
Prosa científica na mesa do bar
Pint of Science, encampado em Goiânia pela UFG, ajuda a popularizar a ciência
Combinação entre petiscos e ciência é uma das propostas do Festival Pint of Science (Foto: Evelyn Parreira/Secom UFG)
Luana Borges
Enquanto petiscavam no barzinho e tomavam suas bebidas geladas após um dia de trabalho ou estudo, cerca de 220 pessoas puderam ter um happy hour diferente em Goiânia. Dos dias 19 a 21 de maio, de segunda a quarta-feira, quem foi ao Rio Bahia Restaurante Bar, no Setor Marista, pôde contar – para descansar da rotina atribulada – com um bate-papo leve e descontraído sobre ciência e sobre arte. Essa foi a proposta do Pint of Science 2025, festival de divulgação científica nos bares que, na capital goiana, foi organizado pela Universidade Federal de Goiás (UFG).
Acesse aqui as fotos do evento.
Na edição deste ano do festival, as discussões passaram por múltiplas áreas do conhecimento. Na segunda-feira (19/5), no Rio Bahia, entre bandejas que circulavam com variados tipos de porções e espetinhos – destaque para os pasteizinhos de carne e queijo –, figurava uma pesquisadora proeminente. Entre as variadas mesas do lugar (lotado de familiares, amigos e crianças), estava a professora da UFG, Carolina Horta, que figura na lista dos pesquisadores mais influentes do mundo, segundo levantamento da Universidade de Stanford e da editora Elsevier, realizado no ano de 2023.
Ela é a única mulher – entre os nove cientistas da UFG listados – a aparecer no ranking. Referência internacional nas áreas de Planejamento de Fármacos, Química Medicinal e Química Computacional, era sobre esses assuntos que, despretensiosamente, ela conversava com o público. As pessoas, que estavam ali naquela segunda para descansar, eram convidadas para uma espécie de ócio produtivo.

De repente, ciência
E por que não, no momento de lazer, descobrir utilidades científicas que os frequentadores do bar nem sabiam existir? – este era o tom com o qual Carolina Horta iniciava sua palestra sobre Inteligência Artificial (IA) aplicada a desenvolvimentos de fármacos. Horta explicou como a IA – de maneira segura e economicamente viável – pode ajudar a acelerar a produção de medicamentos. Sua pesquisa, empreendida em equipe no Laboratório de Planejamento de Fármacos e Modelagem Molecular (LabMol) da UFG, prioriza o uso da tecnologia para o combate a doenças negligenciadas, tais como Zika, malária ou Chagas.
Como explicou a estudiosa, para que um medicamento chegue às prateleiras das farmácias, são necessários de dez a 15 anos de pesquisa, com valores investidos que podem chegar a 13 bilhões de dólares. "Como a IA está mudando essa realidade? Ela consegue acelerar esse processo", explicou. Para ficar palpável aos frequentadores do bar, a cientista retomou uma realidade muito marcante na memória de todos: a pandemia de covid-19.
Segundo ela, a fase de testes pré-clínicos com substâncias com potencial promissor para o tratamento da doença, que levaria até dois anos sem IA, foi acelerada para apenas dois meses. Quem estava ali, no clima do barzinho, era assim convencido de que, para aplicações à saúde humana, nas quais cientistas correm contra o tempo para evitar mortes, a Inteligência Artificial torna-se crucial.
"A IA não é algo novo. O termo é de 1950 e hoje vivemos a terceira onda dela. Mas por que, agora, ela veio para ficar? Porque hoje temos grandes quantidades de dados. E dados de qualidade", explicou Carolina Horta. Os modelos são treinados e preparados para avaliar compostos químicos: testa-se cada átomo de carbono com relação à atividade, inatividade ou toxicidade quanto à célula. Isso significa que – antes dos testes clínicos em humanos – o modelo consegue avaliar, com alta precisão, quais são as moléculas bioativas para diferentes doenças. Economiza-se, assim, tempo e dinheiro.

Open Zika
Parece difícil lembrar mas, antes da pandemia do coronavírus, um outro quadro viral alarmava a população, sobretudo as mulheres grávidas, temerosas de que seus bebês fossem acometidos pela microcefalia, uma condição grave associada à infecção da mãe, durante a gravidez, por Zika vírus. Foi pensando no drama dessas mulheres, muitas vezes negligenciadas pelo poder público, que Carolina Horta e sua equipe tocaram o projeto Open Zika.
Trata-se de uma parceria com a IBM, que forneceu a rede de computadores. Orquestrados pelos cientistas, esses equipamentos fizeram a triagem de 30 milhões de compostos com 10 proteínas do vírus da Zika, que resultaram em 10 tipos de modelos. "São substâncias químicas bastante promissoras para o combate à doença", explicou a professora. Os modelos de IA, desenvolvidos pelo projeto, estão disponíveis no site do LabMol, fornecendo um suporte ferramental bastante utilizado pela indústria farmacêutica.
A pesquisadora, diante do público do barzinho, relembrou esses casos para fazer pensar: a Inteligência Artificial, de acordo com ela, não vai dominar o mundo. "O que vai prevalecer é a mistura do homem e da máquina. Mas isso deve ser feito com regulamentação e ética". Ao final do bate-papo, um quiz interativo – uma espécie de joguinho respondido pelo celular – foi feito com a plateia: quem acertou mais respostas sobre a prosa, e em menor tempo, ganhou brindes do evento.

Olhem para o copo
Da Química Medicinal – tema de segunda-feira – caminhou-se para a Ecologia: o equilíbrio dos ecossistemas no Cerrado, o monitoramento dos desmatamentos e a preservação das águas deste bioma. Tudo isso foi debatido com os frequentadores do Rio Bahia, mas sem a linguagem cifrada dos cientistas, com foco na abertura que o próprio cotidiano pode propiciar à ciência.
As professoras palestrantes de terça-feira (20/5) buscavam os elementos do bar – da cerveja consumida à carne disposta nos pratinhos – para que o público pudesse pensar sobre a realidade que o cercava: "quantos litros de água vocês acham que são necessários para que se produza este copo de cerveja à frente de vocês? Para cada 250 ml de cerveja foram gastos, em toda a cadeia, 75 litros de água". Era assim que a cientista e professora Elaine Silva abria sua palestra.
Ela é coordenadora do Laboratório de Sensoriamento Remoto e Geoprocessamento (Lapig) da UFG. O Lapig, que integra a rede MapBiomas – sendo um de seus fundadores –, é outra referência internacional que marcou presença no Pint of Science. Com pouco mais de 30 anos de atuação, no laboratório realizam-se pesquisas para monitorar paisagens naturais e antrópicas. Os pesquisadores fornecem mapas e dados, constantemente atualizados, que cobrem não só o Cerrado, mas todo o território nacional, e que hoje são acionados por cientistas brasileiros e de países como Holanda, Áustria, Estados Unidos, Argentina e Paraguai.
Além de parcerias nacionais – com a Embrapa, o IBGE ou o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, dentre outras –, órgãos como a Nasa ou a Universidade de Stanford/Carnegie, dos Estados Unidos, também desenvolvem projetos em parceria com a UFG.

Matas perdidas
Pelos mapas do Lapig e pela explicação da professora Elaine, quem estava atento podia perceber que o Cerrado não está distante da cidade e da vida, mas está na mesa posta, no gesto cotidiano. Pelos dados revelados, descobre-se que o Brasil perdeu 15% de sua massa de água desde a década de 1990. Tal perda acentuada, como explicou a professora, se deve ao desmatamento desenfreado.
Apesar da redução da área desmatada no Brasil em 2024 – o desmatamento caiu em 32% –, a situação continua alarmante. O país já perdeu cerca de 9,88 milhões de hectares de vegetação nativa. "É como se uma área equivalente ao estado de Pernambuco inteiro tivesse desaparecido", comparou Elaine Silva. E mais: "apesar da redução, o Cerrado continua o bioma mais pressionado: 53% da área desmatada se encontra nele. Isso se dá pelo atrativo preço da terra, por ser uma topografia relativamente plana, por incentivos governamentais que visam um modelo de investimento para a expansão agropecuária".
O Maranhão – explicou Elaine – é o Estado com maior área desmatada do país: justamente por ainda apresentar mata nativa. No Piauí, o município de Santa Filomena chegou a registar 965 hectares desmatados por dia. Ao escutar a professora, o público participou. Em diálogo, algumas saídas eram pensadas. "Nossos estudos mostram que 97% da vegetação perdida é para a produção agropecuária. Como resolver isso?". Os frequentadores do bar davam palpites que iam da redução do consumo de carne ao veganismo; das boas práticas de uso de solo à efetiva fiscalização.
Mil pratos
As terras do Cerrado, de tão interconectadas com o fluxo das águas do continente, e de tão importantes para todo o planeta, também atraem para si pesquisadores de outros países – que fazem de Goiás, por amor e dedicação ao bioma, a sua casa. Foi o caso da professora Luísa Carvalheiro, portuguesa que atua como docente da UFG, dedicando-se a estudos que tratam de ecossistemas, agroecologia, polinização e alterações no solo e na flora do Cerrado. Ela esteve presente no Pint of Science, em uma palestra conjunta com Elaine Silva.
Luísa também foi incluída na lista de professores mais influentes do mundo: em 2018, a pesquisadora integrou a Highly Cited Researches, que reúne os pesquisadores mais citados em artigos publicados em um período de dez anos. O ranking possui cerca de 4 mil pesquisadores. Doze atuam no Brasil. Luísa entre eles.
No Pint, na terça (20/5), entre as cerca de 70 pessoas que estavam no bar só naquele dia e que ouviam a pesquisadora de destaque internacional, estava também sua filha, de 10 anos. Este fato levou a professora Nádia Costa (Faculdade de Odontologia/UFG), uma das organizadoras do evento, a mencionar: "temos de dar destaque a essas mulheres que produzem ciência de ponta no interior do Brasil. Elas são citadas lá fora, por pares internacionais. São pesquisadoras, são referências. E são mães. Queria pedir uma salva de palmas a elas" – Nádia referia-se à Luísa Carvalheiro e, ainda, à Carolina Horta que, na noite anterior, também estava acompanhada de seus dois filhos.
O público retribuía. Ali a ciência, discutida em meio aos desenhos da meninada – dispostos sobre a mesa entre cestinhas de petiscos e copos de bebida –, mostrava que era feita, pelas cientistas mães, a partir de um múltiplo equilibrar de pratos.
Leia também: Público do ThorDön entra no clima do Pint of Science promovido pela UFG
Luísa Carvalheiro foi prestigiada pela reitora da UFG, Angelita Lima (à esq.), e por Nádia Costa (Foto: Luana Borges)
Investimento
Luísa Carvalheiro tem doutorado em Bristol, na Inglaterra, e três pós-doutorados – Brasília (UnB), Leeds (Inglaterra) e Pretória (África do Sul) –, com artigos publicados em vários países. No bar, ela explicava a especificidade das plantas do Cerrado. "Elas evoluíram de forma a sobreviver neste solo, que é pobre em nutrientes. Por isso, essas plantas precisam ter este sistema radicular bem profundo; para sobreviverem, elas crescem em profundidade e captam as reservas hídricas profundas neste solo", explicou. Luísa mostrou que este sistema é fundamental para a manutenção do regime de chuvas. "Tirar essa água que está na profundidade e trazê-la para a atmosfera: isso é super importante para manter a umidade do ar".
Para além do regime hídrico, a cientista portuguesa também fez com que o público do Rio Bahia olhasse para a própria mesa. "Essa comida que chega ao vosso prato? Ela precisa de polinizadores". A professora explicou que 70% do que é produzido no Brasil depende de agentes que levam o pólen de uma flor a outra, que levam as sementes de uma região a outra. São insetos, mosquitos, borboletas, besouros, moscas, formigas, vespas, aves, e, até mesmo, os morcegos – "eu não tenho medo deles", brincou a estudiosa — que prestam este serviço essencial.
Com a monocultura e o desmatamento, há a drástica redução dos polinizadores no meio ambiente. Neste ritmo, perguntou Luísa, "quanto a gente perderia se todos os polinizadores desaparecessem? Perdemos R$ 43 milhões em 2017. A biodiversidade é mais do que contar espécies. A biodiversidade é investimento".
Cyber-instrumental
Após dois dias pensando em como melhorar a vida a partir da preservação ambiental e da Inteligência Artificial em auxílio da população – e não em seu prejuízo –, o último dia do Pint of Science, no Rio Bahia, foi dedicado à pausa da arte. O público pôde ouvir, na quarta-feira (21/5), o multi-instrumentista e professor da Escola de Música e Artes Cênicas (Emac/UFG), Everton Luiz.
Ele tocou flauta, acordeão e clarinete. Enquanto falava ao público a história de ritmos como o choro, forró ou bossa nova, e mesmo de sons pouco conhecidos, como o daró ou o opanijé, o músico fazia demonstrações com seus instrumentos. Carinhoso e 1x0, de Pixinguinha, e Wave, de Tom Jobim, eram apresentadas na calçada do bar, enquanto carros passavam e pessoas tocavam suas prosas nas mesas.
Everton, primeiro, levou o público a conhecer os ritmos para, só depois, falar de sua pesquisa: e não é que as células rítmicas brasileiras vêm integrando trilhas sonoras de games? O professor apresentou, e fez um gameplay com o público – com destaque para o menino Heitor Gualberto Costa, 11 anos, que jogou com o professor –, o jogo Cyberwar, desenvolvido inteiramente no Brasil por uma equipe que se situa entre os estados de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Pará.
Ao público do bar, o músico mostrava uma outra área de atuação, com boa perspectiva financeira. "Jogo é arte: tem narrativa, tem trilha sonora, tem desenhos. É 90 % arte". Para Everton Luiz, há neste campo – incluindo aí a linguagem de programação – uma vasta área para atuar. Até o final do ano, o Cyberwar, com trilha sonora composta pelo docente da UFG, trazendo elementos que vão da bossa ao maracatu, estará disponível para Nintendo, Xbox e Playstation.
Instrumentos tocados e gameplay: universo lúdico para Everton Luiz (Fotos: Luana Borges)
Londres à brasileira
O festival Pint of Science, surgido em 2013 em Londres, foi exportado para vários lugares do mundo. Na edição de 2025, foram 27 países participantes e, só no Brasil, 169 cidades. Todas as prosas científicas nos botequins e restaurantes ocorreram de forma simultânea, o que faz com que o festival seja considerado um dos maiores do mundo em termos de divulgação científica.
Em 2025, o Brasil teve o maior número de cidades participantes, seguido da Espanha, onde o Pint foi realizado em 75 cidades, e da França, com 61 municípios que aderiram à ideia. Pela variedade de temas e pelo interesse – expresso nas perguntas feitas, durante os três dias, às cientistas e aos cientistas –, a Secom/UFG e a Pró-Reitoria de Pós-Graduação (PRPG), organizadores do evento, comprovaram: os goianienses pareceram levar a sério a letra de Milton Nascimento e Fernando Brant, na canção Saudade dos Aviões da Panair — "nada de novo existe neste planeta que não se fale aqui… na mesa de bar".
Daniela Melo (ICB) coordenou as atividades no Rio Bahia, juntamente com Nádia Costa (FO) (Foto: Evelyn Parreira/Secom UFG)
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Fonte: Secom UFG
Categorias: divulgação científica Institucional Secom PRPG