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Universidade Federal de Goiás
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Quando não enxergamos a fé do outro

Em 27/04/17 14:05. Atualizada em 17/05/17 14:22.

Intolerância religiosa é uma realidade no país e movimentos buscam visibilidade para mudar cenário de violência

Identidade religiosa

 

Texto: Angélica Queiroz e Janaína de Oliveira (TV UFG) | Ilustração: Gabrielle Carneiro/ Ascom-PP

“Toda pessoa terá direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente”. O trecho do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos assegura as liberdades de expressão e de culto. Mas a realidade não obedece à regra. Diariamente são registrados casos de ofensas, abusos e atos violentos contra praticantes de religiões, especialmente as de matriz africana ou muçulmana. Segundo dados da Secretaria Especial de Direitos Humanos, o Brasil teve 697 denúncias de intolerância religiosa entre 2011 e 2015. Os números, mesmo subnotificados pelo fato de muitas pessoas não formalizarem denúncias, alertam para a gravidade da questão.

Fundadora do Terreiro Axé Abassá de Ogum, de Salvador, a Yalorixá (sacerdotisa do Candomblé) Mãe Gilda, é um dos ícones da luta contra a intolerância religiosa no Brasil. Acusada de charlatanismo, teve sua casa atacada e pessoas de sua comunidade agredidas. Os acontecimentos agravaram seus problemas de saúde e ela faleceu no dia 21 de janeiro de 2000, vítima de infarto. A data foi oficializada como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa em 2007, pela Lei nº 11.635. Desde o falecimento da mãe, a Yalorixá Jaciara Ribeiro de Oxum trava uma longa batalha pelo combate à intolerância religiosa no Brasil que, para ela é, antes de tudo, uma luta pela garantia de direitos constitucionais.

Mãe Jaciara explica que, no que diz respeito às religiões de matriz africana, o racismo e a discriminação que remontam à escravidão desde o Brasil colônia, são os principais responsáveis pelo preconceito, junto com a ação de movimentos neopentecostais que se valem de mitos para “demonizar” e insuflar a perseguição a umbandistas e candomblecistas. Segundo ela, a mídia também é “perversa” e colabora para essa visão errônea. “Existe muita desinformação, as pessoas criticam sem saber o que essas religiões realmente preconizam, que é o culto às forças da natureza, o amor e a caridade”, explica.


“Não basta virar número”

Mãe Jaciara afirma que é preciso denunciar não só para colher dados, mas para mudar a realidade e dar visibilidade a esses casos. Para a Yalorixá não existe uma religião melhor do que a outra. “Quando alguém demoniza e não respeita o direito do outro de proferir a sua fé, isso não é Deus. Isso é qualquer outra coisa. Outros segmentos religiosos deveriam seguir seus credos e não demonizar as outras religiões”. Mãe Jaciara lamenta ainda a falta de representatividade das diversas religiões na política. “É muito difícil lutar se não temos quem assine por nós. A intolerância religiosa nos coíbe o direito até à educação, saúde e trabalho. Ela é perversa: mata e exclui”, observa, lembrando que o Estado brasileiro, em tese, é laico.

A militante da Rede Ecumênica da Juventude (Reju), Érica Pereira dos Santos, que é iniciada no Candomblé, afirma que casos de intolerância no Brasil são sistemáticos. “Andar na rua ainda é um grande constrangimento, passamos por hostilizações e xingamentos, além de pessoas querendo nos evangelizar e exorcizar. Isso sem falar da violação das casas e terreiros”. Segundo ela, a sociedade brasileira ainda não resolveu a questão do racismo e o Estado não tem garantido que todas as religiões possam se mostrar igualmente. “Todos os dias temos que lutar e dizer que queremos existir. Não somos ouvidos e nossos direitos não são respeitados. O momento é de denúncia, mas não basta virar número. Queremos dar um passo à frente. Precisamos de respostas do Estado para construir uma sociedade mais justa e que respeite o outro”.


Visibilidade

Goiânia recebeu, no início do ano, o I Seminário do Fórum de Religiões de Matriz Africanas de Goiás. Organizador do evento, Luis Lopes Machado, o Mestre Luisinho, relata que seu próprio sofrimento o alertou para a necessidade de se buscar mais respeito para essas religiões. “O preconceito é calado, velado, mas existe e não para. Parece que nós não existimos, mas estamos aqui. Também estamos na sociedade, consumimos, produzimos, pagamos impostos. Existimos!”. Segundo ele, faltam políticas públicas, e um dos principais objetivos do seminário foi chamar os praticantes dessas religiões para a luta. “Não existem pessoas especializadas para receber nossas denúncias, mas temos que abrir a boca e achar o caminho”, afirma. Ainda segundo Mestre Luisinho, as lideranças radicais que demonizam outras religiões estão perdendo muito tempo. “Cada um tem uma linguagem para falar do seu Deus. A população está ficando cada dia mais carente de fé por conta desses conflitos. Vejo as pessoas perdendo tempo e gritando loucamente na rua”, lamenta.

A umbandista Maria Mendes, conhecida como Maria Baiana, é ativista da luta contra a intolerância religiosa há mais de 50 anos. Ela também atribui a violência ao preconceito que, segundo ela, vem sendo passado de geração para geração. “Todos somos filhos de Deus e também cidadãos brasileiros. Dizem que nossa religião é satânica, enquanto nós só pregamos o amor”. Segundo ela, a saída para mudar o atual cenário é a união entre as religiões, especialmente as de matriz africana, para garantir visibilidade e respeito.


Olhar para a cultura do outro

O professor universitário Mayk da Glória Machado se reverteu ao islã há 15 anos (o termo reverteu é utilizado porque a religião considera que todos nascem muçulmanos, por isso não se convertem, se revertem). Ele conta que já sofreu preconceito e que ser muçulmano no Brasil é um exercício interessante, porque é necessário tirar os óculos de sua cultura e olhar para a origem do islã para compreender a religião de fato. “É preciso desconstruir a visão que temos do islamismo. Temos uma concepção ocidental do que é islã enviesada, contaminada com valores. Fazemos uma leitura totalmente etnocêntrica, partindo da nossa cultura”, explica. Mayk da Glória lembra que o islamismo prega respeito e boa convivência com as pessoas muçulmanas e não muçulmanas. “Na verdade, precisamos nos despir, suspender os nossos valores para compreender a cultura do outro. Se não compreendemos, podemos ter comportamento de intolerância, dentro do islamismo, cristianismo, judaísmo ou qualquer outra expressão religiosa”, afirma.

O professor, que também é psicólogo, explica que, partindo de uma análise no âmbito profissional, de acordo com a Psicologia, ódio, intolerância, fanatismo e racismo estão relacionados. Para a ciência, o ódio é um forte sentimento ligado à incompreensão de algum fator, seja ele externo ou interno ao sujeito e ao grupo que ele pertence, e a intolerância seria uma forma de expressão desse ódio. O fanatismo é a crença aguda de que apenas aquela forma de ver o mundo ou a visão de mundo que o sujeito detém é a forma correta. Nesse pensamento, qualquer outra forma de ver o mundo ou vivenciar experiências da vida humana estaria incorreta. “Se você é criado em um ambiente onde esse tipo de violência é naturalizada, a possibilidade de você se tornar um sujeito intolerante é maior”, alerta.

 

Denuncie!

A intolerância religiosa e o racismo são considerados crimes e, portanto, passíveis de punição. A Ouvidoria Nacional da Igualdade Racial pode ser acionada pelo e-mail <ouvidoria@seppir.gov.br> e telefone (61) 2025-7000. Além da Ouvidoria, é possível encaminhar denúncias ao Disque 100, o Disque Direitos Humanos da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SDH), vinculada ao Ministério da Justiça e Cidadania. As ligações podem ser realizadas de qualquer lugar do Brasil, a partir de telefone fixo ou celular, 24h por dia, sete dias por semana. Na internet, a denúncia pode ser realizada no site do Ministério Público Federal ou pelo Safernet.

Categorias: sociedade edição 87 intolerância religiosa