
Feira da Marreta: patrimônio cultural e resistência em Goiânia
Pesquisadora da UFG revela como a feira de objetos usados desafia consumo e ganha reconhecimento como espaço de memória e cultura
De aparelho de fax a panelas e secador de cabelo: objetos usados são dispostos no chão na Feira da Marreta (Foto: Mana Rosa)
Anna Paulla Soares
Se você é de Goiânia ou região, possivelmente já ouviu falar sobre uma feira que atravessa gerações, onde as pessoas comercializam desde alimentos a objetos inusitados, como dentaduras ou câmeras fotográficas. A Feira da Marreta é realizada todas as manhãs de domingo no Setor Nova Vila, próximo à 5ª Avenida.
No Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal de Goiás (UFG), a museóloga Mana Rosa estudou a feira para produzir sua tese de doutorado, intitulada Objetos que circulam: perspectivas da cultura material para o estudo da Feira da Marreta em Goiânia (GO), sob orientação da professora Manuelina Duarte Cândido.
No estudo, Mana Rosa percebeu que o local reflete uma crítica ao consumo e à obsolescência dos objetos, explorando a reutilização e o reaproveitamento de itens. A pesquisa envolveu observação participante e entrevistas com frequentadores e vendedores, buscando entender a circulação dos objetos e suas segundas vidas.
O estudo mostra que os domingos costumam ser os dias favoritos para a realização de feiras de segunda mão. Ainda assim, pelo calendário cristão e a tradição, são considerados dias de descanso e lazer. Essas feiras podem transformar locais como estacionamentos, praças, vielas, entre outros espaços, que são ressignificados em um novo sentido social.
No entanto, as feiras também são festa – feria significa festa em latim. A origem da palavra está relacionada à reunião de mercadores em espaços públicos nos dias de celebração religiosa, o que ocorria, preferencialmente, aos domingos.
Na Feira da Marreta, embora haja pontos de vendas cadastrados pela prefeitura, existe uma quantidade significativa de vendedores que se ajeitam em pequenos espaços nas calçadas, onde podem deixar seus objetos à venda visíveis. Para tornar a experiência etnográfica mais imersiva, a pesquisadora utilizou relatos de vendedores, sem expor suas identidades.
Um exemplo ilustrado por Mana foi a aquisição de um porquinho de plástico, aparentemente sem utilidade, mas que guardava uma história curiosa: o feirante havia encontrado o porquinho como um artefato arqueológico após adquirir um terreno e escavá-lo. Segundo o colecionador, o porquinho teria cerca de 100 anos e, por isso, seria considerado uma "antiguidade" valiosa. O objeto foi vendido por R$ 60 após seis meses de exibição na feira.
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Porquinho tido como "artefato arqueológico" foi vendido por R$ 60 depois de seis meses na Feira da Marreta (Foto: Mana Rosa)
Homenagem ao pai
A museóloga explica que a pesquisa teve um personagem indispensável durante todo o processo: seu pai, José Rosa, repórter fotográfico e artista, falecido em 2014. Ela ressalta que a tese é uma homenagem ao pai, que a apresentou à Feira da Marreta quando ainda era adolescente.
Ela conta que José possuía uma paixão por objetos que podem ser reinventados ou reaproveitados. Isso a motivou a ver a feira além do olhar estigmatizado perpetuado pela sociedade, de que o espaço venderia apenas "objetos roubados". A defesa da tese ocorreu no dia do aniversário de seu pai, no dia 14 de novembro de 2023.
Antes do falecimento do pai, em 2012, durante um intercâmbio acadêmico em Portugal, ao visitar a Feira da Ladra – também conhecida pelo comércio de segunda mão –, Mana teve a ideia de pesquisar a Feira da Marreta pela primeira vez.
Contudo, foi em 2018 que ela de fato começou a estudar a feira, para elaborar seu projeto de pesquisa, quando fazia parte do Grupo de Estudo e Pesquisa em Museologia e Interdisciplinaridade (Geminter) da UFG, o qual ainda integra.
Patrimônio não oficial
A etnografia não possui uma conclusão, mas em suas considerações finais menciona como a Feira da Marreta é um importante patrimônio cultural de Goiânia, ainda não reconhecido oficialmente. "A pesquisa busca estimular futuras investigações, registros, inventários, documentação, intervenções artísticas sobre a feira. Como não existem muitos estudos acadêmicos a respeito do assunto, vislumbramos subsidiar futuras investigações, já que a feira oferece inúmeras possibilidades de investigação e pesquisa, acadêmicas e artísticas".
Além disso, o trabalho também busca lançar luz sobre a relevância dos mercados de segunda mão e objetos reciclados, refletindo sobre o impacto das práticas de consumo e a valorização do patrimônio cultural de Goiânia. A pesquisadora espera que sua tese possa contribuir para o combate desse estigma da feira, promover a visitação "e que ela seja considerada como as outras feiras de Goiânia, um espaço cultural importante".
Segundo Mana, apesar de a Feira da Marreta não ser reconhecida pelo pelas agências de preservação, ela pode ser categorizada como um patrimônio não oficial, pois é culturalmente relevante, significativa e validada por aqueles que se apropriam do lugar como patrimônio.
"Então, à medida que as pessoas vão conhecendo mais a Feira da Marreta, ela vai sendo preservada, porque vai despertando interesse. Eu acho que esse aumento na frequentação já é um reconhecimento do seu valor patrimonial, cultural e histórico", relata.
"A feira tem essa perspectiva de ser contra o consumo. Além desses objetos absolutamente curiosos, tem a reutilização dos objetos. A feira surge para mim como um lugar curioso de exposição e venda de objetos inusitados, muitos deles retirados do lixo e reintroduzidos no comércio", acrescenta.
Coletivo Marreta
No fim de 2022, durante a produção de sua tese, juntamente a amigos de diferentes áreas, Mana Rosa formou o Coletivo Marreta, uma iniciativa coletiva que surgiu de forma espontânea com o objetivo de produzir conteúdo sobre a Feira. Além de Mana, como antropóloga, o projeto contava com Tatiana Leal (audiovisual), Pedro Constantino (produção musical/ciências sociais), Taiana Martins (produção cultural) e Cássia Oliveira (artes visuais) que, inclusive, é professora do curso de Biblioteconomia na UFG.
O projeto realizou ações como a criação de produtos audiovisuais e havia a expectativa da produção de um longa-metragem, que foi aprovado pela Lei de Incentivo à Cultura, mas não houve a captação de recursos e o grupo acabou se desfazendo antes que o projeto fosse concebido.
Apesar de o coletivo ter se distanciado, a antropóloga afirma que não se pode dizer que seja o fim definitivo do Coletivo Marreta, pois há sempre a possibilidade de retornarem às atividades em algum momento futuro. A pesquisadora também ressaltou a importância da união de olhares interdisciplinares e afirmou que a Feira da Marreta é um potente campo de investigação para diversas áreas.
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Fonte: Secom UFG
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