SONS DE 73
Da nostalgia da música caipira à transgressão dos acordes urbanos
Maurício Vasconcelos Furtado*
1973. Morre Pixinguinha. Com o desejo de recordar um ano excepcional de discos, fiz uma resenha saudosista de músicas de alta qualidade, em comparação com a atualidade, registrando uma queda abissal do padrão musical. Os festivais de música foram os formadores desse acervo. Pacientemente, reuni todos eles em 33 rpm durante grande intervalo de tempo, para ter a possibilidade de uma análise mais rigorosa.
Nervos de Aço
Artista: Paulinho da Viola
Gravadora: Odeon
Como tudo que fez até agora, é um dos integrantes do grupo que é a nobreza do samba. Uma obra irrepreensível, porém de uma situação carregada. De alta densidade musical, traz ao ouvinte certa ansiedade espiritual pela atmosfera de dissabores, desesperanças e desilusões vividas pelo compositor naquelas circunstâncias.
A censura não percebeu a mensagem de Primavera nos dentes que é um surpreendente elogio à resistência.
Free
Fingers
Artista: Airto Moreira
Gravadora: CTI e Top Tape
Circulavam informações na época que o percussionista catarinense ganhou de Chico Buarque a passagem para Los Angeles. Antes de partir, fez com Hermeto Pascoal e Humberto Clayber um disco nomeado Sambrasa Trio, e com Cesar Camargo Mariano e Humberto Clayber um disco intitulado Sambalanço Trio, ambos de 1965. Free foi o segundo disco e Fingers o terceiro gravado nos EUA.
Percussão primorosa, mas em nada parecida com a pernambucana Naná Vasconcelos, que, acompanhada de músicos locais brilhantes, fez dois discos instigantes musicalmente.
Quando ele resolve cantar é um desastre. Deixasse somente Flora Purim, sua mulher à época, soltar sua bela voz.
Um adendo: muitos anos mais tarde, uma demonstração do ecletismo musical brasileiro: o disco “Sounds on The Ground”, em que o catarinense e Flora tocaram com Hermeto e Sivuca.
Secos e Molhados
Artista: Secos e Molhados
Gravadora: Continental
Diante de uma capa do disco com cabeças decepadas, o mínimo que se pode esperar é um sentimento de transgressão. Não cabe aqui discutir posturas comportamentais, mas sim o que vem emanando do som. Vozes dissonantes e consonantes permeiam todo o trabalho do grupo. Temos também vozes em falsete.
Contudo, se o álbum tivesse uma única gravação já seria plenamente justificável. Trata-se de Rosa de Hiroshima (Vinicius de Moraes), um bibelô estelar.
Francis Hime
Artista: Francis Hime
Gravadora: Odeon
Um disco quase erudito, com opulência de uma orquestra com 32 cordas, dez metais, sete instrumentos rítmicos e oito instrumentos tocados por músicos de alta estirpe qualitativa, a obra apresenta esplêndida canções populares com o “Atrás da porta”, “Minha” e “Seu mais adeus”, quase asfixiadas pela inevitável erudita.
Visivelmente com muita técnica e pouca emoção. O contrário seria melhor, para maior apreciação musical. Nos discos seguintes, Francis soltou-se mais.
Obra para ouvintes com mais apreciação musical, porém nunca possível de devolução. A propósito, a gravação de “Atrás da porta” (Philips, 1972) com Elis Regina é definitiva e para escutar tendo ingerido um ansiolítico.
Tonico e Tinoco 31 anos
Artista: Tonico e Tinoco
Gravadora: Continental
Uma obra ímpar da discografia da música caipira. Músicas legítimas de alta sensibilidade de autores íntegros com o mundo rural. Arranjos irretocáveis sem cornetas mexicanas ou baterias, guitarras, violinos, etc, usados atualmente na música sertaneja que tangencia o breganejo. Nada de dor de corno ou exibicionismos vocais aparecem.
Certamente uma viagem musical voltando no túnel do tempo (Como se isso fosse possível…). Irrepreensível! Nostálgico!
Matita Perê
Artista: Tom Jobim
Gravadora: Philips
Contando com três músicas cantadas, seguidas por cinco esplendorosas, todas orquestradas e arranjadas pelo magistral Claus Ogerman, o álbum é uma espécie de filiação à sua opus magnum “Stone Flower” (Columbia, 1970).
Destaque para a sua segunda gravação de “Águas de março” e a música título que é dedicada à Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade e Mário Palmeiro. A influência roseana é potente. Soberbo! Incontornável!
A título de informação: “Águas de março” tem a primeira gravação no primeiro disco de bolso do jornal O Pasquim (maio de 1972) e a definitiva gravação no magnífico “Elis e Tom” (Philips, 1974). A gravação em inglês da música está no CD Jobim (Verve, 200) não lançado no Brasil no CD Rio Revisited (Verve, 1992) gravado ao vivo em Los Angeles (1987). Considerado pelo grande crítico americano Leonard Feather como uma das dez melhores de jazz até aquela época.
A saber: “Cálice” (Chico Buarque e Gilberto Gil, 1973) foi gravada pelos estudantes da Escola Politécnica da USP no dia 26 de maio daquele ano. O CD com a íntegra do show acompanha o livre “Cale-se”, de Caio Túlio Costa. A canção só seria gravada comercialmente cinco anos mais tarde no EP Chico Buarque (Philips) em interpretação belíssima de Chico e Milton Nascimento. Não ouvi.
O Último Pau de Arara
Artista: Fagner
Gravadora: Philips
Sem exageros vocais e repertório cativante, o cantor cearense, apadrinhado por Nara Leão, que o acompanha em “Penas de Tiê”, e por Naná Vasconcelos na percussão, realizou um trabalho inaugural de porte, seguido depois pelo disco Ave Noturna.
Por desonestidade ou desinformação, musicou um poema de Cecília Meireles sem os créditos devidos (não registrou como música incidental “Aves de março”, de Tom Jobim).
Nelson Cavaquinho
Artista: Nelson Cavaquinho e Guilherme Brito
Gravadora: Odeon
Outro autor e cantor que pertence à nobreza do samba, que, junto com seu parceiro maior, destila sambas de alto quilate com sua voz roufenha, emocionando o ouvinte que se entrega sem reservas a essa obra-prima produzida pelo competentíssimo Pelão. Soberbo! Em caso de emoção exacerbada não tenha pejo! Chore, Chore, Chore!
Amazonas
Artista: Naná Vasconcelos
Gravadora: Philips
Inigualável, mesmo entre suas obras posteriores, essa obra única do percussionista pernambucano pede atenção ao ouvinte para desempenhos magistrais com instrumentos e com seu próprio corpo.
Em uma resenha de discos memoráveis, arrisco a dizer que esta obra, junto a Ou Não e Araçá Azul, formam uma trinca de discos que provocam uma tempestade musical atípica. Não existe cópia oficial em CD. Sugiro que a Polysom lance-o em LP.
Egberto Gismonti (Luzes da Ribalta)
Artista: Egberto Gismonti
Gravadora: Odeon
Grande músico de enorme preparo técnico, gravou pérolas instrumentais agradáveis neste álbum, mas pecou com o vício nacional de contar. Apoiado por instrumentistas notáveis, uma obra regular que mais tarde produziu o estupendo Academia de Danças.
Não resisto em registar para os não versados na obra dele as obras-primas Dança dos Cabeças (1976) e Sol do Meio-Dia (1978), com gigantes instrumentistas nacionais e estrangeiros. Tem vasta discografia, a conferir.
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* Maurício Vasconcelos Furtado é professor aposentado da Universidade Federal de Goiás (UFG). Esta coluna é dedicada a José Eduardo Moraes e José Carlos Ortêncio.
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Fonte: Secom UFG
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