
Especialistas comentam pesquisa que indica declínio no hábito de leitura dos brasileiros
Quase metade dos entrevistados pelo disseram não ter tempo para ler
Acesso ao livro é apontado por especialistas como um dos fatores que distancia pessoas da leitura (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
Eduardo Bandeira
O hábito de leitura dos brasileiros está em queda. Dados da última pesquisa Retratos da Leitura no Brasil mostram que, pela primeira vez, o número de brasileiros que não leram nenhum livro nos três meses anteriores à pesquisa superou o dos que leram. Segundo o levantamento, 53% dos entrevistados não leram nem parte de algum livro – físico ou digital. No Centro-Oeste, esse percentual é de 47%.
Se levada em consideração a leitura de um livro inteiro, a proporção cai para 27%. Além disso, 46% dos entrevistados afirmaram não ler por falta de tempo. A pesquisa ouviu 5,5 mil pessoas em 208 cidades brasileiras e foi divulgada em novembro do ano passado.
A professora da Faculdade de Letras (FL) da Universidade Federal de Goiás (UFG) Neuda Lago, especialista em literatura inglesa, explica que a sociedade hiperconectada privilegia múltiplas atividades simultaneamente, reduzindo o tempo dedicado à leitura. Além disso, o acesso ao livro físico, devido aos custos e à falta de bibliotecas equipadas, também afasta os brasileiros do hábito de ler.
O clima também pode influenciar a frequência de leitura. Em países frios, como Noruega e Suécia, os índices de leitura são significativamente maiores. Dentre outros fatores, isso ocorre porque as pessoas passam mais tempo em ambientes fechados. No Brasil, o calor e a cultura de atividades ao ar livre podem reduzir a predisposição à leitura.
Percentual de leitores e não leitores no Brasil ao longo dos anos (Fonte: Instituto Pró-Livro)
A diminuição do padrão de leitura pode trazer consequências graves. Neuda enfatiza que a leitura vai além do lazer, sendo essencial para o desenvolvimento cognitivo, emocional e social. Sua ausência pode impactar a capacidade de concentração, a criatividade e o pensamento crítico das novas gerações.
A professora também alerta para o consumo rápido de conteúdos fragmentados, como postagens curtas e vídeos rápidos nas redes sociais. Esse hábito reduz a capacidade de concentração e favorece uma leitura superficial, dificultando o desenvolvimento de um pensamento crítico mais elaborado.
"Temos que considerar que a leitura é um dos meios centrais pelos quais desenvolvemos nossa capacidade crítica. Quando uma pessoa lê, ela é desafiada a analisar, interpretar, questionar ideias e conceitos, e a pensar em argumentos", destaca Neuda.

Perda da cognição
Com a queda no hábito de leitura, a professora alerta para o risco de formação de uma geração com menor capacidade argumentativa. Além da literatura, a leitura de textos densos – filosofia, política, história, jornalismo – amplia o vocabulário e aprimora a construção do raciocínio, habilidades fundamentais para a compreensão do mundo e para o exercício da cidadania.
"Em uma sociedade onde o hábito de leitura diminui, há o risco de formar gerações mais suscetíveis à manipulação da informação, ao pensamento raso e à aceitação passiva de ideias sem a devida reflexão crítica", reflete Neuda.
"Ao deixar de ler narrativas literárias, muitas pessoas se privam de experiências que as permitem entender e sentir as dificuldades e os dilemas de outras pessoas. A literatura é uma ferramenta poderosa na construção de uma sociedade mais tolerante e compassiva. Sem ela, pode-se observar um aumento da polarização e da dificuldade de diálogo, pois as pessoas não são treinadas para se colocar no lugar do outro, algo que é crucial para o debate saudável em qualquer sociedade", pontua.
Neuda comenta que, a longo prazo, a diminuição da leitura pode também resultar na perda da profundidade cognitiva das futuras gerações. A leitura exige um exercício mental contínuo de compreensão, interpretação e, muitas vezes, de imaginação criativa, processos que ajudam a fortalecer a memória, o raciocínio lógico e até mesmo a capacidade de resolver problemas de forma inovadora.
Portanto, segundo ela, essa queda no hábito de leitura afeta não apenas o indivíduo, mas toda a sociedade, minando sua capacidade de refletir, argumentar e dialogar de forma profunda e construtiva. O impacto disso vai muito além do simples número de livros lidos: ele reflete diretamente a qualidade de pensamento de uma sociedade, o que reverbera em suas atitudes sociais, políticas e culturais.
A experiência da leitura
A jornalista, filósofa e escritora Liliane Prata também demonstrou preocupação com os dados da pesquisa, mas relatou que não a surpreendem. O desafio, segundo Liliane, é transformar leitores dispersos e hiperestimulados digitalmente em leitores mais atentos, promovendo a leitura como uma experiência interna e significativa.
O ritmo também é, de acordo com a comunicadora, algo que muda do mundo on-line em relação ao mundo do livro, que tem outro ritmo e convida os indivíduos a estar no mundo refletindo a partir de outro viés.
Liliane diferencia a "leitura petisco", caracterizada por fragmentação e rapidez no consumo digital, da "leitura de fôlego", que exige tempo, compromisso e continuidade. Para ela, apesar de formatos curtos oferecerem conhecimento relevante, não substituem textos mais longos, assim como ficção, ensaio e poesia possuem impactos distintos e não são intercambiáveis.
Ao abandonar a leitura aprofundada, perde-se em subjetividade e pensamento crítico, tornando essencial equilibrar diferentes formas de leitura para uma compreensão mais ampla e reflexiva do mundo.
A jornalista destaca o valor do consumo de conteúdo on-line, como podcasts, YouTube e publicações em redes sociais, onde é possível encontrar desde entretenimento até reflexões profundas. No entanto, ela observa que criadores de conteúdos mais densos costumam ter um repertório construído pela leitura de livros.
Para ela, apenas consumir materiais virtuais, por mais ricos que sejam, não é suficiente para ampliar a visão de mundo – a leitura continua sendo fundamental nesse processo.
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Liliane Prata, escritora: "leitura petisco" se contrapõe à "leitura de fôlego" (Foto: Arquivo Pessoal)
Falta reflexão crítica
Apesar de ver muita criatividade no ambiente on-line, o principal problema, de acordo com Liliane, é a falta de profundidade e reflexão crítica mais elaborada. "O excesso de mundo on-line é um chamado para a dissociação interior, para a fragmentação que nos separa de nós mesmos e do outro".
"É preciso associar leitura e prazer – o prazer de aprender e de se expandir. As cidades precisam de espaços onde as pessoas possam se esparramar e ler, além de pegar livros emprestados. O ambiente formal das bibliotecas pode não ser convidativo para aqueles habituados ao consumo digital. Penso nesses pontos de leitura, e também nos pais lendo em casa – os filhos verem os pais lendo talvez funcione melhor do que os pais mandarem os filhos lerem. Também acredito que o tempo nas redes sociais e na internet em casa deve ser regulado. Felizmente, algumas escolas já têm adotado essa prática", comenta Liliane.
Uma leitura variada está, de acordo com a escritora, entre as principais formas de alimentar o amor pela leitura, mesclando a leitura de livros clássicos, contemporâneos, brasileiros, de outros países, escritos por autores de diferentes perfis, gêneros, abordagens, estilos, cor de pele, orientação sexual e classe social.
Liliane observa que, enquanto o excesso de interação on-line tende a isolar as pessoas, a literatura tem o poder de ampliar a empatia. Embora não promova uma salvação coletiva – uma vez que o mundo já enfrentava desafios antes do advento da leitura digital –, ela acredita que pode, sim, salvar individualmente e melhorar coletivamente.
Para ela, a literatura oferece um caminho para encontros mais enriquecedores com o mundo e para a vivência mais profunda da sensação de estar vivo, funcionando como uma ferramenta para cultivar compreensão e conexão entre os indivíduos.
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Fonte: Secom UFG
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