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Universidade Federal de Goiás

Brasil ainda reflete consequências do Golpe de 1964

Em 14/03/14 16:12. Atualizada em 14/11/18 17:50.

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Publicação da Assessoria de Comunicação da Universidade Federal de Goiás 
ANO VII – Nº 65 – MARÇO – 2014

MESA-REDONDA: Brasil ainda reflete consequências do Golpe de 1964

Texto: Equipe Ascom e TV UFG | Foto: Carlos Siqueira

 

Este ano completam-se 50 anos do Golpe Militar ocorrido no Brasil em 1964. A data é um momento importante para lembrar e debater sobre o período de mais de 20 anos que o país esteve sob Ditadura Militar, opressora e violenta, que limitou direitos, censurou a imprensa, torturou e matou opositores. Para falar sobre o tema, o Jornal UFG e a TV UFG (Programa Conexões) realizaram um debate com os professores da Universidade Federal de Goiás, Noé Freire, da Faculdade de História (FH), Pedro Célio Alves Borges, da Faculdade de Ciências Sociais (FCS), e Juarez Maia, da Faculdade de Informação e Comunicação (FIC).

Quais foram as condições políticas, sociais e econômicas que permitiram o Golpe Militar com pouca resistência a ele?

 Prof Noé Freire Sandes

Noé Freire

Nóe Freire - Acho fundamental contextualizar o governo João Goulart, que se encontrava em um momento de polarização ideológica e política, com um projeto de reforma de bases que o presidente alavancava com dificuldade. O governo foi isolado pelo Congresso e restou a ele o apelo às ruas. Nas ruas, rompeu-se o pacto que permitia alguma articulação política do presidente. A sociedade se polarizou, o grupo conservador também fez marchas e começou a articular o Golpe. Na verdade, o desfecho do Golpe era esperado, mas a reação a ele foi uma reação menor, porque acabou tirando a possibilidade de ação política dos partidos e da população. A reação veio posteriormente, uma reação diminuta no primeiro momento, mas, no segundo momento, a sociedade brasileira reagiu e essa reação levou ao endurecimento da Ditadura.

Pedro Célio Borges - É muito importante essa observação do professor Noé Freire, porque todo ato político marcante na história de uma nação é avaliado depois pelo grau de legitimidade obtido, e o Golpe Militar brasileiro teve uma reserva de legitimidade assegurada. Imaginem, naquela época, em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, passeatas, marchas com 500 mil, um milhão de pessoas nas ruas, contra o governo Goulart, contra a tendência, que se dizia esquerdizante. No contexto interno, o Golpe se apoiava nisso, e do ponto de vista internacional também. Essa polarização, a qual o professor Noé Freire se referiu, foi entendida no plano internacional. Vivíamos momentos fortes da Guerra Fria, em que qualquer possibilidade de autonomia nacional no Terceiro Mundo era vista como vínculo com a União Soviética. As forças do Ocidente, lideradas pelos Estados Unidos, entraram bravamente no Brasil para articular o Golpe. Golpe Militar é uma expressão que reduz muito a qualidade explicativa daquele momento. O golpe foi militar, mas também civil. Sem o forte apoio das forças civis, na Igreja Católica, entre as lideranças partidárias e no Congresso Nacional, ele não teria legitimidade. No Estado de Goiás, por exemplo, o governador Mauro Borges, um democrata, nacionalista, que convivia muito bem com os agrupamentos de esquerda regional, apoiou o Golpe Militar no mês de março daquele ano. Só depois, no mês de novembro, que as forças de apoio perceberam o golpe em que caíram, se desgarraram-se e passaram para a oposição. Foi quando Mauro Borges se tornou um opositor ao Regime Militar.

Durante os mais de 20 anos do regime, houve apoio civil e político à Ditadura?

Noé Freire - É preciso pensar a história do Golpe em seus vários momentos. Uma coisa é a articulação do Golpe, com o presidente Castelo Branco, e a ideia de que a tomada de poder tinha um braço civil forte. É possível acreditar que havia um projeto de devolução dos poderes civis. Isso modifica a análise postura de Mauro Borges, além de mostrar que o Golpe precisa ser pensado no tempo. Houve um apoio civil, houve legitimidade. Mas, historicamente, percebeu-se que o endurecimento do Regime e a formação da oposição, principalmente com o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) se fortalecendo nas eleições de 1974, modificaram a dinâmica do Golpe. Então, uma coisa é pensar o Regime em 1964, outra é pensá-lo com o Presidente Médici (1969) e ainda outra é pensar o Regime com a Anistia (1979). Evidentemente, o Golpe de 1964 teve uma hegemonia militar, mas os civis não perderam a articulação, mesmo porque existiam uma vida partidária e interesses sendo efetivamente trocados.

Pedro Célio Borges - Observamos no período da Ditadura algumas datas emblemáticas. O Golpe de 1964, com sua natureza autoritária, ditatorial e agressiva, só se confirmou em 13 de dezembro de 1968, quando foi editado o Ato Institucional 5 (AI-5), embora, no segundo mês após o Golpe, já tivesse sido editado o Ato Institucional 1, que acabou com os partidos políticos, fechou o Congresso Nacional, cassou mandatos de muitas lideranças, prendeu sindicalistas, perseguiu o Movimento Estudantil, prendeu a Inteligência Nacional e decretou censura aos jornais. O teor repressivo apareceu desde o início, mas não se consolidou porque passava por muitas negociações internas entre as forças que apoiavam o Golpe. Havia a expectativa de devolução do poder às forças civis, ainda que de direita, o que a cada ato não se confirmava, e isso se consumou com o AI-5. Como foi a Ditadura em Goiás e a reação a ela?

Pedro Célio Borges - Os efeitos do Regime Político Militar na sociedade goiana foram muito intensos, do mesmo modo que no restante do Brasil. Foram causados prejuízos enormes para a trajetória que o Estado de Goiás e o país vinham seguindo, em termos de uma nação que queria se modernizar e ter um povo livre, capaz de construir suas expectativas, suas instituições e de exercitar a autonomia tão necessária para que sua juventude e seus grupos sociais pudessem se desenvolver.

Noé Freire - Existe também o depoimento de anistiados na Anigo (Associação dos Anistiados pela Cidadania e Direitos Humanos do Estado de Goiás), que recompõe um pouco essa história. Dentro da UFG, nesse período, não só o movimento estudantil foi cerceado, como também o Centro de Estudos Brasileiros (CEB), que era bastante avançado e reunia várias áreas das Ciências Humanas na UFG, foi fechado.

Pedro Célio Borges - Um dos maiores crimes da Ditadura foi reprimir o exercício da inteligência. Para que ele exista, é preciso liberdade, que é algo que define a universidade, a liberdade de crítica, de ideias, de posições e ações. Em Goiás, o peso da UFG era muito grande, então o que acontecia na universidade tinha uma repercussão enorme no conjunto das instituições políticas. Havia o Movimento de Delatores, de pessoas civis, a serviço da perseguição política dos seus opositores. Isso aconteceu intensamente na universidade.

Prof Juarez Ferraz de Maia

Juarez Maia

Juarez Maia - Resistência e repressão ocorreram em momentos diferentes. Houve uma repressão generalizada contra todos os setores da pequena burguesia, classe média, intelectuais de Goiás, na imprensa, principalmente, durante o período do interventor Beira Matos em Goiás. Outra coisa foi a resistência, da qual eu tive a oportunidade de participar. Após a queda de Mauro Borges, houve uma quebra institucional em Goiás que levou o Estado a ser submetido às forças da repressão, principalmente, por meio das Forças Armadas do Brasil.

Muitos professores e alunos foram expulsos da universidade por causa do vínculo com movimentos contrários a Ditadura?

Pedro Célio Borges - A universidade criou instrumentos que legalizaram ações ilegítimas, repressivas. O decreto/lei 477 é uma sequência do AI-5 para as instituições de ensino, universidades e escolas secundaristas. No caso da UFG, o decreto fez com que o Diretório Central dos Estudantes (DCE) da universidade fosse fechado. Deixaram de existir, portanto, a ação estudantil, os debates de problemas da vida nacional, social. Os estudantes foram presos, exilados, expulsos de seus cursos.

Noé Freire - Embora tenha existido esse clima, é preciso também afirmar que o movimento estudantil e a população civil nunca deixaram de debater os problemas do país. Evidentemente, houve momentos de fechamento, desarticulação, mas de um modo geral, os estudantes e a própria universidade conseguiram dar respostas.

Pedro Célio Borges - Foi a chamada resistência democrática.

Juarez Maia - Fui uma das vítimas do Decreto 477, que dava direito ao governo militar de expulsar das universidades ou das escolas secundárias qualquer aluno considerado subversivo. Principalmente na UFG, vários estudantes foram afastados por causa desse decreto.

A resistência democrática foi imprescindível para o fim do Golpe Militar?

Noé Freire - Acredito que essa resistência era a manifestação da sociedade civil, por meio da cultura, da universidade, do movimento estudantil. A resistência foi a chave para que, posteriormente, tivéssemos condições políticas de alavancar a sociedade civil. A anistia, que surgiu em 1979, em meio ao Regime Ditatorial com Figueiredo, foi parte desse projeto. A sociedade, embora pressionada pelos instrumentos da repressão, nunca permaneceu inerte e foi essa resistência que permitiu a mudança do Regime.

Pedro Célio Borges - O Golpe instala um ambiente de medo e de terror na vida do Estado. A sociedade reage, mas com o cidadão sempre com medo de perder o emprego no serviço público, nas universidades, ser preso, assassinado, ter a família prejudicada. A resistência sempre ocorreu, mas em alguns momentos havia com mais intensidade o medo e o terror. No período Médici, isso ficou muito evidente até 1976. A reação da sociedade foi algo notável, independentemente da orientação que os grupos e as lideranças tiveram na eleição de 1974. Hoje, os historiadores colocam esse ano como o momento em que o Regime Militar começou a perder legitimidade. Entre 1974 e 1978, há mais reviravoltas, o Regime Militar tentou reforçar a censura na imprensa e diminuir a frágil representação parlamentar da sociedade com o senador “biônico” – eleito indiretamente por um Colégio Eleitoral –, em 1977, mas em 1978 surgiram as greves operárias no ABC Paulista; em 1979, a Anistia; em 1982, o retorno das eleições diretas para governador de Estado, em que alguns anistiados, ex-perseguidos, voltaram, disputaram e ganharam as eleições, como Iris Rezende Machado, eleito governador e Mauro Borges Teixeira, eleito senador.

Quais as consequências desse Golpe ainda na atualidade?

Juarez Maia - As consequências são muitas: a quantidade de pessoas que foram presas, torturadas e que até hoje não se recuperaram, instituições falidas e a criação de uma autocensura muito grande por causa do Regime Militar. Um dos maiores problemas que temos nas instituições dos Estados são as forças de segurança, que seguem o mesmo modelo da época da Ditadura. Não houve uma mudança dentro das Polícias Militar e Civil, para que elas se tornassem democráticas, voltadas para a proteção da população. Então, muitas vezes, as instituições, os órgãos de segurança, tratam a população como se fosse inimiga. Nossos órgãos de segurança continuam voltados a reprimir e não a proteger os cidadãos.

Noé Freire - A história do Golpe mostra uma ruptura na tradição democrática brasileira. Esse período rompeu com a perspectiva de ordenação política, mas, ao mesmo tempo, representou um outro projeto político-econômico em que o Estado se agigantou. A tecnocracia, as grandes estatais, o desenvolvimentismo modificaram o Brasil, que ampliou seu parque industrial, mas a partir de um processo conservador. A herança do Golpe é uma sociedade que precisa se reordenar politicamente dentro de uma estrutura democrática, mas com uma forte presença da tecnocracia. O Golpe criou uma estrutura política com tamanha força e persistência que ainda hoje é discutida no Brasil.

Prof Pedro Célio Alves Borges

Pedro Célio Borges

 

Pedro Célio Borges - A tradição brasileira mostra um Estado muito forte, que precede a existência da própria sociedade. A partir do Estado, abriu-se o espaço para se formar o mercado e a própria sociedade. Essa é uma tradição patrimonialista, em que as diferentes oligarquias nas diversas regiões do Brasil vão, a partir do Estado, estimular a dinamização da vida econômica, cultural, da definição dos interesses e das projeções de desenvolvimento. 1964 inaugurou no Brasil a tarefa do Estado de ser o único intérprete e construtor do interesse nacional, desprezando mercado e sociedade de uma vez só. A Ditadura provoca um atraso imenso em toda dinamização e potencialidade da vida social. O Estado não deixa a sociedade se manifestar e se desenvolver como tal.

No ano passado, tivemos as grandes manifestações populares e vários boatos surgiram sobre a possibilidade de um Golpe de direita. Haveria possibilidades de novamente termos Ditadura no Brasil ?

Noé Freire - A história não é previsível, mas o ambiente político hoje está muito mais vinculado à uma dimensão democrática do que golpista. É claro que é preciso perceber que essas manifestações mostraram que o passado ainda está presente. Há uma memória do Golpe. O pensamento conservador não está absolutamente excluído das possibilidades políticas, ele está presente e as manifestações na internet e outros meios mostram claramente isso. A grande questão é que direita ou esquerda até certa medida perderam o sentido, as ideias são muito próximas. Falta a proposta da diferença.

Pedro Célio Borges - Acho que as instituições no Brasil estão funcionando. A Polícia Federal, procuradorias, controladorias e todos os outros aparatos de Estado, que perante à sociedade aparecem como órgãos de controle, estão coibindo excessos das ações dos diferentes atores políticos e sociais. Eu citei esses exemplos para não falar de imprensa, partidos políticos, parlamentos que são os clássicos da democracia. Estas instituições denotam a função coercitiva do Estado. Essa função, pela sequência de ciclos ditatoriais autoritários no Brasil, aparece como sendo contrária à sociedade. Nossa cultura política é uma cultura que tem medo da polícia, da postura do Estado. Estamos finalmente construindo uma consciência em que é possível entender que o Estado pode existir com funções reguladoras, no sentido de controle social, mas do próprio Estado, no sentido de garantia do direito do cidadão. Vemos exemplos em que a Polícia Federal atua contra a corrupção e isso é positivo. A inteligência nacional aprova esse tipo de atuação, não há mais o medo da polícia. Com as instituições funcionando, a possibilidade golpista fica muito menor, porque a população não apoiará.

Fonte: Ascom UFG

Categorias: Golpe Militar 1964 Ditadura Noe Freire Pedro Célio Juarez Maia repressão