Saúde mental: ficção, fato e algoritmo
Especialistas falam sobre suicídio no cinema, diretrizes jornalísticas em coberturas relacionadas à saúde mental e os riscos da terapia com IA
Sessão de terapia por IA: popularização das ferramentas de inteligência artificial traz oportunidades e desafios (Foto: Shutterstock)
Reportagem: Eduardo Bandeira
Edição: Luiz Felipe Fernandes
Buscar maneiras de representar a realidade parece ser uma necessidade inerente à condição humana. Desde as pinturas rupestres feitas pelos homens das cavernas até a Mona Lisa de da Vinci, a humanidade sempre se expressou por meio de diferentes formas de arte.
Atualmente, filmes que levam milhões de pessoas às salas de cinema e aos serviços de streaming continuam essa tradição, mostrando que, para o ser humano, é natural manifestar-se através da criação.
Com o avanço da tecnologia e o interesse crescente por questões sociais, somam-se a essa jornada os recentes avanços tecnológicos representados por novos modelos de inteligência artificial. Nesse contexto, a saúde mental surge como um tema multifacetado, capaz de ser interpretado sob três perspectivas distintas: o cinema, o jornalismo e a inteligência artificial.
Pelas telas na sala escura
O professor da Faculdade de Informação e Comunicação (FIC) da Universidade Federal de Goiás (UFG), Lisandro Nogueira, ressalta que, historicamente, o cinema, especialmente o norte-americano, teve dificuldade em retratar a questão da saúde mental, em particular o suicídio. Isso ocorre porque o Código de Hollywood restringia, desde 1930, a discussão sobre o tema na tela grande.
Em contrapartida, o cinema europeu abordava o tópico de maneira mais aberta, muito influenciado pela literatura. Filmes como "As Horas" criavam atmosferas que levantavam perguntas sem se preocupar em dar respostas, diferentemente da abordagem melodramática comum em muitos filmes norte-americanos.
Com o passar do tempo, saúde mental e suicídio tornaram-se não só temas recorrentes nas produções cinematográficas e televisivas, como também se destacam atualmente por funcionar como elementos que enriquecem o enredo de ficções que se propõem a tratar do assunto.
Assim como no cinema, outras áreas, como o jornalismo, também enfrentam desafios na abordagem da saúde mental, que precisam ser tratados com responsabilidade para evitar impactos negativos no público.
Filmes como "As Vantagens de Ser Invisível" (2012), "Close" (2023) e "Querido Evan Hansen" (2021), e séries como "Sorry For Your Loss", "Skam", "Heartstopper", "Eu Nunca" e "Sex Education" provam que não só é possível criar uma simbiose entre saúde mental e entretenimento, como também que essa relação é necessária, desde que sejam tomadas as devidas precauções.
Lisandro destaca que o primeiro cuidado ao tratar o suicídio no cinema é evitar o sensacionalismo. Para ele, este é um tema profundamente humano, e explorá-lo apenas para despertar a emoção do espectador é um erro. Filmes como “As horas”, por exemplo, se destacam por abordar o assunto com uma estética que levanta questões, sem pretender dar todas as respostas.
"A estética é fundamental, pois o filme deve envolver o público e provocar reflexões, sem recorrer à manipulação emocional", ressalta.
As consequências de não abordar o tema de maneira cuidadosa podem ser prejudiciais. Isso pode influenciar negativamente o espectador, especialmente quando o filme propõe reflexões rasas. "Um exemplo é o filme 'Geração Prozac', que pode causar identificação de maneira prejudicial. Esse assunto deve ser tratado com seriedade e responsabilidade", alerta o professor.
Em uma de suas tramas, o filme "As Horas" retrata a luta de Virginia Woolf (Nicole Kidman) contra a depressão (Imagem: Reprodução)
As manchetes do jornal
Outro espaço onde é necessário cautela ao abordar tópicos de saúde mental é o jornalismo. Assim como o código utilizado por Hollywood nos anos 1930, o manual de imprensa para a cobertura de casos de suicídio estabelece uma série de diretrizes para garantir que o tema seja tratado de forma humanizada e respeitosa.
Para o jornalista do Jornal Opção, de Goiânia, Italo Wolf, a evolução do diálogo sobre saúde mental na sociedade é positiva. Ele observa que, atualmente, há maior conscientização sobre as doenças mentais, que são reconhecidas como questões sérias e que necessitam de tratamento profissional.
Ele destaca que termos pejorativos como "frescura" ou "drama" têm diminuído, embora ainda não tenham desaparecido por completo. "De modo geral, percebo que o jornalismo está mais atento. No entanto, ainda surgem abordagens alternativas sem embasamento científico, o que reflete a sociedade como um todo, e não apenas o jornalismo”.
Para o jornalista, a cobertura de temas relacionados à saúde costuma ser relativamente mais simples do que em outras áreas, já que os profissionais de saúde tendem a ser mais dispostos a falar com a imprensa, enxergando o jornalismo como uma ferramenta de conscientização da população.
No entanto, o principal desafio, segundo Italo, é encontrar boas fontes de dados, pois muitas doenças e distúrbios são subdiagnosticados, resultando em uma escassez de informações precisas.
Dessa forma, o papel do jornalismo, para Italo, é relatar os fatos, identificar problemas que afetam muitas pessoas e orientar sobre como buscar tratamento. Além disso, reportagens mais humanizadas, que incluem entrevistas com pessoas que vivenciam esses problemas, podem gerar identificação e empatia, fazendo com que o público entenda que a saúde mental é uma questão real e recorrente.
Para atingir esse objetivo, os manuais de jornalismo orientam a evitar a descrição de métodos e locais, bem como os detalhes de bilhetes ou notas deixadas pelas vítimas, evitando a glamourização ou a sugestão de que o suicídio é uma solução.
"Além disso, é preciso evitar a exposição de detalhes íntimos sem interesse público, como a situação familiar da pessoa. O foco deve estar na saúde mental e nos métodos de prevenção, especialmente no caso de figuras públicas. Não se trata de explorar o sofrimento pessoal", acrescenta o jornalista.
Sobre a relevância desses casos para o jornalismo, Italo explica que, quando se trata de figuras públicas ou pessoas com poder político, pode ser importante noticiar, desde que isso venha acompanhado de esclarecimentos sobre os problemas de saúde mental envolvidos.
No caso recente do influenciador digital PC Siqueira, por exemplo, ele já havia falado publicamente sobre sua depressão. Para Italo, ao noticiar a morte de alguém nessas circunstâncias, é essencial não omitir a causa, pois isso contribui para uma discussão mais ampla sobre prevenção.
Saúde mental, suporte artificial
Ao lado do cinema e do jornalismo, a inteligência artificial desponta como uma ferramenta no cuidado com a saúde mental, trazendo tanto oportunidades quanto desafios éticos. Isso porque, mais do que nunca, influencers e jovens passaram a compartilhar suas rotinas utilizando essa tecnologia para oferecer suporte emocional e por vezes até mesmo para simular uma sessão de terapia.
O psicólogo de terceira geração Gabriel Valle de Oliveira explica que a IA pode ser útil de diversas formas na saúde mental, mas salienta que ela não substitui o papel do terapeuta. Dessa forma, a inteligência artificial pode ser utilizada de outras maneiras, como um acervo ou um lembrete de processos terapêuticos.
"Essa ferramenta pode armazenar informações que ajudam o paciente a se lembrar das técnicas e tarefas que já foram discutidas em sessões anteriores, por exemplo. Porém, não podemos confiar que a IA gere novas informações terapêuticas por conta própria", alerta.
Sobre os limites, Gabriel acredita que a IA pode, de fato, contribuir para o cuidado com a saúde mental, mas só até certo ponto. Ele aponta que, embora a tecnologia possa ajudar na organização de tarefas e lembretes para os pacientes, dificilmente substituirá a terapia humana.
Segundo ele, as pessoas que estão começando a experimentar essas ferramentas percebem rapidamente seus limites, como a confusão entre diferentes abordagens terapêuticas ou a oferta de informações descontextualizadas. Por isso, Gabriel enxerga a IA mais como um complemento do que uma substituição ao trabalho humano.
Para o psicólogo, um dos riscos é a ferramenta de IA criar uma falsa sensação de acolhimento ou de resolução de problemas. Por ser um programa, ela não tem empatia real, mas algumas pessoas podem se sentir momentaneamente bem por "conversar" com ela.
Além disso, se a IA fornecer informações erradas ou confusas, pode prejudicar o tratamento. Por isso, é crucial que qualquer uso de IA como auxílio para a saúde mental seja acompanhado por um profissional qualificado. Além disso, a ferramenta não pode substituir o ser humano na criação de um ambiente terapêutico e na compreensão profunda do comportamento do paciente.
Segundo ele, o terapeuta não trabalha apenas com base em teorias, mas utiliza habilidades humanas essenciais, como a empatia e a capacidade de construir uma relação significativa com o paciente. O psicólogo enfatiza ainda a habilidade de lidar com as emoções e os desafios individuais de cada pessoa.
Além disso, embora a IA seja protegida por políticas de privacidade de dados, como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), existem riscos em relação à privacidade das informações. A IA pode usar as interações para aprender e aprimorar suas respostas, mas o destino final dessas informações pode ser questionável. E mesmo que não haja vazamento de dados, existe o risco de uso indevido das informações em futuras interações.
Por isso, para Gabriel, uma regulamentação mais rigorosa sobre o uso de dados em terapias com IA poderia ajudar a minimizar os riscos associados. No entanto, ele reconhece que é difícil bloquear completamente o uso dessas informações, já que a IA depende dos dados para aprender e evoluir.
Para ele, trata-se de um equilíbrio delicado entre garantir a segurança dos pacientes e promover o avanço tecnológico, "utilizando para situações de apoio teórico ou em questões de organizações e nunca compartilhando informações pessoais ou buscando apoio emocional".
"A necessidade de interações humanas reais é fundamental para o ser humano, especialmente no que diz respeito a empatia e comunicação sincera. A IA pode ser uma ferramenta, mas a terapia envolve muito mais do que apenas trocar informações – envolve compreensão emocional, que a IA ainda não consegue proporcionar de maneira completa", conclui.
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- (62) 3209-6298 (Centro de Psicologia da UFG)
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- psymeetsocial.com (terapia com valores acessíveis)
Fonte: Secom UFG
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