Icone Instagram
Icone Linkedin
Icone YouTube
Universidade Federal de Goiás
prison icon

Outra concepção de segurança é urgente

Em 22/02/17 15:30. Atualizada em 23/02/17 17:15.

Pesquisadores da UFG sinalizam para a necessidade de se pensar políticas públicas para além da punição, do encarceramento em massa e da “guerra às drogas”

presídio feminino

 

Patrícia da Veiga | Fotos: ONU BR, TV UFG e Carol Garcia | Gráficos: Infopen 

 

O Brasil possui a quarta maior população carcerária do mundo, conforme o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia. Em dezembro de 2014, quando da última atualização desses dados, 622.202 pessoas estavam detidas em um sistema cujo déficit de vagas já passava dos 230 mil. Ou seja, em cada espaço planejado para custodiar 10 pessoas havia 16 – quase o dobro. Entre os presos, mais de 40% eram provisórios, 55% tinham entre 18 e 29 anos, 61,6% eram negros e 75% estudaram até o Ensino Fundamental. Na lista dos crimes mais cometidos estavam: tráfico de drogas (28%), roubo (25%), furto (13%) e homicídio (10%). Esses números indicam um problema antigo no país, porém distante da resolução: o encarceramento em massa de jovens negros, pobres e periféricos está diretamente associado a uma política de guerra às drogas e a uma mentalidade punitivista.

Uma expressão dessa questão saltou aos olhos da opinião pública logo nos primeiros dias de 2017, quando noticiadas rebeliões seguidas de massacres em presídios do Amazonas, de Roraima e do Rio Grande do Norte. Na ocasião, 134 pessoas foram torturadas e assassinadas. Na mídia, a primeira justificativa dada para a barbárie foi o conflito entre facções criminosas que gerenciam o tráfico de drogas no Brasil, grupos que desde outubro de 2016 sinalizavam ruptura em seus acordos. Simplista, o argumento chegou a ser endossado por gestores públicos, que tentaram se isentar da responsabilidade. “Não havia nenhum santo”, afirmou José Melo, governador do Amazonas, em entrevista concedida à rádio CBN no dia 3 de janeiro, referindo-se aos 54 mortos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj).

 

Taxa de aprisionamento

 

Evolução das pessoas privadas de liberdade

 

Mas a questão não é essa. “A sociedade sempre se negou a discutir o problema penitenciário. E se nos aprofundamos no tema, notamos que o surgimento das facções criminosas é resultado, justamente, do abandono”, explica Guilherme Borges, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Criminalidade e Violência (Necrivi) da UFG. Abandono, sobretudo, por parte do Estado, que jamais planejou políticas públicas para a população carcerária ou mesmo para a área da segurança. “As medidas são sempre paliativas, tomadas no calor de algum acontecimento aterrorizante”, acrescenta a professora da Faculdade de Direito (FD) Bartira Macedo de Miranda Santos, que desenvolve pesquisa sobre o tema. Um exemplo que pode ser dado nesse sentido é a autorização do presidente em exercício Michel Temer, formalizada via Decreto n° 17 de 17 de janeiro, do uso das Forças Armadas nos presídios para garantir “a lei e a ordem” e detectar “armas, aparelhos de telefonia móvel, drogas e outros materiais ilícitos ou proibidos”.

Consenso entre os pesquisadores entrevistados pelo Jornal UFG é a urgência de outra concepção de segurança. Uma que considere os direitos fundamentais da pessoa humana (direito à vida, à dignidade, à liberdade individual, civil e política) e que se permita pensar na recuperação de infratores ao invés de promover sua eliminação da sociedade. “Uma política bem estruturada não depende somente dos agentes de segurança. Passa, sim, pela possibilidade de pessoas presas terem acesso a uma escola de qualidade, possibilidade de ingresso no mercado de trabalho etc.”, define Tarihan Chaveiro Martins, advogado criminalista, ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil/Seção Goiás e também pesquisador do Necrivi.

Se não for assim, a brutalidade dentro e fora das prisões é certa. “Vamos continuar produzindo e reproduzindo violência, que vai voltar para a sociedade”, opina Tarihan. Em sua prática profissional, ele lidou com situações extremas que o sensibilizaram a ponto de convencê-lo de que, em um mundo ideal, o cárcere deveria ser abolido. “A experiência da prisão é complicada, ainda mais como as nossas, verdadeiros calabouços”, critica. A palavra calabouço não é exagerada. Como mostram os números do Infopen, o perfil do preso brasileiro tem uma face étnico-racial, de classe e geográfica que convoca para o debate a autocrítica, sobretudo, em relação ao pensamento escravocrata brasileiro.

 

Não existe um perfil que possa ser atribuído a quem comete crimes. Existe, sim, um perfil do preso, uma vez que o Estado seleciona quem entrará no sistema prisional
Guilherme Borges

 

“Não existe um perfil que possa ser atribuído a quem comete crimes. Existe, sim, um perfil do preso, uma vez que o Estado seleciona quem entrará no sistema prisional”, acrescenta Guilherme, que em sua pesquisa de mestrado, buscou compreender a dinâmica do comércio de drogas ilícitas na Grande Goiânia. Se 28% das pessoas presas, de acordo com o Infopen, foram enquadradas pelo Artigo 33 da Lei n° 11.343/06, a Lei de Tóxicos, é preciso falar sobre o “combate às drogas” e sua relação com o encarceramento em massa. “Quem vai preso é quem vende no varejo e fica nas ruas, nas esquinas, nos pontos. Nisso, um traficante de classe média, por exemplo, dificilmente é pego, pois atua por redes de conhecidos, não tem necessidade de ser visto, vende à vista, não fica devendo”, explica.

 

Cepaigo

Complexo Prisional  Odenir Guimarães em Aparecida de Goiânia é a  maior penitenciária de Goiás


Drogas

O pesquisador acompanhou a rotina de pessoas que comercializam drogas ilícitas nos municípios de Goiânia, Senador Canedo, Goianira e Aparecida de Goiânia, dentro e fora dos presídios. Para entender não somente como funciona o tráfico na Região Metropolitana, mas também como os agentes desse comércio enxergam a si próprios, ele percorreu o caminho desses sujeitos, ouviu suas histórias, acompanhou suas rotinas, os entrevistou, escutou também a polícia e buscou informações em prontuários, inquéritos, boletins da Secretaria de Segurança Pública, além das notícias de jornais.

Ao final desse trajeto, ele concluiu que, ao contrário da conjuntura nacional, em Goiás, o tráfico é fragmentado, composto por vários grupos pequenos e limitados, o que torna mais complexa a disputa territorial. Nisso, vários arranjos compõem a atividade, mas a sociedade não consegue captá-los, muito, por assumir no cotidiano uma postura meramente acusatória. “Na legislação, a diferença entre consumir e traficar é muito tênue e não há uma resposta quanto à periculosidade real de quem porta e/ou consome drogas”, argumenta.

 

As medidas são sempre paliativas, tomadas no calor de algum acontecimento aterrorizante
Bartira Macedo

 

Segundo Guilherme, tal postura acusatória, presente na Justiça, nos discursos da mídia e na opinião pública, atribui uma identidade a “determinados tipos sociais que estejam portando drogas”. Os próprios sujeitos estudados confirmam isso e criam para si uma série de elementos de diferenciação, na tentativa de escaparem do rótulo de traficantes e/ou bandidos. “Em outras palavras, a guerra às drogas esconde uma política perversa e seletivista que vitimiza milhares de pessoas todos os anos e tem abarrotado os presídios, entretanto, nem o comércio de drogas e nem os homicídios diminuíram, o que nos permite dizer do seu total fracasso enquanto política de segurança pública”, escreve o pesquisador em sua dissertação.

Tanto ele quanto Tarihan defendem uma revisão do código penal no que diz respeito à criminalização das drogas. “A organização do crime deriva do punitivismo, que é lucrativo, faz a droga ficar mais cara. Com isso, as pessoas aproveitam para disputar território, o que favorece a corrupção. Em países onde a descriminalização das drogas aconteceu, os resultados foram positivos para a população. Aumentou a arrecadação, diminuiu a punição e a violência” , comenta Tarihan.

 

Futebol detentos

 

Defesa Social

Revisão na legislação, previsão de penas alternativas para crimes que não atentam diretamente contra a vida e uma mentalidade social que não esteja ancorada no punitivismo podem representar avanços no que diz respeito ao sistema criminal. No entanto, como desde o início da reportagem se está falando em concepção, vale a pergunta: é possível compreender as raízes desse punitivismo?

Para a professora Bartira, há um pensamento dominante que considera pessoas infratoras como “inimigas a serem eliminadas” e esse é o cerne do problema. Em uma pesquisa realizada em seu pós-doutorado, ela observou no conteúdo de outras investigações sobre o tema a predominância das ideias da Defesa Social, identificando nesse arcabouço um perigo.

Trata-se de uma corrente da política criminal que prega, como forma de “proteger” a sociedade, a supressão dos direitos dos presos e a pena por tempo indeterminado. Popularizada e levada ao extremo no início do século XX, a Defesa Social justificou a prática em estados autoritários e forneceu subsídios, por exemplo, para o direito nazista – que punia antes mesmo de julgar.

 

Uma política bem estruturada não depende somente dos agentes de segurança. Passa, sim, pela possibilidade de pessoas presas terem acesso a uma escola de qualidade, possibilidade de ingresso no mercado de trabalho etc
Tarihan Chaveiro Martins

 

Conforme a pesquisadora, a ideia de que “bandido bom é bandido morto” é bastante ilustrativa para se pensar a questão. Embora seu discurso seja bem recebido por 57% da população brasileira – conforme aponta o 10° Anuário da Segurança Pública –, ele produz mais violência e deve ser revisto. “É uma afirmação que legitima não apenas a truculência e a arbitrariedade da polícia e demais órgãos da persecução penal, como Ministério Público e Judiciário, mas também as políticas de extermínio e matança da população mais vulnerável socialmente, principalmente os jovens negros, que representam dois terços das vítimas da violência letal no Brasil”, afirma Bartira.

Com esse trabalho, o objetivo de Bartira foi ir além da crítica à violência estatal e ao que sustenta o atual sistema de segurança pública e justiça criminal vigente. “Interessava-me compreender se na ciência atual há conhecimento produzido pelo qual se possa dizer que é possível reduzir a violência por meio de políticas públicas e afirmação da cidadania”, escreve a professora, na introdução de seu trabalho. Sua constatação foi de que há um caminho longo a ser trilhado nesse sentido, o que a motivou para seguir com a pesquisa no Mestrado Profissional em Direito e Políticas Públicas, que abre sua primeira turma em 2017.

Fonte: Ascom UFG

Categorias: sociedade FD FCS Edição 85 sistema prisional segurança