Algoritmos e Netflix: como eles impactam nossa percepção de mundo?
Pesquisa da UFG busca compreender acionamentos, ação e performance a partir do que humanos e não humanos estabelecem como articulação na plataforma de streaming
Eduardo Bandeira
A interação entre o homem e a tecnologia tem adquirido contornos cada vez mais complexos e intrigantes. Nesse contexto, uma pesquisa realizada no Programa de Pós-Graduação em Performances Culturais (PPGPC) da Universidade Federal de Goiás (UFG) investigou como interfaces, algoritmos e dados performativos impactam a visão das pessoas e sua concepção de cultura.
O pesquisador Thiago Moreira de Oliveira, que também é gerente de Engenharia e Operações da TV UFG, explica que a pesquisa foi inspirada em seu histórico profissional, que compreende desde seu estágio no projeto técnico de implantação da emissora até sua posição atual. Além disso, ele cita o interesse despertado pela expansão internacional do serviço de streaming da Netflix para o Brasil em 2010 como um fator motivador.
Sob a orientação do professor Cleomar de Sousa Rocha, Thiago investigou como as interfaces, os dados e os algoritmos da Netflix impactam a forma como as pessoas se percebem e percebem o mundo ao seu redor. Para isso, ele utilizou uma metodologia baseada em análises e sínteses, que incluíram desde a problematização até a observação direta da plataforma.
Nesse sentido, Thiago ressalta a importância do meio digital na sociedade contemporânea e a crescente variedade de estudos incentivados pelas descobertas nessa área. "O meio digital possibilita a criação de novos significados culturais, expandindo a experiência humana de compreender a nós mesmos e ao mundo, ao mesmo tempo que fomenta a conexão entre humanos e máquinas".
Assim, a interação com plataformas como a Netflix requer a utilização de um sistema interativo que processa as escolhas do usuário e gera associações com base em sua experiência. A partir disso, os computadores disponibilizam um "tear", uma interface, com o qual a cultura humana pode ser tecida.
"Por essa razão, a interatividade digital se passa num contexto comunicacional no qual usuário, dispositivos televisivos e algoritmos são agentes, criando um ambiente digital onde as ações de humanos e máquinas são significativas umas para as outras", argumenta.
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Thiago Oliveira trabalha na TV UFG e pesquisou a criação de significados pelos meios digitais (Foto: Arquivo pessoal)
Rastros
Com o objetivo de proporcionar uma experiência mais interativa e inovadora aos usuários, o sistema de recomendações da Netflix utiliza três tipos de filtragem: colaborativa, baseada em conteúdo e híbrida, sendo esta última a mais comum para sugerir conteúdo ao público.
Essa filtragem é realizada com base nas interações dos usuários na plataforma, incluindo cliques, ações e escolhas. Os algoritmos, ao terem acesso a esses dados, são capazes de utilizá-los para tomar decisões.
Thiago esclarece que esses dados são fundamentais para alimentar o processo, pois revelam não apenas quem somos e o que pensamos, mas também nossas preferências e experiências.
"Portanto, o sistema de recomendação da Netflix se prende no vestígio de dados gerados em ambientes digitais pelos usuários e não nos usuários, e acompanhar essa audiência plataformizada aponta insights especialmente iluminadores sobre o processo de produção, circulação e consumo de mídia e entretenimento", explica.
Hábitos culturais
Uma das contribuições da pesquisa para a compreensão do funcionamento da interface da Netflix foi observar a utilização de algoritmos não apenas para a dinâmica de circulação e consumo de conteúdo audiovisual, mas também como ferramentas cruciais na interpretação de hábitos culturais.
Nas palavras do diretor de Comunicação da Netflix, Jonathan Friedland, a plataforma tem o poder de compreender os hábitos de visualização das pessoas, utilizando essas informações para tomar decisões sobre produção de séries originais.
Thiago menciona a série "House of Cards" como exemplo, vencedora do Emmy, escolhida com base em análises algorítmicas que identificaram padrões de visualização, como a preferência pela versão original da série e o interesse em filmes com o ator Kevin Spacey.
Essa abordagem orientada por algoritmos não se limita a decisões isoladas, mas influencia toda a estratégia de produção da Netflix. Ao compreender os gostos e padrões de consumo do público, a plataforma busca criar conteúdo que atenda às preferências dos usuários.
"Portanto, fica evidente que as escolhas de produção e análises de roteiros na Netflix estão sujeitas a uma pressão de mercado, e que a otimização algorítmica desempenha um papel significativo na determinação do tipo de conteúdo privilegiado pela plataforma", ressalta Thiago.
Interface
Para se manter atualizada, a Netflix utiliza testes práticos, conhecidos como testes A/B de desempenho, para ajustar sua interface de maneira científica e atrair mais atenção e interação do público. Mudanças no design são cuidadosamente testadas para otimizar a experiência do usuário.
Esses testes não apenas melhoram a plataforma, mas também contribuem para uma cultura orientada por dados, onde a valorização da experiência dos usuários é fundamental. O objetivo é oferecer uma experiência mais eficiente para os usuários, facilitando a busca pelo conteúdo desejado.
Questionamentos
A pesquisa levanta questionamentos importantes. Até que ponto as "interfaces amigáveis" podem desafiar percepções tradicionais e estáveis? Onde está o limite entre o conhecimento aceitável e a manipulação? A personalização da recomendação ajuda na escolha ou limita a descoberta de novas produções audiovisuais?
Por fim, o estudo constata que o sistema de recomendação da Netflix traz à tona a negociação entre o ver e o não ver, e esse sistema suscita, cada vez mais, a interpelação algorítmica do usuário para as mais diversas ações.
Essa interpelação é caracterizada pela mensurabilidade, submetendo atributos, atividades e interações a diversas categorias de métricas; pela recursividade, refinando-a e recalibrando-a continuamente com base em informações sobre si fornecidas de alguma forma pelo próprio usuário; pelo perfilamento, definindo perfis a partir da combinação de atos performáticos – vestígio, dados e traços digitais de cada um – registrados em suportes midiáticos, passíveis de recuperação; e pela nichificação, agrupando perfis em nichos direcionados ao consumo.
"Estes consolidam-se por sua assunção pelo usuário, que corresponde à performatividade, e esta remete também à performance na acepção de desempenho", conclui o pesquisador.
* Crédito da foto de capa: rawpixel.com
Fonte: Secom UFG
Categorias: Tecnologia FCS