Icone Instagram
Ícone WhatsApp
Icone Linkedin
Icone YouTube
Universidade Federal de Goiás
Núcleo Takinahaky de Formação Superior Indígena

Diálogo entre saberes indígenas e acadêmicos

Em 25/07/23 11:35. Atualizada em 30/05/24 16:53.

Há 18 anos, curso em Educação Intercultural se direciona ao encontro dos saberes dos povos originários do Araguaia-Tocantins e Xingu

Carolina Melo

Gilson Ipaxi’awyga Tapirapé
Gilson Ipaxi’awyga Tapirapé no dia de sua posse na UFG (Foto: Carlos Siqueira)

No dia 13 de fevereiro de 2023, Gilson Ipaxi’awyga Tapirapé, do povo Apyãwa (Tapirapé - MT), tornou-se o primeiro professor indígena a tomar posse na Universidade Federal de Goiás (UFG). O fato institucional histórico, acompanhado pela imprensa regional e comemorado pela comunidade acadêmica, não fora imaginado ou mesmo sonhado por Gilson, quando em 2007, ingressou na primeira turma do Curso de Educação Intercultural da UFG. Naquele primeiro contato com a Universidade, ressabiado, não sabia falar Português, apesar de ler fluentemente. “Era triste a minha participação. Quase não participava dos debates e discussões em sala. Os professores indígenas que ingressaram na turma já falavam muito bem a língua, alguns eram de carreira invejável na área da Educação, outros eram grandes lideranças nas suas comunidades. Mas aos poucos fui superando, não fazia sentido eu ficar na sala sem participar, e fui abrindo a minha boca”, lembra.

Com base nas articulações de lideranças e professores indígenas, a licenciatura em Educação Intercultural da UFG começou a dar os seus primeiros passos, de fato, em 2005. Naquele ano, o cacique Raul Hawakati, da Aldeia Buridina, dos Karajá, em Aruanã (GO), Aruani Karajá, também de Buridina, a professora Creusa Krahô, da Aldeia Nova, em Goiatins (TO), e Cassiano Sopero Apinajé, da aldeia São José (MT), entre outros, procuraram a professora da Faculdade de Letras, Maria do Socorro Pimentel da Silva e apresentaram a demanda de um curso superior para a formação de professores indígenas. A escolha por Maria do Socorro não foi por acaso. A docente tinha um histórico de vida ligado aos povos originários do Brasil. Começava a nascer, ali, a confluência entre o mundo acadêmico e indígena na UFG.

Maria do Socorro
Professora da UFG, Maria do Socorro (ao centro), no seminário de 10 anos do curso de Educação Intercultural da UFG (Foto: Carlos Siqueira)

O diálogo entre os dois saberes começou a ser movimentado pelos docentes reunidos por Maria do Socorro e por representantes das comunidades indígenas, especialmente do Araguaia-Tocantins, mas também de outras regiões do País. O encontro foi formalizado entre os meses de abril e maio de 2005, por meio de seminários organizados no Museu Antropológico, encontros nas aldeias e reuniões informais. Ao longo das discussões daquele ano, fizeram-se presentes, de um lado, as contribuições dos povos Karajá, Tapuio, Krahô, Xerente, Gavião Pykopjê, Apinajé, Timbira, Wapichana, Jabuti e Waran Xijien e, de outro, dos docentes das unidades da Faculdade de Letras (FL), da Faculdade de História (FH) e da Faculdade de Ciências Sociais (FCS).

Entre os frutos dos intensos debates, nasceu o Projeto Político Pedagógico (PPP) do então Curso de Licenciatura Intercultural, hoje Curso de Licenciatura em Educação Intercultural, em 2006, muito inspirado no pioneiro Núcleo Insikiran de Formação Superior Indígena, da Universidade Federal de Roraima (UFRR), criado em 2001, onde a professora da UFG, Maria do Socorro, havia colaborado. Entre os parceiros, estavam as Universidades Federais do Maranhão (UFMA), de Tocantins (UFT), a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Centro de Trabalhos Indigenistas (CTI). “Para a elaboração do PPP foram fundamentais as experiências da alfabetizadora indígena e pesquisadora Maria do Socorro e também dos professores e lideranças indígenas”, afirma a docente e linguista Mônica Veloso Borges, que desde 2007 é professora do curso e uma das colaboradoras de sua concepção.

Mônica Veloso Borges
Professora Mônica Veloso Borges durante etapa do curso nas aldeias em 2023 (Foto: arquivo pessoal)

Aprovado em todas as instâncias deliberativas da UFG, ao final do ano de 2006 foi possível realizar o primeiro vestibular do curso, lotado na Faculdade de Letras, e que hoje conta com a participação de 30 povos indígenas. “Fiquei sabendo do vestibular quando já estava na reta final do ensino médio. Foi numa pescaria na aldeia que me perguntaram se eu tinha interesse. Tinha, mas na época era tudo muito difícil, não tinha internet, transporte, a aldeia [Wiriaotãwa] ficava longe da cidade. Mas, para minha surpresa, a equipe gestora da escola onde eu estudava inscreveu todos os concluintes do ensino médio. Ficamos sabendo depois, já bem em cima do processo. Tive pouco tempo para me preparar para a prova, realizada em Palmas”, conta o professor da UFG, Gilson Tapirapé, que fez o ensino fundamental e o médio na Escola Indígena Estadual Tapi’tãwa, na Terra Indígena (TI) Urubu Branco, em Confresa (MT).

Desde o primeiro vestibular até 2019, antes da pandemia de covid-19, para facilitar o acesso dos indígenas, o processo seletivo anual (vestibular) era realizado em cidades próximas às aldeias da região Araguaia-Tocantins, nos estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso e Maranhão. As etapas, organizadas pelo então Centro de Seleção da UFG e atual Instituto Verbena, em parceria com os docentes do curso, ocorrem em dois dias e são divididas em prova escrita, entrevista e análise de currículo. Desde a pandemia, o processo seletivo passou a ser online.

Conhecimento intercultural na universidade

Gilson Ipaxi’awyga Tapirapé durante cinco anos cursou a graduação na área de Ciências da Linguagem, participou da primeira edição da especialização em Educação Intercultural e Transdisciplinar: Gestão Pedagógica, seguiu para o mestrado em Letras e Linguística na Faculdade de Letras (FL) da UFG e atualmente cursa o doutorado na mesma unidade. Após 16 anos de estudos acadêmicos, o professor da UFG não acredita na união entre os conhecimentos indígenas e os acadêmicos, e sim no seu encontro, na sua coexistência. “A união é quase impossível, pois são visões e mundos diferentes. Mas é possível coexistir, discutir as ciências de como a universidade entende determinado fenômeno e de como os indígenas entendem. Então, dá para debater”, afirma. E é com base no diálogo, na coexistência, que a Educação Intercultural passou a ser traçada nas aldeias indígenas até conquistar seu espaço no ambiente acadêmico.

I Simposio de Centro-Oeste de Etnobiologia e Etnoecologia
Apresentação Xavante no I Simpósio do Centro-Oeste de Etnobiologia e Etnoecologia na UFG, em agosto de 2019 (Foto: Carlos Siqueira)

“A educação intercultural, na verdade, é um projeto de ensino proposto para a formação cidadã indígena, isto é, o ensino busca formar estudantes indígenas para atuar em dois mundos, tanto no mundo indígena, quanto no mundo não-indígena. Nesse sentido, desde o ensino fundamental, as escolas indígenas trabalham com essa proposta de ensino. Na universidade, a educação intercultural não foge do seu princípio. Ela é pensada para a formação de professores indígenas, que atuam nas escolas em suas comunidades. O professor deve atuar nessas escolas de modo adequado e equilibrado no que diz respeito aos conhecimentos indígenas e não-indígenas”, afirma Gilson Tapirapé.

No entanto, com a ascensão de estudantes indígenas nas universidades, que mantêm uma produção bibliográfica e epistêmica historicamente afastada da realidade dos povos originários, espera-se uma mudança também no ambiente acadêmico e na produção do conhecimento científico. A posse de um professor indígena na UFG, por exemplo, é considerada uma vitória dos povos indígenas e recebida como um comprometimento da universidade com a construção da interculturalidade. “Ser o primeiro professor indígena da UFG é resultado de uma grande luta coletiva. Entendemos que a partir de então a universidade cumpre o dever de criar, de fato, a interculturalidade. Esperamos que se garanta o espaço para os conhecimentos indígenas. Não só aceitar um professor indígena. Mas caminhar em direção aos conhecimentos indígenas, porque só assim a representatividade na universidade vai ter um conjunto de metodologias para uma mudança dentro da formação”, afirma o professor Gilson Ipaxi’awyga Tapirapé.

Núcleo Takinahaky de Formação Superior Indígena
Vista panorâmica do Núcleo Takinahaky de Formação Superior Indígena (Foto: Carlos Siqueira)

Para ele, a sua presença no quadro de docentes representa a inserção de uma nova ciência no universo acadêmico, uma vez que ele leva consigo os conhecimentos e saberes especializados do seu mundo. “Então, a dinâmica do ensino muda. A universidade costuma considerar que a ciência é única, mas, na verdade, não é. Existem vários saberes científicos, existe diversidade também nas ciências. E, no meu lugar de ensino, não vou considerar somente os grandes teóricos. Procuro e procurarei levar para a universidade a ciência, o conhecimento especializado e os saberes indígenas, porque a universidade precisa disso. Não adianta discutir a interculturalidade sem levar em consideração a diversidade de saberes, e diversidade de mundos que existe no País”, afirma.

Ao promover o encontro entre as ciências indígenas e não-indígena nos cursos de graduação da área intercultural, a Universidade começa a construir paulatinamente novos acervos bibliográficos assinados por autores indígenas, que contribuem para diversificar a compreensão sobre os fenômenos e sobre as sociedades que habitam os territórios. “Até aqui, os conhecimentos e epistemologias indígenas são inseridos na UFG por meio da produção do curso de Educação Intercultural. Já temos vários livros publicados sobre os conhecimentos indígenas, dos quais os próprios professores indígenas são os autores. Então, são materiais que servem para o ensino na universidade”, acredita Gilson Tapirapé.

Núcleo Takinahaky de Formação Superior Indígena
Núcleo Takinahaky de Formação Superior Indígena

Na mesma direção, a ocupação do espaço físico acadêmico adquire novos contornos com o protagonismo indígena. O contexto mais simbólico de uma nova percepção da composição do espaço na UFG se deu com a inauguração do Núcleo Takinahaky de Formação Superior Indígena, em 2014, que promoveu a inegável visibilidade indígena na Universidade. “O Núcleo foi pensado e planejado com as lideranças indígenas. É adequado para receber os professores e suas culturas. É um lugar que garante a realização de atividades e eventos onde as práticas culturais são fortalecidas. Nele, há espaços para a manifestação cultural, as danças, os cantos. E tendo esses espaços na universidade, os professores quando chegam, não só falam sobre suas culturas, mas também praticam, apresentam. Isso é importante porque a luta é pela vitalidade linguística e cultural. É um espaço muito especial e é gratificante, porque os professores saem dessa formação capazes de movimentar suas culturas, atualizar suas culturas, revitalizar os saberes que estão em risco de desaparecimento”, afirma o professor Gilson. 

Matriz curricular entre a aldeia e a cidade

Núcleo Takinahaky de Formação Superior Indígena
Um dia de aula no curso de Educação Intercultural

O curso de licenciatura em Educação Intercultural da UFG tem duração de cinco anos e é dividido em três matrizes específicas: Ciências da Cultura; Ciências da Linguagem; Ciências da Natureza. Nos dois primeiros anos, o acadêmico estuda a matriz básica para só depois fazer a escolha de qual matriz específica irá se dedicar nos três anos seguintes. A estrutura do curso não conta com disciplinas, mas se organiza por temas contextuais. “As disciplinas são essa caixinha formatada, fechada. Os temas contextuais permitem a abordagem do conhecimento ampliado, alargado, sem fronteira, compartilhado entre saberes e culturas. Possibilita uma abordagem mais dialógica na sala de aula. Nessa perspectiva tudo é assunto da aula. Se aquela temática surgiu no debate é porque ela faz parte do conteúdo da aula”, afirma a professora do Curso de Educação Intercultural, Mônica Veloso Borges.

Ao longo do ano, os acadêmicos indígenas e os docentes da UFG se dividem entre a universidade e a aldeia. O curso é estruturado em quatro etapas anuais: duas na Universidade, normalmente de janeiro a fevereiro, e de julho a agosto; e duas nas aldeias, nos meses de abril ou maio, e outra em outubro ou setembro. “Há variáveis que interferem na data de deslocamento à aldeia, como a quantidade de alunos, o território, os recursos”, explica Mônica Veloso. Contando com a presença de 30 povos indígenas em seu quadro de acadêmicos, o curso se organiza por meio de Comitês, que reúnem os docentes de acordo com a sua afinidade e conhecimento adquirido a respeito dos povos, “e esses professores vão trabalhar diretamente com aqueles alunos do povo que compõe o seu comitê, nas respectivas aldeias”. Na etapa nas aldeias são realizadas orientação de estágio, orientação de trabalhos finais do curso, orientação dos materiais didáticos, e vivências culturais. Já na Universidade são trabalhados os temas contextuais e os estudos complementares, os seminários de pesquisa e discussão, além das orientações individuais e coletivas dos estágios, dos trabalhos finais de curso, e dos materiais didáticos.

Núcleo Takinahaky de Formação Superior Indígena
Exposição dos professores indígenas no Núcleo Takinahaky (Fotos: Carlos Siqueira)

Entre uma etapa e outra, os desafios são presentes tanto para acadêmicos quanto para docentes. Para os estudantes indígenas, chegar no espaço universitário significa, antes, ocupar o espaço desconhecido da cidade e acolher uma nova dinâmica de sobrevivência, rotina, encontros sociais, diálogo e uso da língua. “É importante lembrar que os povos indígenas são de uma realidade diferente, são moradores de aldeias, e a cidade já é outro mundo para nós. Na aldeia não temos dinheiro, vivemos em família, com a comunidade. Na cidade, para sobreviver precisa de dinheiro. Na cidade nos sentimos presos. É diferente na aldeia onde somos livres. A língua portuguesa é língua estrangeira para nós, mas no curso é também a língua de relações, de troca de ideias, pois o curso recebe mais de 30 povos diferentes. E, não raro, ao

Etapa nas aldeias Boe
Na etapa na aldeia Meruri, localizada no Território Indígena Meruri, município de General Carneiro (MT), acadêmicas Iolanda e Márcia ensinam a professora da UFG, Ana Paula Purcina, a produzir parikiboto, uma espécie de abanador do povo Boe (Foto: arquivo pessoal)

sair da aldeia, o estudante enfrenta dificuldade ao falar português. Então são vários desafios e dificuldades”, afirma o professor da UFG, Gilson Tapirapé.

Já para os docentes da UFG, o deslocamento físico até as aldeias pressupõe o deslocamento do seu lugar de saber. Nas comunidades indígenas, os docentes também se tornam educandos e vão igualmente aprender. “Ali eles conhecem melhor seus alunos, como vivem, a estrutura da organização social. É uma oportunidade de formação para os professores da universidade, que vai contribuir para pensar o ensino e formação dos professores indígenas”, observa Gilson Tapirapé. “A gente vai para a aldeia não só para dar aula, para orientar, mas para aprender, para vivenciar, para viver”, explica a professora Mônica Veloso Borges.

Saiba Mais

Museu Antropológico realiza lançamento de livros

A luta do povo originário

Fonte: Secom UFG

Categorias: destaque Especial Institucional