e à investigação de dados.
Espoleta, super-heroína que surge na quarta temporada de "The Boys", se vale de mentiras para descredibilizar sua rival (Imagem: Reprodução)
Disputa de narrativas
Apesar de fictício, esse pano de fundo retrata com sagacidade os desafios trazidos pela comunicação na atualidade. Para refletir sobre a maneira como as mídias digitais são utilizadas, o Jornal UFG conversou com a professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal de Goiás (UFG), da linha de pesquisa Mídia e Cidadania, Ângela Teixeira de Moraes.
Ângela explica que as mídias digitais podem ser discutidas a partir de dois principais pontos de vista: por parte de quem produz conteúdo, e por parte das plataformas que impulsionam os conteúdos para fins comerciais. No primeiro ponto, tem-se, como em nenhuma outra mídia, a possibilidade de se criar conteúdos com muito menos mediação, sem muitos controles, como é o caso da utilização realizada pelos polos da série, que defendem os dois super-heróis. A professora também destaca a liberdade acentuada das mídias sociais, que possibilita a manifestação de opiniões e inverdades, como ocorre no caso dos apoiadores de Capitão Pátria na quarta temporada, que mascaram o extremismo por meio das fake news.
Pela perspectiva das plataformas, os conteúdos, por mais antiéticos e absurdos que possam ser, caso rendam cliques, são disponibilizados em larga escala, estratégia utilizada pela Vought para manter seus super-heróis populares.
O fenômeno da desinformação, que inclui a produção de fake news, já era conhecido em contextos de guerra, comenta Ângela. "A mentira servia para confundir o inimigo". A estratégia pode ser identificada, por exemplo, na nova temporada da série da Prime Vídeo, com a personagem Espoleta, que se vale das mais diversas mentiras em relação à personagem Luz-Estrela para descredibilizá-la.
Papel social do jornalismo
Sobre a maneira como séries como "The Boys" retratam a realidade, a professora esclarece que mesmo não partindo de fatos reais (exceção feita aos documentários), as obras audiovisuais podem fazer pensar e refletir sobre os aspectos da realidade. Ela destaca o papel social do jornalismo, que preza pela verdade factual, e tem por dever ético se aproximar da forma mais correspondente possível dos acontecimentos que relata.
Mesmo que representada em um ambiente ficcional, o perigo da manipulação da mídia carece de imunização por parte dos indivíduos, acredita a professora. "As pessoas precisam se informar a respeito do universo das mídias, em especial as abrigadas pelas plataformas digitais, onde o problema é mais recorrente. Devem checar as informações, não acreditar prontamente em tudo que veem ou leem. Procurar em mais de uma fonte de informação. Veículos sérios, institucionais, devem ser buscados para ajudar a confirmar se aquela informação é corroborada", orienta Ângela.
Fonte: Secom UFG
Categorias: Arte e Cultura Fic