Redes sociais podem vender a ilusão de soluções fáceis
Especialistas também abordam aspectos sociais e econômicos da saúde mental e o papel da psiquiatria
Disponibilização e acesso de informações sobre saúde mental nas redes sociais devem ser feitos com responsabilidade (Foto: mooremedia/Shutterstock)
Reportagem: Eduardo Bandeira
Edição: Luiz Felipe Fernandes
"Este texto irá te guiar pelos principais passos para adquirir saúde mental, superar a ansiedade, contornar o TDAH e vencer o perfeccionismo". Frases como essa são comuns principalmente nas redes sociais, em que temas relacionados à saúde mental são frequentemente abordados de forma simplificada, prometendo soluções rápidas e fáceis.
No entanto, essa abordagem superficial oculta a complexidade dos desafios envolvidos, criando expectativas irreais e, muitas vezes, frustrantes para aqueles que enfrentam essas questões.
A professora de Psicologia e especialista em Gestalt-terapia da Universidade Federal de Goiás (UFG), Leda Gimbo, alerta para o perigo de tentar aplicar soluções prontas na gestão do sofrimento humano – tendência que pode transformar campanhas importantes, como o Setembro Amarelo, em mera armadilha de marketing.
Quando essa simplificação ocorre, reforça-se a separação entre corpo e mente, um conceito muitas vezes perpetuado pelo modelo biomédico. Esse modelo induz a sociedade a acreditar que um medicamento pode resolver todos os problemas, quando, na verdade, somos seres integrais.
Parte dos sofrimentos que levam ao suicídio, por exemplo, está enraizada em violências estruturais. Populações mais vulneráveis, como a população de baixa renda, negros, indígenas, idosos e comunidade LGBTQIAPN+ são afetadas de foram desigual por essas violências.
Leda salienta que muitos profissionais usam a campanha para vender "receitas rápidas" de bem-estar, quando o foco deveria ser a discussão sobre políticas de proteção à vida e garantia de justiça social.
"A saúde mental não pode ser resumida a soluções rápidas ou ao que dá 'likes' nas redes sociais. Precisamos refletir sobre o que realmente está por trás do sofrimento humano e como podemos, coletivamente, criar um ambiente mais saudável e justo para todos", comenta.
Saúde mental e internet
"As pessoas procuram receitas rápidas na internet para lidar com ansiedade ou depressão, como se fosse simples ver um vídeo de cinco minutos e resolver tudo. Mas não é assim. Uma alternativa mais humanizada seria conversar com alguém, tomar um chá, respirar e refletir sobre a situação. O contato humano, o vínculo com a arte e a terapia são formas mais eficazes de lidar com esses desafios. O problema é que a terapia ainda é um serviço elitizado e, muitas vezes, inacessível para muitas pessoas. O ideal seria que todas as pessoas tivessem acesso a esse cuidado de forma contínua e profissional", considera Leda.
No mês de setembro, por exemplo, as redes sociais são amplamente usadas para disseminar dados sobre o suicídio. É comum encontrar informações como "90% dos casos de suicídio estão relacionados a transtornos mentais".
Porém, de acordo com a professora, ignora-se o fato de que o sofrimento humano vai além da maioria dos diagnósticos clássicos, estando principalmente relacionado a questões estruturais, como falta de dignidade, condições de vida precárias, violências e ausência de políticas públicas.
"Precisamos perguntar: como ter saúde mental em uma sociedade capitalista, de hiperperformance, em que a desigualdade e a falta de acesso a direitos são predominantes?", aponta Leda.
Hiperexposição
Segundo a pesquisa Global Digital Overview 2020, feita pelo site We Are Social em parceria com a ferramenta Hootsuite, cada usuário fica em média duas horas e 24 minutos por dia nas redes sociais. Além de anúncios, memes e reels, o conteúdo consumido inclui fotos e vídeos de influencers e pessoas do ciclo social de cada indivíduo.
Essa virtualização da vida, no entanto, parece nem sempre promover trocas saudáveis, pois dos 36,9% dos brasileiros que passaram três horas ou mais por dia nas redes sociais, 43,5% possuem diagnóstico de ansiedade, de acordo com o relatório Panorama da Saúde Mental, do Instituto Cactus e da AtlasIntel, divulgado em junho deste ano.
Leda sugere que precisamos refletir sobre as premissas éticas e o uso das tecnologias, especialmente no que diz respeito às redes sociais. Ela destaca que, embora aprecie as redes como uma ferramenta para manter contato com pessoas distantes, acredita que elas não deveriam definir nossos valores. Para ela, os verdadeiros valores estão nas relações pessoais, como o amor, a amizade e o convívio.
A professora observa que há uma tendência de substituir as interações presenciais por uma virtualização da vida, o que não preenche todos os aspectos das nossas necessidades emocionais. Ela também ressalta que as redes sociais muitas vezes promovem comparações que podem levar à sensação de que os outros estão mais felizes e bem-sucedidos.
A professora também menciona que indivíduos que não se encaixam nas imagens e nas lógicas de consumo predominantes nas redes sociais podem experimentar sentimentos de desvalor e exclusão. Mensagens simplificadas podem causar aversão a pessoas em sofrimento profundo, como aquelas que estão passando por um luto ou um processo emocional complicado.
Leda ressalta que é delicado abrir as redes sociais e encontrar sugestões de gerenciamento de sentimentos que não consideram fatores políticos, econômicos e existenciais da vida das pessoas. Para ela, a prevenção ao suicídio não deve se limitar a campanhas que não tragam dados e uma abordagem mais abrangente.
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Para especialistas, falar de saúde mental no Brasil passa necessariamente pela defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) (Foto: Ascom MS)
Jovens, minorias e o Sistema Único de Saúde
De acordo com a professora da UFG, a incidência de comportamentos autolesivos e ideação suicida entre jovens está profundamente enraizada na superexposição e na pressão por hiperdesempenho que caracteriza a sociedade contemporânea.
"Vivemos em uma era em que o consumo e a produtividade são valorizados acima de tudo, e o mercado de trabalho tem se transformado de maneira a gerar insegurança e falta de perspectivas para muitos jovens. Essa realidade, marcada pela precarização do trabalho e pela competição exacerbada, contribui para uma sensação de falta de futuro e aumento do sofrimento, levando alguns a considerar a morte como uma solução desesperada".
Para a professora, a sociedade capitalista e neoliberal, com sua ênfase na competição, não só desintegra políticas públicas e formas de coletividade, como também fomenta a divisão e o antagonismo entre indivíduos, exacerbando ainda mais as dificuldades enfrentadas por jovens, pela comunidade negra e por dissidentes.
"A opressão social, o desmonte de direitos e a violação de garantias são fatores estruturais que afetam diretamente populações vulneráveis como a comunidade LGBTQIAPN+. É muito fácil dar receitas rápidas e sugerir terapia, mas precisamos lembrar que nem todos têm acesso a esses serviços, e que o SUS está sendo desmantelado. Não podemos ignorar os problemas estruturais que agravam o sofrimento dessas populações. Não é apenas uma questão de transtorno mental individual, mas de um problema social muito maior".
Uma das políticas públicas que precisa ser valorizada são os Centros de Atenção Psicossocial (Caps). "O SUS é um sistema de saúde fundamental que deve ser valorizado por seu papel crucial, especialmente em situações de crise como a pandemia de covid-19, quando garantiu acesso a cuidados essenciais".
Psicopatologias
O psiquiatra Douglas Barbosa explica que a psicopatologia é o estudo das alterações psíquicas, o que é considerado patológico na mente. As mais prevalentes na população são a depressão e a ansiedade. Dentro da depressão, no entanto, existem subtipos, como a depressão unipolar e a depressão bipolar.
O psiquiatra aponta que a relação entre transtornos mentais e comportamentos suicidas é complexa e multifacetada. Ele explica que, por exemplo, uma pessoa com depressão pode ter dificuldade em encontrar prazer nas atividades cotidianas, o que pode intensificar o risco suicida. Além disso, o uso de substâncias como álcool e drogas pode exacerbar a impulsividade, aumentando a probabilidade de comportamento suicida.
A discussão sobre suicídio é frequentemente cercada por um tabu social, que tem raízes históricas. Um exemplo é o Efeito Werther, que remonta a 1774, quando o escritor alemão Goethe publicou o livro "Os Sofrimentos do Jovem Werther". A obra, que descrevia o suicídio de um jovem, levou a um aumento de casos semelhantes na Europa, resultando em proibição e queima do livro.
Desde então, a sociedade tem evitado o tema, temendo que a discussão sobre suicídio possa incentivar comportamentos similares. No entanto, iniciativas como o Setembro Amarelo demonstram que falar sobre o sofrimento e a prevenção do suicídio não aumenta o risco. Falar abertamente e com responsabilidade sobre o sofrimento e a prevenção ajuda a quebrar o estigma e encoraja as pessoas a buscar ajuda.
Fórmulas prontas ignoram aspectos sociais e econômicos da saúde mental, que afeta populações vulneráveis, como a indígena (Foto: Rafael Coxini)
Medicamentalização e tabus
Segundo Douglas Barbosa, a psiquiatria, uma área da ciência relativamente jovem, ainda enfrenta preconceitos. No passado, a psiquiatria era fortemente influenciada pelas teorias freudianas e focava mais na observação do que na intervenção direta.
Foi somente após a Segunda Guerra Mundial, com o avanço das tecnologias e a descoberta acidental de medicamentos, como a clorpromazina, que o tratamento farmacológico começou a se desenvolver significativamente. Muitos desses medicamentos, inicialmente não criados para tratar transtornos psiquiátricos, mostraram efeitos benéficos na redução de sintomas de psicose, ajudando a melhorar a eficácia dos tratamentos psiquiátricos.
O uso de medicamentos para tratar a ideação suicida é fundamental tanto para o tratamento quanto para a prevenção. O médico explica que existem também métodos modernos, como a neuromodulação não invasiva, que são aplicados em casos agudos. O tratamento pode ser dividido em três níveis de prevenção.
A prevenção primária visa intervir antes do surgimento de pensamentos suicidas, especialmente em pessoas com transtornos psiquiátricos que estão em risco. A prevenção secundária foca na redução do risco quando pensamentos suicidas já estão presentes, enquanto a prevenção terciária trata daqueles que já tentaram o suicídio, oferecendo tratamentos e ajustes no ambiente para evitar novas tentativas.
Douglas ressalta que a maioria dos suicídios é evitável, pois os indivíduos geralmente manifestam sinais e sintomas, tornando essencial que a sociedade como um todo esteja atenta e compreenda esses sinais para efetivamente ajudar na prevenção.
"O histórico de diagnósticos e a falta de tecnologia no passado contribuíram para o estigma em torno dos psiquiatras, que muitas vezes eram vistos apenas como profissionais que diagnosticavam e prescreviam medicamentos com efeitos colaterais. Isso gerou a ideia de que os remédios fazem mal, quando, na verdade, ajudam a melhorar a saúde, reduzindo o sofrimento e permitindo uma vida melhor. Com os avanços recentes na neurociência e na psiquiatria, estamos conseguindo desfazer esse estigma. Hoje temos estudos sólidos que ajudam a personalizar os tratamentos com base nas alterações no funcionamento do cérebro”.
Para Douglas, a psicoterapia como ferramenta no tratamento de transtornos mentais é fundamental para Douglas. O médico acredita que todos deveriam considerar a terapia em algum momento da vida, pois ela oferece aprendizado sobre como lidar com as emoções e pode corrigir distorções cognitivas. Ele esclarece que a terapia pode proporcionar benefícios duradouros, muitas vezes superando o impacto apenas do uso de medicamentos.
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Se você ou alguém que você conheça estiver se sentindo vulnerável, entre em contato com algum dos serviços:
- Disque 188 (Centro de Valorização da Vida)
- (62) 3209-6243 (Programa Saudavelmente UFG)
- (62) 3209-6298 (Centro de Psicologia da UFG)
- (62) 3434-0496 (Rede de Psicologia)
- psymeetsocial.com (terapia com valores acessíveis)
Fonte: Secom UFG
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