
Fotolivro registra cultura ballroom em Goiânia
Com raízes na cultura LGBTQIA+ negra e latina, os bailes unem performance, identidade e luta
Performance capturada pelo fotógrafo Rafael Caixeta compõe fotolivro sobre a cultura ballroom (Foto: Rafael Caixeta)
Eduardo Bandeira
Em Performance Realness – Um fotolivro sobre a expressão nos balls de Goiânia, o fotógrafo e publicitário Rafael Caixeta transforma imagens em afeto e memória coletiva. A obra, fruto do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em Publicidade e Propaganda na Universidade Federal de Goiás (UFG), celebra a força e a beleza da cultura ballroom na capital goiana, em um gesto de reconhecimento e homenagem à comunidade da qual o próprio autor faz parte.
Com orientação do professor Sálvio Juliano Farias, da Faculdade de Informação e Comunicação (FIC), o livro mergulha nas vivências e expressões que tomam forma nas noites dos balls. Rafael ainda estuda a possibilidade de viabilizar a obra ao público e, por enquanto, o acesso pode ser solicitado diretamente ao autor.
Nascido nos subúrbios de Nova York na década de 1960, o ballroom é um movimento político, cultural, artístico e social da comunidade LGBTQIA+. Unindo moda, dança (com destaque para o voguing), música e competição, essa expressão serve como forma de resistência, especialmente para pessoas negras, trans e de minorias étnicas.
Ao longo dos anos, a cena ballroom já foi retratada em diferentes produções culturais. Uma das mais emblemáticas é o documentário Paris Is Burning (1990), dirigido por Jennie Livingston, que mergulha na cena nova-iorquina dos anos 1980. O filme oferece um olhar íntimo sobre as vivências de pessoas negras e latinas LGBTQIA+, abordando questões de identidade, classe, gênero e sexualidade.
Com a ideia de trabalhar com fotografia desde o início da graduação na UFG, Rafael encontrou inspiração no álbum Renaissance, de Beyoncé, que também reverencia o universo ballroom. A partir daí, decidiu que sua narrativa visual seguiria o formato de um ball: os capítulos do fotolivro representam as categorias e o ritmo do evento, enquanto as imagens capturam a energia, a atitude e a performance de quem vive essa cultura.
O trabalho é sobre a visão pessoal de Rafael como fotógrafo, mas essa visão é informada por sua compreensão e identificação com a cultura ballroom. Rafael menciona que para o material do livro foi necessário cobrir diversos ballrooms que ocorriam em Goiânia. Ele relata que foram tiradas, em média, 500 fotos em cada ball, das quais ele precisou selecionar apenas cerca de 70 para o produto final.
As capas de cada capítulo, assim como a capa do livro, foram produzidas em estúdio, com pessoas que se destacam na cena ballroom de Goiânia. O objetivo era dar visibilidade a quem muitas vezes brilha nos palcos, mas nem sempre é reconhecido individualmente.
Rafael explica que os retratos feitos em estúdio permitiram valorizar a identidade e a atuação única de cada pessoa dentro do ball. Segundo ele, "quem fotografa esse tipo de evento precisa estar pronto para tudo".
"Strike a pose"
Para a seção intitulada Segura essa pose, Rafael realizou uma seleção com pessoas que se destacam nas categorias que ele definiu para os capítulos. Ele alugou um estúdio na FIC e passou várias horas fotografando. As fotos em estúdio contrastam com as imagens mais em movimento capturadas nos bailes.
Na seção Mother is Mothering, por exemplo, existe a imagem que retrata uma performer no chão, com cabelo afro, boca aberta, transmitindo força, carisma, unicidade, coragem e talento, mas também vulnerabilidade e exposição. Rafael explica que esta foto captura o momento em que a performer estava realizando um deep, anteriormente conhecido como death drop.
Ele se preparou para capturar esse momento, se agachando para um ângulo mais baixo e segurando o clique da câmera enquanto a performer descia. A performance estava relacionada a uma categoria que remete a uma "possessão", e a foto capturou a performer abrindo a boca e virando os olhos para cima, alinhado com a temática.
O autor descreve esta como uma de suas fotos favoritas, notando a boa iluminação que, por sorte, funcionou apesar de o flash ter falhado. Ele ressalta que capturar momentos assim exige preparo técnico, mas também muita sorte.
Cultura ballroom une moda, dança, música e resistência (Foto: Rafael Caixeta)
"Category is"
Durante a execução do fotolivro, Rafael observou que a moda tem um papel fundamental como forma de expressão e acessório da performance. Cada ball possui dress codes (indicação do tipo de vestimenta) e temáticas específicas que influenciam diretamente os figurinos.
Muitas vezes, esses elementos são cruciais para a participação em determinadas categorias e podem até definir a eliminação de participantes. A moda, nesse contexto, também se relaciona com o conceito de realness, ou seja, a capacidade de transmitir autenticidade em uma categoria.
Embora produções de grande mídia, como a série Pose e o próprio Paris Is Burning, tenham contribuído para popularizar o ballroom, elas retratam uma versão norte-americana dessa cultura, bastante diferente da realidade vivida no Brasil. Em Goiânia, por exemplo, o ballroom se adapta ao ambiente e às referências locais, criando uma identidade própria.
É o caso de categorias que trazem à cena a força da cultura brasileira e latina, em uma mistura vibrante de resistência e celebração. "Eu esperava encontrar categorias que tinha visto em Pose, mas acabei me surpreendendo. Vi outras, como a de funk, uma chamada Batekú, categorias que falam da vivência latina, brasileira e goiana", comenta Rafael.
"Batekú é basicamente as pessoas rebolando bastante e ganha quem tem o melhor requebrado; eles ficam dançando, e tem batalhas, é uma coisa que, sinceramente, só brasileiros conseguem fazer", conta o fotógrafo.
Ele também destaca o ball como um espaço de celebração, mas que não se afasta das realidades duras vividas pela comunidade LGBTQIA+. Algumas categorias, por exemplo, abordam diretamente temas como o HIV e a luta por reconhecimento e sobrevivência. Rafael conta que se emocionou especialmente durante uma batalha de chant (rimas e raps), que abordava a vivência de pessoas soropositivas. Para ele, esse momento sintetizou a força do ballroom como um ato de resistência e beleza.
No Brasil, o ball ganhou categorias próprias ligadas à cultura nacional (Foto: Rafael Caixeta)
Visibilidade e resistência
O projeto de Rafael, além de artístico, possui um papel político fundamental de visibilidade e resistência, especialmente em um contexto como o de Goiânia e do Brasil, um país com altos índices de violência contra a população LGBTQIA+. O projeto busca mostrar que Goiânia tem resistência e uma comunidade queer forte e presente. Em vez de focar nas dificuldades e violências sofridas pela comunidade, o trabalho celebra a identidade, o orgulho e a forma artística e poderosa como as pessoas se manifestam.
Essa experiência pessoal de acolhimento, orgulho de ser queer, e testemunho da força e resistência da comunidade goiana, influenciou diretamente a visão política do fotolivro. Em vez de focar no sofrimento, o trabalho se tornou uma forma de dar visibilidade, homenagear e honrar essas pessoas que "não abaixam a cabeça" em um estado conservador do Brasil.
"Eu queria falar sobre a celebração da identidade dessas pessoas, sobre como elas se orgulham de ser quem são e de fazer o que fazem, de manifestar isso de uma forma tão bonita, artística e poderosa. Eu não queria que a abordagem das pessoas fosse como se elas fossem objetos de dados, sabe? Eu queria que elas fossem vistas. Quero que essas pessoas olhem para o meu trabalho e pensem: 'Eu fiz parte disso! Nossa, eu apareço nesse trabalho e estou sendo exaltado aqui'", relata Rafael.
Apesar de ter sido desafiado com questões como o cronograma, para o publicitário a experiência da cobertura fotográfica nos eventos foi transformadora, aumentando seu orgulho de fazer parte da complexa e bonita cultura LGBTQIA+, pois, segundo ele, isso permitiu compreender vivências de outras pessoas da comunidade.
"Eu me senti pertencente. Me senti acolhido por ser LGBT e por perceber que eu podia agir da forma que quisesse, sem ser julgado. É muito sobre isso, sabe? E é engraçado, porque a gente volta para a questão da performance; sendo LGBT, a gente performa o tempo todo. Então, estar ali era diferente: era um lugar onde eu não precisava performar, fingir que era outra pessoa ou algo que eu não queria ser. Foi lá que eu descobri minha feminilidade, que eu percebi que não preciso me sentir mal por ser quem eu sou. Me adentrar na cultura ballroom me ajudou a me entender. Foi muito importante pra mim", compartilha.
Rafael menciona a gratidão que sente ao Circuito Sabiá e a pessoas como Pietra Pedrosa e Paulo Henrique pela ajuda e incentivo ao longo da trajetória para registrar esses momentos, além dos integrantes dos ballrooms goianos, como Gyndoll, Fabulous, Karlizz, Andrezza, Alessandra e Dendê.
Além de um projeto de conclusão de curso, para Rafael o papel do trabalho também é divulgar essa comunidade e garantir que essas pessoas sejam conhecidas e reconhecidas. É também um convite para que o leitor conheça a cultura ballroom, um chamado para apoiar a comunidade LGBTQIA+, reconhecer a diversidade e engajar em iniciativas por um mundo mais justo.
Receba notícias de ciência no seu celular
Siga o Canal do Jornal UFG no WhatsApp e nosso perfil no Instagram.
É da UFG e quer divulgar sua pesquisa ou projeto de extensão?
Preencha aqui o formulário.
Comentários e sugestões
jornalufg@ufg.br
Política de uso
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal UFG e do autor.
Fonte: Secom UFG
Categorias: Arte Queer Arte e Cultura Fic Destaque Notícia 2