Dança Brasileira Contemporânea
Publicação da Assessoria de Comunicação da Universidade Federal de Goiás
ANO VII – Nº 54 – NOVEMBRO/DEZEMBRO – 2012
Dança Brasileira Contemporânea
Uma linguagem cuja motivação é a cultura popular
Texto: Patrícia da Veiga | Fotos: Weber Félix e Luiz da Luz
"Cortei o dedo
Quando você se foi
E ainda não sarou
Só quando você voltar meu amor
Aí eu paro de sangrar”.
Versos do cancioneiro popular acompanham os movimentos do intérprete Sacha Witkowski, bailarino e estudante do curso de licenciatura em Dança da UFG, enquanto é projetada a imagem de uma gota de sangue percorrendo a parte inferior de uma perna feminina. Vestido com longa saia branca e peça íntima cor da pele, peito nu e pés no chão, o bailarino, em suas expressões, evoca força e sensibilidade, alívio e dor.
Em cena, Sacha retorce a borda da saia que está presa em seu corpo, estica esse pedaço de pano no chão, segura uma de suas pontas e puxa, bruscamente, como se estivesse cortando um cordão umbilical. A mesma borda de saia, na sequência, é dobrada e embalada, como um bebê. Antes, porém, serviu como cobertura para uma armação circular que envolve o bailarino, como uma placenta. Nessa relação com os objetos, o intérprete constrói uma narrativa e, como uma personagem inserida na própria história, parece não ter gênero e papel social definidos: é mulher, homem, um feto, moça, mãe.
As minúcias de uma linguagem que mescla dança, performance e recursos audiovisuais dão forma ao espetáculo Rubro, apresentado no Centro Cultural UFG no mês de setembro deste ano. Assim anuncia sua sinopse: “O sangue, às vezes, não cabe na gente de tanto que esquenta. Aí transborda. (…) O sangue também se esvai, anunciando a morte na hemorragia que colore a dor: RUBRO! Alimentando o ciclo da vida e os deuses do Orum”. No espetáculo, o ciclo menstrual é metáfora para a vida. E para falar da existência humana, com suas rupturas e continuidades, Rubro se vale da mitologia dos orixás e do universo feminino.
Contemplado pelo Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna 2011, Rubro é resultado de um primeiro trabalho do curso de licenciatura em Dança, envolvendo professores e estudantes. O espetáculo é, também, a última produção/criação do Coletivo 22, um núcleo de dança formado há 11 anos na cidade de Campinas (SP) e que, desde 2010, está estabelecido em Goiânia, na Faculdade de Educação Física (FEF), em parceria com o programa de extensão Corpopular – Intersecções culturais e com o Laboratório de História e Artes do Corpo – (ve)Lhaco.
Já em Através, outro espetáculo assinado pelo Coletivo 22, o cenário é composto por latarias, bancos de madeira e panos rendados. Esses objetos mudam de lugar e de função, conforme as pessoas seguem utilizando-os. Há sete intérpretes dispostos em “territórios” aparentemente distintos, divididos pela própria plateia. De um lado estão a tradição dos migrantes, as religiões de matriz africana, a dança e o canto seculares. De outro, há o caos e o cosmopolitismo da cidade, os passos apressados, o mundo do trabalho e o conflito entre as pessoas. Durante pouco mais de uma hora, Fabio Farias, Flavia Futata, Ively Viccari, Jordana Dolores, Luiz Ramos, Vivian Maria e Wellington Campos passam por travessias materiais e simbólicas que transformam fragmentos dessas duas partes em um todo híbrido.
Através fala de confrontos e conciliações no plano da cultura, do mito e da religiosidade. Por isso, faz trocadilhos gestuais com a palavra atravessar: pés que cortam um emaranhado de latas, corpos que passam uns sobre os outros, sons que penetram a alma, movimentos que incorporam.
Contemplado pela edição 2008 do prêmio Klauss Vianna e em 2012 pelo edital de circulação Procultura, o espetáculo é o resultado de uma investigação sobre a capoeira e o samba de umbigada na cidade de São Paulo. As indagações e conclusões dessa pesquisa, que notaram a presença intensa e contrastante da cultura popular de matriz africana na megalópole, geraram tanto o processo de criação de Através como a tese de doutoramento de Renata Lima, uma das fundadoras do Coletivo 22 e atualmente professora da UFG.
Tanto Rubro como Através revelam um dos objetivos do Coletivo 22, que é estabelecer no fazer artístico um diálogo entre a cultura popular e a dança contemporânea. Mais do que isso, conforme define a professora, ambos carregam em seu processo criativo a Dança Brasileira Contemporânea. Corresponde a esse termo uma linguagem híbrida, “um vínculo entre tradição e contemporaneidade, considerando, neste contexto, a contemporaneidade como o encontro de diversas formas de pensar e fazer dança, teatro e performance na atualidade”, escreve Renata Lima no artigo Que dança é essa?, publicado na página do Coletivo 22 (www.coletivo22.com.br).
A dança contemporânea permite que o movimento seja construído de observações e experimentos. Isso faz com que seus intérpretes-criadores ultrapassem a noção de coreografia e sintam-se livres para trabalhar técnica, forma e poética. No caso do Coletivo 22, a inspiração está nas próprias experiências corporais, seja pelo contato com a dança afro, com a capoeira, com o balé ou com as próprias histórias de vida. “Todos os integrantes do núcleo têm de alguma maneira essa referência da cultura popular construída em seus corpos. O que buscamos foi extravasar a forma e criar artisticamente”, explicou Renata Lima por ocasião da apresentação dos espetáculos. Rubro e Através fizeram parte da Mostra do Núcleo de Dança Coletivo 22, realizada no Centro Cultural UFG entre os dias 18 e 21 de setembro. Em quatro dias de apresentação, os espetáculos foram vistos por uma média de 240 pessoas.
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