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Ao contrário do que foi divulgado, animal é apenas uma versão modificada do atual lobo-cinzento
 
Arthur Gabriel Sucena
Junia Gabriela
Letícia Romani
Isadora Otto
Em abril de 2025, a notícia de que o lobo-terrível (Canis dirus), animal extinto há mais de 10 mil anos, teria sido trazido de volta à vida foi amplamente divulgada em portais de notícias no Brasil e no mundo. O anúncio, feito pela empresa americana de biotecnologia Colossal Biosciences, prometia a "primeira desextinção do mundo" com o nascimento de três filhotes. A empresa promoveu a divulgação com vídeos promocionais e entrevistas, o que ampliou o alcance da campanha. No entanto, o que parecia um marco histórico da ciência se revelou um caso de marketing com alguns exageros científicos e interesses econômicos, levantando questionamentos sobre a ética e a credibilidade da pesquisa científica.
A verdade, admitida em maio de 2025 pela própria Colossal Biosciences e confirmada por especialistas, é que não houve a "desextinção" do lobo-terrível. Os animais criados são, na realidade, lobos-cinzentos geneticamente modificados para se assemelharem à espécie extinta. A Colossal utilizou a técnica de edição genética conhecida como CRISPR para inserir sequências de DNA do lobo-terrível no genoma de lobos atuais, alterando genes ligados a características dos animais, como tamanho e cor da pelagem. Apesar de a cientista-chefe da empresa, Beth Shapiro, ter admitido em entrevista à revista New Scientist que os animais apresentados à imprensa não são lobos-terríveis, a Colossal Biosciences continua usando o termo "desextinção" para promover o caso.
No perfil da empresa na rede social X, um anúncio publicado em 25 de agosto convida o público a seguir a conta para acompanhar o crescimento dos dois lobos com o seguinte texto: "Conheça Rômulo e Remo – os primeiros animais ressuscitados do mundo, trazidos de volta da extinção usando DNA de fósseis com 72 mil anos. Siga-nos para ver esses lobos gigantes crescerem e descobrir as próximas espécies que estamos trabalhando para ressuscitar". O post fixado no perfil traz as mesmas afirmações na legenda de um vídeo que mostra o que seria o primeiro uivo dos dois filhotes.
Atualizações periódicas sobre o crescimento dos lobos são publicadas na rede social com o título "pupdate", um trocadilho com as palavras "puppy" (filhote) e "update" (atualização). No início de setembro, a Colossal compartilhou uma notícia publicada pela revista People, que cobre celebridades e lifestyle, destacando o fato de que, aos dez meses de idade, os filhotes são "oficialmente maiores" do que os lobos-cinzentos, espécie usada no experimento de edição genética. A matéria da People tem como fonte um artigo publicado no portal de notícias sobre entretenimento, filmes, videogames e televisão, ScreenRant. O texto explica que o editor-chefe da ScreenRant, Rob Keyes, visitou a futura sede da Colossal Biosciences, que será inaugurada em outubro.
A notícia divulga o que seria uma das primeiras evidências de que a espécie criada em laboratório e anunciada como lobo-terrível é diferente daquela cujo DNA foi usado no experimento, o lobo-cinzento. Um dos diretores da empresa, Matt James, afirmou ao editor da ScreenRant que os animais, mantidos em cativeiro, pesavam mais de 52 quilos. Em comparação, James explicou que um lobo-cinzento adulto, vivendo no Parque Nacional de Yellowstone, pesaria entre 45 e 48 quilos. O título da matéria da People usa o termo "desextintos" para se referir aos animais e afirma que há planos para produzir mais filhotes da espécie.
 
O que a ciência diz sobre "desextinção"
O anúncio da Colossal ganhou repercussão em grandes veículos internacionais no dia 7 de abril deste ano, como as revistas Time e New Yorker e o jornal The New York Times, antes mesmo da publicação de qualquer estudo científico. Um pré-print, versão de um artigo ainda não revisado por outros cientistas, só foi disponibilizado dias depois, em 11 de abril, na plataforma bioRxiv. A divulgação dos resultados da pesquisa na imprensa e nas redes sociais antes do pré-print levantou questionamentos, pois os dados disponibilizados dessa forma podem conter inconsistências ou até mesmo serem invalidados após a revisão pela comunidade científica.
O estudo, assinado por 38 autores, incluindo o roteirista e escritor de ficção científica, terror e fantasia norte-americano George R. R. Martin (investidor da empresa), não trata de "desextinção", mas sim de uma investigação sobre a genealogia do lobo-terrível a partir de genomas antigos (paleogenomas). O objetivo foi entender a origem da espécie, identificando genes associados ao seu grande porte, mas não recriá-la. Apesar disso, toda a estratégia de divulgação da pesquisa é baseada na ideia de "desextinção".
A pesquisadora e professora Thânnya Nascimento, especialista em genética de populações e biologia evolutiva da Universidade Federal de Goiás (UFG), explica que, apesar de o caso ter popularizado o termo "desextinção", recriar uma espécie em laboratório é extremamente complexo. "Quando a gente pensa em trazer uma espécie de volta, é um pouco complicado porque toda aquela variabilidade que a gente perdeu no momento da extinção é muito difícil de ser trazida novamente. A possibilidade de a gente trazer de volta toda a diversidade que representava aquela espécie é muito pequena", afirma. Segundo ela, mesmo em espécies ameaçadas com poucos indivíduos restantes, a diversidade genética já está comprometida e recuperá-la é quase impossível.
Esse é um dos pontos que têm levantado dúvidas sobre o anúncio da Colossal Biosciences. A plataforma em que o pré-print foi publicado permite que avaliadores façam comentários sobre a publicação. Um dos comentaristas questionou a técnica empregada para reconhecimento de padrões nas sequências de DNA, afirmando que "não é possível criar uma nova espécie apenas inserindo alguns genes para mudar a aparência". Críticas semelhantes são feitas por usuários nos posts da empresa em seu perfil no X. Em 27 de agosto, a empresa fez uma publicação convidando os usuários a fazerem perguntas sobre os lobos-terríveis. Um dos usuários comentou: "Geneticamente, quão próximo isso está de um lobo gigante real? É possível continuar fazendo edições genéticas para chegar cada vez mais perto? Haverá alguma possibilidade de uma correspondência exata?".
A pesquisadora e professora Lucymara Fassarella Agnez Lima, geneticista molecular do Departamento de Biologia Celular e Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), explica que o processo realizado pela Colossal foi uma modificação, não uma ressurreição ou "desextinção". "Eles selecionaram 14 genes do lobo-terrível, que eles viram que tinham diferenças em relação aos genes do lobo atual. E eles modificaram o lobo atual com essa sequência do lobo-terrível. Ou seja, é o lobo atual modificado, não é uma 'desextinção'".
Lucymara explicou ainda que a técnica permite fazer modificações genéticas que dão à espécie usada no experimento, o lobo-cinzento, a aparência do lobo-terrível, mas sem as mesmas características genéticas do animal extinto. "E aí você cria alterações fenotípicas a partir dessas modificações que você introduziu. Então, o que eles selecionaram foram genes de aumento de tamanho, de crescimento, genes que mudam a pelagem. Por exemplo, a cor do pelo, para ficar branco. Ou seja, genes que sabidamente afetam uma determinada característica fenotípica, que foram inseridos no lobo atual para que ele expressasse aquela característica. Mas é o lobo atual, não é o lobo-terrível".

Quando a pesquisa se confunde com estratégia de marketing
Apesar das críticas e questionamentos sobre os aspectos técnico-científicos da forma como a pesquisa tem sido divulgada, a Colossal Biosciences não apenas continua usando o termo "desextinção" para se referir aos lobos geneticamente modificados, como também tem anunciado a suposta "desextinção" de outras espécies. Em julho, a startup divulgou que está tentando ressuscitar o pássaro moa gigante. O projeto recebeu um financiamento milionário do cineasta de O Senhor dos Anéis, Peter Jackson. Em setembro, foi a vez do pássaro dodô somar-se à lista de possíveis animais "desextintos".
De acordo com uma notícia publicada pelo jornal britânico The Guardian, a série de anúncios de "desextinção" publicados pela Colossal Biosciences está gerando preocupações entre pesquisadores. Alguns deles afirmam que a empresa está tirando atenção de temas importantes, como a perda de diversidade que afeta diferentes regiões do planeta. Para Lucymara Fassarella, trata-se de uma questão de marketing. "Existe muita discussão a respeito de trazer espécie de volta, visto que a seleção natural atua na evolução das espécies, e as espécies que permanecem vivas estão adaptadas, naquele momento, para aquele ambiente. Então, se uma espécie foi extinta, é porque ela deixou de estar adaptada, não é?".
A startup, fundada em 2021, é financiada por investidores de capital de risco, incluindo nomes do Vale do Silício. Reportagem da agência internacional Bloomberg, de setembro, informa que a Colossal já captou US$ 320 milhões este ano e estaria avaliada em mais de US$ 10 bilhões. O interesse econômico vai além da conservação: foca no desenvolvimento de tecnologias genéticas com alto potencial comercial. A empresa está, na prática, vendendo sua expertise na técnica CRISPR. "Ela mostra que ela sabe fazer a edição genética. Então, ela pode ser contratada para fazer outros tipos de edições, para outras finalidades", explica Lucymara Fassarella.
As aplicações comerciais são vastas e lucrativas, indo do agronegócio à biotecnologia, com a criação de raças mais resistentes e produtivas e o desenvolvimento de patentes sobre técnicas de edição genômica, ao entretenimento, com a exibição de "espécies recriadas" em parques e zoológicos.
Questões éticas e ecológicas
A professora Thânnya Nascimento, do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFG, questiona o propósito de gastar tantos recursos em um projeto como esse. Ela aponta riscos ecológicos graves, como a introdução de uma espécie sem seus predadores ou presas naturais, que também foram extintos. "O que pode fazer com que essa espécie tenha uma capacidade de devastar ambientes", alerta.
As duas especialistas ouvidas pela reportagem concordam que os altos custos envolvidos poderiam ser mais bem aplicados em políticas de conservação para espécies atualmente ameaçadas. "Eu, Thânnya, penso que talvez esses recursos pudessem ser direcionados para outras áreas que possam trabalhar a manutenção da biodiversidade que a gente já tem ou para a gente poder conhecer aquilo que a gente está perdendo e nem sabe que está perdendo". A professora alerta ainda que, na ciência, especialmente na genética, uma máxima deve ser sempre lembrada: "não é pelo fato de você poder fazer que você deve".
Arthur Gabriel Sucena, Junia Gabriela, Letícia Romani e Isadora Otto são estudantes do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Goiás (UFG), sob orientação das professoras Luciane Agnez e Mariza Fernandes, coordenadoras dos projetos de extensão Ciência na Real e OJÚ.
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Fonte: FIC
Categorias: colunistas Ciências Naturais Fic
 
    





