Ditadura militar na UFG: Vigilância, perseguição e expurgo
Jornal UFG resgata memórias, documentos e análises de pesquisadores que reconstroem um período histórico que não deve ser comemorado
Reportagem: Carolina Melo
Produção audiovisual: TV UFG
Podcasts: Silvânia Lima (Rádio Universitária)
Edição: Luiz Felipe Fernandes e Kharen Stecca
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Às 9h do dia 25 de abril de 1964, o então diretor do Centro de Estudos Brasileiros (CEB) da Universidade Federal de Goiás, Gilberto Mendonça Teles, dava início a mais uma reunião de colegiado. A convocação extraordinária, no entanto, já gerava certa expectativa e apreensão nos presentes. A pauta do encontro seria para tratar do Ofício-circular nº 214, de 20 de abril de 1964, que dizia respeito aos “expurgos de elementos subversivos” da UFG e também à “intervenção do Diretório Acadêmico ‘Agostinho da Silva’, por determinação da reitoria, através de uma reunião de diretores”.
Numa espécie de constrangedora fuga dos temas tão delicados, a reunião inicialmente suplantou a pauta e se direcionou ao debate da rotina acadêmica do Centro de Estudos, como horário de aulas, bibliografia e metodologia de ensino. Foi somente no final do encontro, quando os pontos de pauta foram retomados, é que todos os presentes ficaram sabendo com mais detalhes do ofício, “proveniente da reitoria”, e amparado pelo Ato Institucional nº 1 (AI-1), que solicitava à direção do CEB a indicação, a uma “Comissão de Expurgos, de nomes de professores e funcionários que, por estarem vinculados a movimentos subversivos”, deveriam ser afastados de suas funções. O ofício ainda recomendava o controle do Diretório Acadêmico pela direção, para que a entidade estudantil ficasse restringida apenas ao setores de cultura e esportes.
Trecho da ata da reunião do dia 25 de abril do CEB de 1964
O documento, oriundo da Divisão de Pessoal da UFG, encaminhou ainda ao CEB uma cópia da Portaria nº 61, de 18 de abril de 1964, na qual já continha uma lista de nomes “que, segundo nota do Comando da Polícia Militar, deveriam ser imediatamente afastados dos cargos que exerciam na Universidade”. Dentre os nomes constava o da professora de História Política, Econômica e Social do Brasil, Amália Hermano Teixeira, que participava da reunião. “Além de Amália, Bernardo Élis também figura entre os nomes dos primeiros expurgos da UFG”, afirma a historiadora e pesquisadora Caroline Gomes Nunes. Eram, portanto, já sentidos na UFG os efeitos do AI-1, antes mesmo de se completar um mês de governo militar.
A criação do CEB, em 1963, segundo o seu primeiro e único diretor, Gilberto Mendonça Teles, relacionou-se com o esforço de fortalecimento do sentido maior de um projeto de universidade no Brasil central. Entretanto, com a ascensão dos militares, esse projeto passou a ser considerado subversivo. Gilberto relembra o início da intervenção militar física no CEB, numa segunda-feira de agosto de 1964:
“Na porta do Centro estava um jipe do Exército e, ao lado dele, um militar fardado. Pois - falou o militar - eu vim buscar os livros comunistas que estão aqui. Maria do Rosário respondeu: ‘Eu sou responsável pela biblioteca. O senhor trouxe algum mandado?’. Não - respondeu o arrogante capitão Coutinho - mas vou levar assim mesmo e a senhora considere-se presa. Daí a pouco eu cheguei e logo Maria me disse: ‘Eles vieram buscar os livros’. Então o capitão se apresentou, fazendo continência: ‘Capitão Coutinho. Vim buscar todos os livros da biblioteca comunista’. Maria me disse: ‘Ele me prendeu’. O capitão ouviu e me perguntou: ‘É sua esposa? Então considera-se solta’”.
Conforme lembra, o diretor do CEB percebeu “o jeito sem jeito” do capitão Coutinho para contestar a apreensão sem mandado. Mas ele só conseguiu ganhar tempo, pois, com o mandado em mãos, levaram todos os livros do Centro de Estudos Brasileiros. Gilberto Mendonça Teles conseguiu guardar apenas uns 20 livros, que hoje integram sua biblioteca particular doada à UFG.
Contextualização histórica
O contexto internacional da Guerra Fria no ano de 1964, o clima de instabilidade política brasileira e os encaminhamentos do golpe civil-militar no País foram analisados pelo professor da Faculdade de Ciências Sociais, Pedro Célio, e pelo professor da Faculdade de Comunicação e Informação (FIC), Juarez Maia, na Rádio Universitária.
Uma jovem universidade e o novo projeto de País
A Universidade Federal de Goiás tinha apenas três anos em 31 de março de 1964, data em que oficialmente os militares assumiram o poder no Brasil. Assim como ocorreu com todas as áreas consideradas estratégicas pelo governo militar, as universidades brasileiras enfrentaram um contexto caracterizado pelo binômio incentivo-repressão, que visava concretizar o novo projeto político educacional brasileiro.
Nesse sentido, a UFG passou por um período de expansão, com o aumento do número de cursos e vagas na graduação, a realização do primeiro concurso público federal, incentivo à pesquisa, à criação de cursos de pós-graduação e com a construção do Câmpus Universitário Samambaia. Por outro lado, o cenário de expurgos de professores e funcionários, expulsão de alunos, vigilância, intimidação e falta de liberdade foi delineando o cenário da jovem universidade, que passou a caminhar em direção aos objetivos nacionais de formação de quadros técnicos. Na avaliação de parte dos professores que vivenciaram esse momento histórico, houve a quebra de um esforço anterior de construção de uma universidade enquanto unidade pensante, filosófica e política.
“É difícil as pessoas entenderem a dualidade da ditadura militar no Brasil, mas podemos conceituar esse período a partir do contexto de limpeza ideológica e modernização autoritária, que eram os interesses sobressalentes”, afirma a historiadora Caroline Gomes Nunes, que esse ano vai defender sua dissertação de mestrado exatamente sobre o tema: a ditadura militar na UFG.
Reitor Colemar Natal e Silva, um dos fundadores da UFG
A criação da Universidade Federal em Goiás em 18 de dezembro de 1960 foi fruto de um ambiente de efervescência política tanto de estudantes quanto de docentes. Dentro de sua concepção, há a criação do jornal universitário 4º Poder e o momento simbólico da Semana de Planejamento de 1962, organizada pelo então reitor Colemar Natal e Silva, que contou com as participações ilustres do antropólogo Darcy Ribeiro, do sociólogo Ernesto de Oliveira Júnior e do filósofo português Agostinho da Silva. Esse último chegou a inspirar a criação, em 1963, do Centro de Estudos Brasileiros (CEB), na UFG, direcionado a pensar o Brasil e a região de Goiás. Os projetos foram interrompidos com o golpe civil-militar de 1964.
Além do fechamento do 4º Poder em abril e do CEB no final do ano, as marcas evidentes da avidez do regime militar no controle da UFG em 1964 começaram a ser expostas com a demissão de professores considerados comunistas, com a própria destituição em julho do reitor Colemar Natal e Silva e a gradativa institucionalização do sistema de vigilância, informação e repressão dentro do espaço universitário. A breve história do Centro de Estudos Brasileiros e os encaminhamentos pós-golpe na Escola de Engenharia servem de ponto de partida para ilustrar o clima que se instalou na universidade já no primeiro ano do governo militar.
Fechamento do CEB e expurgos na Escola de Engenharia
Entre os fatos que contribuíram para inviabilizar a manutenção do Centro de Estudos Brasileiros na UFG está a exoneração do professor Gilberto Mendonça Teles do cargo da direção, por meio do Ato Institucional nº1. Mal imaginava o então diretor, que sua visita espontânea ao coronel Danilo Darcy de Sá em um quartel militar desencadearia seu desligamento do CEB. O encontro foi motivado por um conselho do então professor de Literatura e Língua Portuguesa da UFG, Waldir Luiz Costa, que soube que o coronel não tinha “uma visão boa” do Centro de Estudos. Ao final do tenso encontro, Gilberto Mendonça teve que assinar o seu depoimento. “Assinei sem ler. Estava nele o pedido de minha exoneração pelo AI-1”, lembra. Além do nome do diretor do CEB, o decreto de exoneração, datado em 8 de outubro de 1964 e assinado pelo então presidente Castello Branco, também consta o do professor da UFG, Éder Rocha Lima.
Em frente ao CEB, no centro da foto, professores Gilberto Mendonça e Agostinho da Silva (Foto: arquivo de Gilberto Mendonça)
Para mais detalhes dessa história, você pode acessar aqui a íntegra da entrevista realizada com Gilberto Mendonça Teles.
Com o fim do Centro de Estudos Brasileiros, os docentes que não foram impactados pela Comissão de Expurgo e pelos inquéritos de investigação, foram aproveitados na então recente Faculdade de Filosofia e nos cursos de História e Geografia da UFG. Esse foi o caso do professor Horieste Gomes. Conforme lembra o professor, que entrou como docente na universidade com a criação do CEB, “o AI-1, na prática, veio para caçar políticos, professores e pessoas em cargos de confiança”.
Assinado em 9 de abril de 1964, o AI-1 foi o primeiro instrumento utilizado na universidade para a demissão de professores e funcionários, perseguição de alunos e constituição de um então incipiente sistema de vigilância. Entre os nomes de professores atingidos pelo Ato, Horieste Gomes cita o de Antônio Theodoro da Silva Neiva e Sérgio Paulo Moreyra. Resgata ainda a perseguição que sofreu o professor Ático Villas Boas Mote, diretor do Departamento de Educação e Cultura da UFG. “Ele foi preso e, a partir de então, mesmo sem ser desligado da universidade, passou a ser vigiado”, conta. Um dos fundadores da UFG, professor Orlando Ferreira de Castro também recorda o episódio. “Ele esteve preso um mês, logo depois golpe, e começou a ser perseguido. Foi muito sacrificado pela ditadura”, afirma.
As perseguições aos docentes considerados comunistas e subversivos têm base na formação inicial da Universidade Federal de Goiás. Conforme lembra professor Orlando Ferreira de Castro, nos antecedentes ao golpe, já existia uma divisão ideológica no espaço acadêmico. Apesar de “grande parte dos professores e quase a totalidade dos alunos” serem de esquerda, havia na universidade dois grupos: “um a favor de Jango, liderado por Olinto Meirelles e Sebastião Baldoíno”, e outro, “liderado por João Bosco Lousa, que tinha ideias opostas. Posteriormente esse pessoal ficou sendo chamado de reacionário. Tinham os avançados e os reacionários”, lembra.
No ano de 1964, a Escola de Engenharia, que estava entre as cinco escolas que deram origem a UFG, “era um foco de resistência, tanto que foi visada”, afirma professor Horieste Gomes. O então docente da unidade, Irapuan Costa Júnior, também recorda a efervescência política e o clima de embate. “Era a Escola mais politizada, onde se dava a presença do pessoal ligado à esquerda do Brasil. Havia um embate lá dentro. O corpo docente estava dividido. Havia um grupo que era conservador e havia outro bem de esquerda, muito ligado ao movimento revolucionário da esquerda, e que a gente estava sempre em conflito”.
De acordo com o professor Orlando Ferreira de Castro, a Escola foi a “que mais sofreu porque tanto os estudantes quanto os catedráticos eram muito dinâmicos”. O docente lembra de alguns nomes que foram desligados da UFG, como o de Marcelo Cunha Moraes e Rodolfo José da Costa e Silva, além da formação da Comissão de Expurgo, citada em ata da reunião de 25 de abril de 1964 do CEB. Segundo ele, os integrantes da Comissão eram da Faculdade de Engenharia, entre eles Irapuan Costa Júnior. “Todos os documentos da Comissão ficaram com o secretário, que anotava tudo, de modo que é uma boa fonte de estudo. Mas ele segurou o livro e não solta para ninguém. É uma pena, pois a história está lá”, afirma Orlando.
Questionado sobre quem indicou os docentes do CEB que deveriam ser afastados de suas funções, o professor Gilberto Mendonça Teles chegou a afirmar que “os jornais falaram em alguns nomes de professores da Engenharia”. Entretanto, o que ele sabe de concreto é que alguns docentes, que antes o “bajulavam, de um momento para outro”, passaram a evitá-lo.
Citado como um dos integrantes da Comissão de Expurgo, o então professor da Escola de Engenharia, Irapuan Costa Júnior, disse que “não houve a Comissão”. Mas ressaltou a existência de Inquéritos Policiais Militares, realizados pelo coronel Danilo Darcy de Sá e pelo major Aníbal de Carvalho Coutinho nas unidades da UFG, nos quais participou como testemunha, e que indiciou muitos professores. “Nessa época havia aqui um batalhão do Exército, e esse batalhão criou uma comissão de inquérito, ouviu muitos professores, alguns foram afastados da UFG”. Enquanto testemunha na Escola de Engenharia, Irapuan Costa Júnior, que se considera anti-esquerda e anti-marxista, disse que, assim como o outro lado, ele foi ouvido e lá falou o que abertamente falava, antes de 1964, em jornais e nas formaturas em que discursava. “Eu fui ao IPM falar aquilo que eu já falava antes de 1964”.
Período é debatido por professores da UFG
A ditadura militar em Goiás é debatida pelos professores da UFG, Pedro Célio e Romualdo Pessoa, que descreveram o panorama político e social do Estado e resgataram os casos de perseguições, repressões e assassinatos ainda não esclarecidos, e da destruição de monumentos públicos, como o Monumento do Trabalhador, que ficava na antiga Praça Americano do Brasil, hoje Praça do Trabalhador. O debate foi realizado pela TV UFG para o programa Conexões.
Estudantes ocupam o espaço público
Foi numa segunda-feira, dia 2 de março de 1964, o início das aulas da primeira turma do curso de Ciências Sociais da UFG. Lá estava presente o então calouro Itami Campos, que depois veio a se tornar professor da Universidade. Um detalhe chamou a atenção do jovem estudante: a turma formada por cerca de 40 alunos ficou reduzida a 13, já na quarta-feira do dia primeiro de abril. “Era uma turma grande, uma sala cheia, quase 40 pessoas, e, depois do golpe, em primeiro de abril a turma se esvaziou, já ficamos um grupo pequeno”.
A vivência universitária de Itami Campos, enquanto representante da primeira turma de Ciências Sociais da UFG, foi marcada pelo movimento estudantil, pelas passeatas e organizações de rua. Também pela rotineira vigilância que sofria do Exército e da Polícia Militar. Conforme lembra, o período era de agitação política, fruto de um movimento político do início da década de 1960 muito engajado, constituído ao longo do governo Mauro Borges. Por outro lado, “no contexto da Universidade, havia repressão política, havia um controle. Éramos chamados para depor por causa de assembleias de estudantes, por causa de movimentação de alunos, passeatas”, conta.
Com as dificuldades de um curso incipiente e sem estrutura, o ativismo dos estudantes de Ciências Sociais impulsionou a criação do Centro de Estudos Sociais e Políticos na UFG entre os anos de 1965 e 1966. Sobre isso, professor Itami Campos escreveu o artigo Estudantes criam o curso e discorreu em entrevista que pode ser acessada aqui.
Professor Itami Campos lembra das inúmeras vezes em que foi levado ao 10º BC (Foto: arquivo pessoal)
Em relação aos mecanismos de intimidação, Itami Campos lembra das inúmeras vezes em que foi levado ao 10º Batalhão de Caçadores (BC) para prestar depoimento. “Diversas vezes você era intimado e, chegando lá, diziam ‘nessa assembleia você falou isso’. Ou seja, já tinham informações”. Outras vezes, ele conta, “um Jipão” passava na casa da sua família e o levava. “Minha mãe ficava rezando o terço, coitada, e eu ficava no 10º BC sentado no banco o dia inteiro, sem água, sem comida, e ao final chegavam e diziam: ‘hoje nós não vamos ouvir, pode ir embora’”.
O então militante estudantil da UFG, Carlos Henrique da Silva, também contou como o movimento estudantil atuou durante o período:
Especialmente em 1966, o movimento estudantil em todo o País se reorganizou e no seu percurso passou a denunciar as restrições de liberdade, questionar a Lei Suplicy e o Acordo MEC-Usaid. Instituída no desfecho de 1964, a Lei tinha o objetivo de eliminar a participação política estudantil, atrelando o movimento ao governo, por meio da dependência de verbas e orientações. “Ela fez uma mudança em todo o sistema de representação e tentou esvaziar o movimento estudantil”, afirma professor Itami Campos. Dessa forma, preparava o terreno para a efetivação dos acordos entre o Ministério da Educação e Cultura (MEC) e a United States Agency for International Development (Usaid), que, entre outras coisas, “acabaram com as chamadas disciplinas politizantes na universidade, diminuíram de forma substancial a carga horária das disciplinas de História, Geografia e Sociologia e introduziram Educação Moral e Cívica”, lembra professor Horieste Gomes.
Ao contrário do que pretendia, a Lei Suplicy acabou por acelerar a reorganização e unir os estudantes pela sua revogação e, posteriormente, contra a intervenção dos Estados Unidos nas instituições de ensino do país. Uma parcela dos estudantes universitários da Universidade Federal de Goiás fez parte desse contexto de atuação política. Ao longo do ano de 1968, nas páginas do jornal regional O Popular, por exemplo, é possível acompanhar esse ativismo. Dentre as atuações dos universitários há o Movimento de Excedentes da Faculdade de Medicina, que reivindicava mais vagas e transparência do vestibular, o movimento contra a repressão policial e a greve geral universitária.
O movimento universitário paredista teve a adesão das faculdades de Medicina, de Agronomia e Veterinária, Odontologia, Farmácia, Direito e Filosofia. Entre as exigências do movimento, que teve início em maio e se estendeu até agosto de 1968, estavam o pagamento das verbas federais destinadas à UFG em atraso desde 1967, a eliminação da cobrança das anuidades, o reconhecimento da Faculdade de Filosofia e o repúdio à privatização do ensino, proposta pelos acordos MEC-Usaid.
Com o pagamento das anuidades pelo governo e os encaminhamentos do processo de reconhecimento da Faculdade de Filosofia, os estudantes decidiram em assembleia interromper a greve no dia 8 de agosto de 1968, sem realizar uma única manifestação pública em Goiânia, a não ser a fixação de cartazes pela cidade. A singularidade do movimento pode estar relacionada à repressão sofrida pelos movimentos de rua dos estudantes, ocorrida no início do semestre na capital goiana e que também foi acompanhada pelo jornal O Popular.
Em uma das edições do jornal, datada de 30 de março de 1968, a prisão do estudante da UFG e presidente do Centro Acadêmico XI Maio, Dirceu Borges, na Faculdade de Direito, foi reportada. Realizada por agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) nas dependências da universidade, a ação frustrou os preparativos do protesto que seria realizado contra a morte do carioca Edson Luiz no restaurante universitário Calabouço, no dia 29 de março, no Rio de Janeiro. De acordo com o trecho da reportagem:
“Segundo disse aos seus colegas, depois de solto, já ao cair da noite de ontem quando se preparava para afixar recortes de jornais e a nota no mural que fica à porta da escola foi surpreendido por um agente do Departamento da Polícia que lhe deu voz de prisão. Para evitar conflitos na Faculdade entre policiais e estudantes, pois as aulas transcorriam normalmente, o acadêmico Dirceu Borges acatou a ordem e se retirou para fora, quando foi agarrado por policiais que o conduziram ao Quartel da Polícia Militar no interior de uma viatura da Rádio Patrulha que se encontrava um pouco afastada. A prisão de Dirceu foi feita em silêncio, não permitindo a Polícia que nenhum outro aluno a observasse, o que veio a acontecer somente quando ele já havia se entregado e conduzido a Rádio Patrulha”.
Ainda como forma de desarticular a organização dos universitários, o reitor da UFG, professor Jerônimo de Queiroz, publicou uma portaria suspendendo as aulas do dia 1º de abril de 1968, data em que o movimento estudantil programava um ato público de protesto. Conforme notícia do jornal O Popular, a manifestação ocorreu reunindo três mil pessoas com forte repressão e muitos confrontos com a polícia, como destaca a chamada de capa do dia 2 de abril de 1968: “Um morto e vários feridos em Goiânia”.
Manifesto do professores e a defesa dos Direitos Humanos
O ano pulsante de 1968 contou também com a participação de alguns professores da UFG, que, via Manifesto
dos Professores, posicionaram-se no espaço da opinião pública goiana, em defesa do movimento estudantil nas ruas, dos Direitos Humanos e da liberdade de ensino. Publicado no jornal regional Cinco de Março, na edição de 4 de novembro de 1968, o manifesto tem como primeiro assinante o professor Horieste Gomes. Foi ele, inclusive, um dos autores do texto. “Eu tive a honra de estar na cabeça. Nós elaboramos o texto. Eu, o professor de História, Sérgio Paulo Moreyra, e o de Sociologia, Olavo de Castro. E se você ver lá, nós tivemos mais de 400 assinaturas. A primeira assinatura é a minha”, lembra.
O texto do manifesto chama a atenção para as violações aos Direitos Universais do Homem e às liberdades democráticas, cita as agressões à Universidade, e “conclama todos os professores a se unirem em defesa da liberdade de ensino e dos Direitos Humanos constantemente ameaçados”.
Ao relembrar as discussões que motivaram a escrita do manifesto, professor Horieste destaca o anseio pela manutenção da liberdade e do aperfeiçoamento do ensino na universidade, além da defesa da escola pública e gratuita.
Apesar dessa manifestação pública, no espaço institucional da Universidade, dentro dos prédios das unidades, a resistência dos professores era aquela possível, ou seja, comedida. Afinal, “muitos professores eram ligados à ditadura”, lembra Horieste Gomes, e existia também “a figura dos olheiros do rei”, afirma. Nos anos posteriores, com o recrudescimento do governo militar, o manifesto acabou se tornando um dos principais documentos do Dops na investigação de elementos subversivos no espaço acadêmico.
A vigilância institucionalizada na UFG
Contra a ação dos grupos opositores ao governo militar, no fechamento do ano de 1968, todo um aparato repressivo começou a ser institucionalizado por meio de decretos-leis, atos complementares e atos institucionais. No espaço universitário, o peso do sistema de controle foi sentido pelo Ato Institucional nº 5, pelo Decreto 477, Ato complementar nº 75, e pela criação dentro das instituições de ensino das Assessorias de Segurança e Informação (ASI).
Sem vigência de prazo, o AI-5, entre outras coisas, permitia a cassação de direitos políticos por tempo indeterminado e abolia o habeas corpus paras os infratores da Lei de Segurança Nacional. O decreto 477 de fevereiro de 1969, direcionado à exoneração, expurgos e expulsões de pessoas ligadas à luta contra a ditadura no ensino público e, portanto, consideradas subversivas, impedia a recontratação dos docentes e funcionários atingidos, pelo prazo de cinco anos, e a matrícula dos acadêmicos pelo período de três anos. Já o Ato Complementar 75, de outubro de 1969, definitivamente proibia a contratação dos docentes e funcionários punidos.
O professor da UFG, Horieste Gomes, após ser preso em 1972 pela sua militância junto ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), foi exonerado da UFG e atingido pelas penalidades. “Quando eu saí, a UFG já aplicou todas as penalidades que me cabiam. Perdi tudo. Já era casado pela segunda vez, já tinha três filhos com a primeira mulher e um com a segunda. Eu estava sem emprego”, lembra. O professor deu mais detalhes desse e de outros episódios de sua vida enquanto professor e militante do PCB em Goiás em sua entrevista na íntegra, aqui.
Entre os acadêmicos atingidos pelo decreto 477 consta o nome do então estudante de Medicina, Abrão Marcos da Silva. Seu ativismo estudantil enquanto diretor do jornal do Diretório Acadêmico 21 de abril, o Esqueleto 21, e como integrante do PCB, foram suficientes para a punição. Conforme conta o professor Itami Campos, o decreto 477 concedeu, inclusive, poderes aos diretores de unidades de aplicarem as penalidades em acadêmicos, sem necessariamente passar pelo aval da Reitoria. “O decreto previa a punição em processos sumários. Eu mesmo, quando fui diretor do então ICHL, tive a acesso a documentos que comprovam a aplicação do decreto, contra estudantes, por diretores anteriores”, afirma.
Mas a rede profissional de informações e vigilância no espaço da UFG foi ganhar corpo e institucionalidade com a criação, entre os anos 1970 e 1971, da Assessoria de Segurança e Informação (ASI). Segundo a historiadora e pesquisadora Caroline Nunes, a ASI vem do projeto do governo militar de limpeza ideológica nas universidades. Segundo a pesquisadora, trata-se da gestão mais estruturada das informações institucionais e internas, com caráter de vigilância, considerada necessária com a ampliação da UFG.
“Diz respeito ao contexto de incentivo e repressão. Incentiva-se o crescimento da universidade e, com ela crescendo e ampliando o número de docentes e estudantes, aumenta-se o aparato repressivo”, explica. A análise da pesquisadora corresponde com a memória do professor Horieste Gomes sobre o período. “Depois de criados o Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL) e o Instituto de Química e Geociências, em 1968, aí que passa a ter uma vigilância maior, mais ostensiva, do corpo dos professores e também dos funcionários da universidade”, lembra. Mas, para a pesquisadora, um fato surpreendente é a manutenção da ASI na UFG até o ano de 1986, ou seja, após a abertura política do País. “Após o fim da ditadura, em 1986, ainda estavam nomeando o presidente da ASI na UFG. Ou seja, ainda existia o órgão de vigilância”. Conforme explica Caroline Nunes, desde 1979 as Assessorias não eram mais obrigatórias no espaço acadêmico.
Insegurança profissional
Os documentos da ASI na UFG, hoje, fazem parte do arquivo do DOPS, no Centro de Informação, Documentação e Arquivo (Cidarq). O sociólogo e servidor da UFG, Flávio Diniz, quando assumiu seu cargo em 2013 no órgão, por um interesse pessoal começou a pesquisar os documentos e se surpreendeu com o pequeno número de material
encontrado, em grande parte incompleto. São apenas 18 documentos.
O que chama atenção é a forma de vigilância e monitoramento institucionalizada no espaço da UFG. Sob a responsabilidade inicial do general Antônio Godinho Fleury Curado, a ASI ficava localizada ao lado da sala do reitor, de acordo com o servidor da UFG, Armando Honório da Silva, e do professor Orlando Ferreira de Castro. Assim como todo órgão de informação, a Assessoria era vinculada a uma grande teia de trocas informativas. “Na Universidade ela ficou bem estruturada por conta da preocupação, por exemplo, com o movimento estudantil. Ela tinha uma chefia, que era responsável por coordenar as atividades, e era subordinada à Segurança e Informação do Ministério da Educação e Cultura (MEC)”, afirma a historiadora Caroline Nunes.
Tinha a função de monitorar as assembleias estudantis, investigar a vida de candidatos à docência, aos cargos de direção e às vagas de bolsas de estudos e intercâmbios. Também recebia pedidos externos, de outros órgãos, sobre informações internas e, inclusive, solicitava informações do reitor sobre a veracidade de alguns fatos, conforme se pode perceber pelo documento 0080/ASI/UFGo/78. De acordo com o sociólogo Flávio Diniz, era rotineiro o procedimento da ASI de solicitar ao Dops de Goiás informações sobre os candidatos às vagas institucionais. Em relação ao retorno do Dops, grande parte dos docentes que não conseguiram o atestado de “nada consta” diz respeito àqueles que assinaram o manifesto dos professores de 1968. “Quem assinou, tinha certidão positiva. Esse manifesto é simbólico”, observa Flávio.
Fica claro também, pelos documentos do Dops, a existência dos chamados “olheiros”, “informantes” ou “infiltrados” no espaço da UFG e, especialmente, nas atividades políticas dos estudantes goianos. Um exemplo é o detalhamento do que ocorreu na manifestação estudantil do Ginásio Presidente Kennedy na cidade de Uruaçu (GO). Mas o clima de vigilância era também sentido nos corredores, nas salas de aulas e unidades, tanto por professores, quanto por funcionários. Para se ter ideia, ninguém sabia ao certo quem eram os funcionários da Assessoria Segurança e Informação (ASI) na UFG. “E a maioria dos funcionários foram civis e não militares”, conta a pesquisadora Caroline Nunes.
Itami Campos, já professor da UFG na década de 1970, lembra, por exemplo, dos bilhetes anônimos que os docentes recebiam, por intermédio da secretaria da unidade, solicitando as informações sobre palestras ofertadas, planos de cursos e escolhas de bibliografias. “Você recebia um bilhete dizendo ‘você fez uma palestra em Anápolis. Coloque o texto ou esquema da palestra que você fez’, ou mesmo exigindo a troca de bibliografias - ‘você está usando Florestan Fernandes, texto de comunistas e agitadores. Substitua. Por que você está usando?’”. Ou seja, segundo o professor, “dependendo da literatura que você utilizava para dar aula, vinha uma observação pedindo para substituir e questionando o porquê estava usando”. Conforme lembra, o retorno era dado à secretaria da unidade que, por sua vez, encaminhava a resposta ao solicitante.
O professor recorda também dos infiltrados que insuflavam reações políticas nas salas de aula, com o intento de identificar pessoas subversivas. “Lembro que ofereci um curso noturno aberto a toda Universidade sobre Ciências Políticas. Aí o cara chegou e começou agitar. Se você entrasse no esquema dele… Então você tinha que se articular para não deixar inclusive os estudantes entrarem na dele”. Dependendo de quem era o presidente do colegiado, Itami Campos chegava a perguntar sobre o agitador e quase sempre descobria que se tratava de alguém transferido de Brasília.
A Rádio Universitária conversou com as professoras Ana Lúcia da Silva, da área de História, e Mindé Badauy, da Educação, que relembraram o clima de perseguição no espaço universitário e a vigilância que sofriam os docentes da UFG. Confira:
Abertura Política
Estudante de Biologia na Universidade Federal de Goiás entre 1976 e 1980 e de Agronomia de 1980 a 1985, Osmar Pires Martins Júnior também foi o presidente do Diretório Central de Estudantes da UFG durante a gestão de 1981 e 1982 e diretor da União Nacional dos Estudantes (UNE) entre 1982 e 1983. Ele escreveu, para o Jornal UFG, um pouco sobre a sua memória do período da abertura política na universidade: a luta pelo fim da ditadura militar e pela redemocratização da universidade, a reconstrução dos Centros Acadêmicos (CAs), a conquista da eleição direta para reitor e diretores de faculdades são algumas das histórias retomadas pelo autor.
Osmar Pires foi um dos protagonistas da reorganização do DCE-UFG que, conforme conta, “de 1964 a 1980, foi atrelado à cúpula ditatorial do MEC, que nomeava os seus dirigentes”. Conforme discorreu professor Itami Campos em entrevista ao Jornal, o DCE no ano de 1964 foi dominado por um grupo de direita que chegou armado para ocupar o seu espaço físico, que ficava localizado na rua 9 com a Avenida Anhaguera. Para ler as memórias de Osmar Pires, acesse aqui o arquivo.
(Matéria publicada dia 29/03. Atualizada dia 11/09 com os Podcasts da Rádio Universitária com o militante estudantil, Carlos Henrique, e com a entrevista das docentes Ana Lúcia e Mindé Badauy)
Fonte: Secom UFG
Categorias: Especial Institucional