
Inteligência Artificial e seres humanos: como nossos vínculos se diferem?
De romances virtuais a casos trágicos, especialistas analisam como laços emocionais com IAs desafiam limites psicológicos, éticos e sociais
No filme Her, Theodore (Joaquin Phoenix) se apaixona por uma Inteligência Artificial (Imagem: Reprodução)
Eduardo Bandeira
Em 2013, o filme Her, estrelado por Joaquin Phoenix e Scarlett Johansson, abordou uma temática peculiar: a paixão de um ser humano por uma Inteligência Artificial (IA). No filme, Theodore (Phoenix) desenvolve uma relação especial com o novo sistema operacional de seu computador, eventualmente se apaixonando pela voz da IA, denominada Samantha (Johansson).
Apesar de ser apenas um dos filmes que abordam a complexidade das relações humanas com a tecnologia, Her ilustra uma realidade cada vez mais presente. Em janeiro de 2025, o The New York Times relatou o caso de Ayrin, uma mulher casada que, durante a ausência do marido, personalizou o ChatGPT para assumir a personalidade de um namorado idealizado.
Inicialmente encarado como uma brincadeira, o experimento evoluiu para um envolvimento emocional profundo. Ayrin passou a investir financeiramente na manutenção dessa relação virtual, chegando a pagar US$ 200 mensais por um plano premium que permitia interações ilimitadas com o chatbot, que ela nomeou de Leo.
Um caso ainda mais grave ocorreu nos Estados Unidos, onde Sewell Setzer, um adolescente de 14 anos, cometeu suicídio após ser privado de interagir com a inteligência artificial da plataforma Character.AI. O garoto havia configurado o chatbot para responder com a voz da personagem Daenerys Targaryen, da série Game of Thrones, e desenvolveu um forte vínculo emocional. Após a tragédia, a mãe do jovem processou a empresa, acusando-a de negligência e de não adotar medidas de proteção para usuários vulneráveis.
Megan Garcia afirma que o filho Sewell Setzer foi manipulado pela IA (Foto: Tech Justice Law Project)
Entre o afeto e o algoritmo
Diante de casos como esses, que expõem os limites emocionais nas relações entre humanos e inteligências artificiais, o Jornal UFG conversou com especialistas para refletir sobre o tema: a professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), Tatiana Duque, e os psicólogos Sally Gomes, doutora em Psicologia Social, e Felipe Novaes, doutor em Psicologia e professor universitário, que mantêm juntos a iniciativa Garagem PSI, um perfil no Instagram que busca aproximar a psicologia científica da sociedade com conteúdos fundamentados em pesquisas.
Segundo Sally, a intensidade dos relacionamentos entre humanos e inteligências artificiais difere em vários níveis. A psicóloga destaca o corpo e a experiência somática como critérios essenciais nessa distinção. Seres humanos são corporificados, e suas interações são permeadas por emoções, sentimentos e respostas fisiológicas – como a liberação de hormônios ligados ao prazer ou ao estresse. Já a IA não possui corpo físico, e suas respostas são baseadas apenas em algoritmos pré-programados.
"Se eu fico nervosa, vou produzir cortisol, o hormônio do estresse. Assim como, quando estou apaixonada, produzo hormônios do prazer, o que envolve o funcionamento do meu cérebro estabelecendo conexões e mobilizando neurotransmissores – algo completamente diferente do que acontece em uma máquina", explica a psicóloga.
Para Felipe, o apego à IA pode ocorrer quando ela supre necessidades emocionais que os humanos não estão conseguindo atender, como no caso de pessoas com ansiedade social ou em situação de solidão.
"Uma das coisas que pode fazer as pessoas terem essas relações ambíguas com a IA – se apaixonar, viciar etc. – é justamente o fato de as inteligências artificiais estarem suprindo necessidades que os humanos parecem estar tendo cada vez mais dificuldade de atender".
Outro ponto importante, segundo Sally, são os desafios relacionais e de desenvolvimento. Enquanto as interações humanas são repletas de obstáculos – como choques culturais, diferenças de personalidade e mal-entendidos – que impulsionam o desenvolvimento cognitivo, afetivo e social, a IA, por outro lado, é programada para agradar e tende a não oferecer desafios.
Sally explica que o ser humano é ultrassocial e, para seu desenvolvimento cognitivo, passa por uma série de desafios relacionais, ao contrário do que ocorre com a IA, que não é um outro ser capaz de desafiar ou aprimorar o repertório interpessoal.
Ao abordar a teoria de Jonathan Haidt sobre o comportamento humano on-line, a especialista explica que as interações na internet tendem a colocar o indivíduo em um "modo mais defesa". Ela expõe que, nesse ambiente digital, as formas de se relacionar permitem ações como o ghosting (sumir repentinamente em uma interação virtual) e bloqueios. Essa dinâmica on-line difere significativamente das relações interpessoais presenciais, que exigem o desenvolvimento de um repertório psicológico para lidar com conflitos e frustrações.
Além dos desafios, as relações humanas também oferecem conforto físico e emocional, como abraços, cuidado em momentos de doença e apoio em situações de vulnerabilidade – aspectos que uma IA é incapaz de proporcionar.
IA, criatividade e educação
O impacto da IA no potencial criativo humano também é amplamente debatido. Em 2023, por exemplo, a greve de atores de Hollywood teve como pauta a regulamentação do uso de inteligência artificial nesse âmbito. Já em 2025, um episódio do seriado Black Mirror retratou a produção de um filme construído inteiramente com esse tipo de tecnologia.
Para a equipe do Garagem PSI, a IA, como toda tecnologia, tem o potencial de impulsionar ou inibir a criatividade, dependendo do uso. Felipe e Sally salientam que usar a IA como ferramenta para auxiliar e melhorar o trabalho criativo é diferente de usá-la para terceirizar o processo de pensamento e criação, que é exclusivamente humano. O uso excessivo da IA pode reduzir a motivação interna para o esforço criativo, prejudicando o desenvolvimento do pensamento original.
Para Felipe, um exemplo de uso saudável da IA no aspecto criativo pode ser o que ele emprega na elaboração e adaptação de um plano de aula por meio do ChatGPT para uma turma de alunos de 20 a 23 anos, o que permite tornar o conteúdo mais didático para esse público, favorecendo a dinamicidade do conhecimento aprofundado.
De acordo com a professora do Instituto de Química (IQ) da UFG, Tatiana Duque, no aspecto do desenvolvimento da IA generativa, o Brasil tem mostrado destaque. Segundo ela, em 2024 o governo federal lançou o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, que visa aplicar R$ 23 bilhões na implementação da IA, inclusive na educação em vários níveis até 2028.
Tatiana considera esse marco como um passo fundamental para compreender esse movimento. "O debate precisa avançar porque a IA não espera que diretrizes sejam estabelecidas: ela se desenvolve, nós nos interessamos e usamos e, sem diretrizes, não há como ter um resultado desse uso positivo e isonômico".
"Não podemos esquecer que, sem diretrizes, nosso país pode facilmente ter a IA não como uma ferramenta de democratização do aprendizado, mas de segregação, pois a ferramenta é completamente suportada por tecnologia e, essa sim, pode não ser acessível sem políticas públicas adequadas", argumenta Tatiana.
Perspectivas futuras e regulamentação
Seja como no universo de Theodore em Her ou como no episódio Hotel Riverie, de Black Mirror, em que um filme inteiro é produzido por IA, uma coisa é certa: a inteligência artificial já está presente e continuará a fazer parte do cotidiano dos indivíduos. Sobre o que é possível inferir do futuro da relação do ser humano com esse tipo de tecnologia, Sally e Felipe direcionam essa responsabilidade para a maneira como será utilizada.
Na pandemia de covid-19, segundo Sally, caso a tecnologia não estivesse presente em nossas vidas, seria impossível estabelecer comunicação de qualidade em um período de distanciamento social. O mesmo ocorreu com a elaboração de uma vacina para o coronavírus em um intervalo de tempo tão curto.
A psicóloga revela que a tecnologia possui vários aspectos vantajosos quando utilizada de forma positiva e moderada. Para ela, os benefícios de qualquer tecnologia existem e são significativos, mas o problema reside no uso exagerado, que pode levar ao vício e desencadear uma série de problemas.
Algumas das consequências do mau uso da IA apresentadas por Felipe e Sally são a polarização social, o encurtamento do tempo de atenção, o comodismo de delegar o pensamento à IA – o que pode empobrecer o repertório de análise crítica – e a facilidade de acesso à informação que pode gerar uma "arrogância epistêmica", em que indivíduos com conhecimento superficial acreditam saber muito.
Sobre a regulamentação da IA, que é constantemente debatida, os psicólogos alertam para a dificuldade de encontrar o limite entre proteção e censura, expressando preocupação de que a regulamentação possa ser utilizada como arma política, favorecendo determinados grupos e censurando outros.
Para Tatiana Duque, não se pode esquecer que, sem diretrizes, a IA pode atuar não como uma ferramenta de democratização do aprendizado, criatividade ou conexões, mas de segregação, pois a ferramenta é completamente suportada por tecnologia e, essa sim, pode não ser acessível sem políticas públicas adequadas.
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Fonte: Secom UFG
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