Fortalecer as tradições e valorizar a diversidade
Publicação da Assessoria de Comunicação da Universidade Federal de Goiás
ANO IX – Nº 71 – Abril – 2015
Fortalecer as tradições e valorizar a diversidade
Educação Intercultural Indígena propõe formação diferenciada para professores de escolas indígenas por meio do incentivo à manutenção do patrimônio cultural das comunidades
Texto: Serena Veloso | Foto: Carlos Siqueira
Discussões em sala de aula interligam as diversas áreas do conhecimento com os saberes culturais indígenas
O impacto das transformações culturais vivenciadas pelas comunidades indígenas com o passar dos anos pode ser sentido, cada vez mais, nas salas de aula das escolas de aldeias. Na aldeia Canoanã, localizada no Estado do Tocantins, onde habitam os Javaé, as tradicionais brincadeiras infantis estão sendo substituídas rapidamente pelo uso das tecnologias. A televisão, o rádio, o celular e outros eletrônicos, passaram a fazer parte da rotina de crianças e adolescentes, que em sua maioria não conhecem algumas das importantes manifestações culturais de sua etnia. Romildo Ixariri Javaé Araújo, 29 anos, professor de ensino fundamental na aldeia, presencia o esquecimento ao longo do tempo dessas tradições.
Foi aos nove anos de idade que viu sendo praticado pela última vez o Weriri Irasó, cujo significado em português é Aruanã Mirim. Trata-se de um conjunto de manifestações que incluem cantos, danças, brincadeiras e comidas típicas, realizado apenas com meninos de cinco a nove anos como preparação para o processo de transição para a vida adulta, quando começam a participar dos rituais na Hetohoky (Casa Grande), local somente acessado pelos adultos.“Antigamente nós não tínhamos o impacto dos não-indígenas dentro das comunidades. Hoje em dia temos que conviver com todos os lados: o lado do branco e o lado do índio”, declarou o professor.
Quando Romildo Ixariri Javaé Araújo ingressou no curso de Educação Intercultural Indígena da UFG, viu a oportunidade de fortalecer a prática em sua comunidade, levando seus conhecimentos para as crianças nas escolas. Durante a pesquisa para o estágio escolar, em contato com os anciões, procurou investigar a fundo a manifestação e a razão de seu esquecimento por tantos anos. As descobertas de Romildo Javaé renderam mais aulas que o esperado e ele aproveitou não só para ensinar os alunos sobre o que era o Weriri Irasó, como também para realizar aulas práticas. “Nunca pensei que haveria tanto envolvimento das crianças”, comentou o professor.
O incentivo à manutenção do patrimônio cultural indígena é uma das premissas do curso de graduação, implantado na UFG em 2007 e vinculado à Faculdade de Letras (FL), sendo a primeira universidade no Estado de Goiás a abrir as portas para essa modalidade de educação, voltada especificamente às questões culturais, políticas e sociais dos povos indígenas. O curso foi reconhecido com nota máxima na avaliação realizada pelo MEC em 2014. Atualmente, a licenciatura funciona dentro do Núcleo Takinahaky e atende cerca de 300 alunos de 20 povos, oriundos de comunidades dos estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Maranhão e Pará. Durante os cinco anos de curso, os estudantes desenvolvem ações que contribuem com os interesses das comunidades.
Com diretrizes curriculares diferenciadas das graduações regulares, a Educação Intercultural Indígena é constituída sob dois princípios pedagógicos: o da interculturalidade e o da transdisciplinaridade. Por isso, o corpo docente é formado por professores de diversas áreas do conhecimento, cada um deles responsável por um comitê nos quais os alunos estão divididos segundo cada povo. Além de cursar os temas contextuais, os graduandos têm a possibilidade de colocar em prática o aprendizado construído ao longo das aulas e adquirido em suas pesquisas durante os estágios nas escolas.
O trabalho de conclusão do curso é o projeto extraescolar, no qual os alunos aprofundam o conhecimento sobre algum tema relacionado a uma das seguintes grandes áreas: Ciências da Natureza, Ciências da Cultura ou Ciências da Linguagem. “Nós orientamos que eles conversem com os mais velhos e com o pessoal da sua comunidade e vejam temas que sejam interessantes para serem abordados”, explica o vice-coordenador do curso, Carlos Abs da Cruz Bianchi. A apresentação do trabalho final, escrito na língua materna, é realizada na UFG e nas aldeias.
Professores do curso organizaram uma coletânea de livros com as pesquisas dos alunos sobre as manifestações culturais das comunidades indígenas
Conhecimento em prática
A sede pelo conhecimento e o interesse em reavivar suas tradições, levam os alunos a quererem se infiltrar no universo do sagrado. Falar sobre os ritos, muitas vezes envolve desvendar segredos guardados apenas pelos anciãos. Wajumani Karajá, da aldeia Macaúba, resolveu assumir a difícil tarefa de pesquisar as músicas específicas de cada povo Karajá, cantadas durante a festa do Aruanã. Para isso, visitará cada aldeia e conversará com os caciques para fazer um levantamento de todas as canções e, ainda, investigar o motivo de muitas delas não integrarem mais os rituais. Espírito sagrado da água, o Aruanã é geralmente trazido pelo pajé, que escolhe o dia e as músicas a serem cantadas nos festejos. “Depois de realizar a pesquisa, vou transmitir esses saberes para minha comunidade e colocá-los em prática”, relatou Wajumani Karajá, que observou o esquecimento dos cânticos não só entre jovens, como também entre os adultos.
“Na pesquisa, nós buscamos uma atualização da nossa cultura para inseri-la no dia a dia da nossa aldeia, assim como no estágio”, explica Bidjawari Karajá, da etnia Karajá, egresso no curso em 2012. Para ele, o estágio propicia uma abertura para trabalhar nas escolas a valorização da língua e da cultura de seu povo. “Nossa brincadeira está sendo ocupada pela brincadeira do branco”, lamentou. Em sala de aula, Bidjawari Karajá aproveitou para ensinar algumas brincadeiras tradicionais esquecidas com o tempo e discutir a razão de não serem mais praticadas.
É justamente essa interação entre formação acadêmica e os saberes culturais indígenas que confere ao curso certa especificidade, diferenciando-o das outras modalidades de graduação. “Quando falamos da educação intercultural, nos referimos a uma educação que rompe fronteiras”, explicou a professora Maria do Socorro Pimentel da Silva, orientadora do comitê Karajá do Araguaia e primeira coordenadora do curso.
Professora em aldeias durante 10 anos, Maria do Socorro Pimentel da Silva foi uma das idealizadoras do projeto político pedagógico da licenciatura, que objetivava atender uma antiga demanda das comunidades nas proximidades da Região Centro-Oeste. “A universidade tem uma tradição de pesquisa na área indígena, principalmente na história, antropologia e linguística”, comentou.
Inaugurado em julho de 2014, o Núcleo Intercultural de Educação Indígena Takinahaky possui uma arquitetura inspirada nos elementos da cultura indígena
Novas diretrizes para as escolas indígenas
Além do curso de graduação, o Núcleo Takinahaky criou em 2013 a especialização em Educação Intercultural Indígena. A ideia é oferecer uma formação complementar, que permita aos alunos a construção de uma proposta educacional diferenciada para as escolas indígenas de suas comunidades, com a elaboração de Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) que respeitem o contexto cultural, político e social dos diferentes povos. Trata-se de um documento que organiza as diretrizes pedagógicas, as atividades necessárias para o processo de ensino e aprendizagem e, principalmente, os princípios norteadores da gestão de uma escola.
De acordo com o vice-coordenador da especialização, Alexandre Herbetta, a iniciativa veio ao encontro das necessidades dos próprios estudantes, interessados em concretizar a formação adquirida durante a graduação com ações práticas. “De certa forma, fazer o Projeto Político Pedagógico de uma escola é colocar em prática toda essa discussão sobre as pedagogias para indígenas. A partir de então, eles podem fazer com que as escolas funcionem com seus modos próprios de aprendizagem”, analisou o professor.
O desafio da permanência
Em julho de 2014, foi inaugurada na UFG uma estrutura para comportar as atividades desenvolvidas pelo curso. O Núcleo Takinahaky possui salas de aula, laboratório de informática, laboratório de etnobiologia e está sendo estruturada uma biblioteca setorial. Apesar de todas as instalações montadas para atender confortavelmente os estudantes, um dos grandes desafios enfrentados é o da permanência dos indígenas até o final do curso. As dificuldades de deslocamento e a falta de um local para abrigá-los durante o período das aulas presenciais na universidade, se interpõem à motivação para dar continuidade aos estudos.
O Governo Federal oferece um auxílio a estudantes indígenas cadastrados no Programa Nacional de Bolsa Permanência. A iniciativa contribui na ampliação do acesso ao ensino superior, permanência e diplomação dos graduandos, com a concessão de bolsas no valor de R$900,00. Para os ingressantes no primeiro ano da licenciatura, ainda não cadastrados no Bolsa Permanência, a UFG dispõe de recursos do Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas (Prolind) para custear a alimentação e hospedagem na primeira etapa presencial do curso. O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid) também oferece bolsas aos estudantes, destinadas a cobrir gastos com pesquisas e o desenvolvimento das atividades de docência.
Mesmo com o auxílio, o valor é insuficiente para cobrir todas as despesas dos alunos, principalmente em relação à moradia, pois grande parte dos locadores de imóveis nas proximidades do Câmpus Samambaia exige contratos para aluguel de casa de no mínimo seis meses, sendo que as etapas presenciais são realizadas nos meses de janeiro, fevereiro, julho e agosto. “A bolsa não dá para nos manter, por isso muitos índios não ficam até o final do período das aulas. Fiquei com dificuldade para terminar o curso, mas o cacique falou para eu continuar esse trabalho que é muito importante para a nova geração”, declarou Samuel Saburua Javaé, que entrou no curso em 2010. Uma das reivindicações dos estudantes é a disponibilização de alojamentos para se instalarem nos meses em que estão na universidade. Para suprir esta demanda, a reitoria está estudando alternativas para melhorar as condições de permanência dos graduandos.
Alunos Xavante debatem e escrevem, na própria língua, os conceitos de interculturalidade e transdiciplinaridade para apresentação de seminário na aldeia
Educação concebida pelos indígenas e para os indígenas
Há muito o ensino nas escolas indígenas tem sido foco de discussões sobre a necessidade de uma educação que lide com as especificidades culturais de cada povo. A relação com os povos indígenas no Brasil foi sempre delicada, marcada pelo desgastante processo civilizatório. No entanto, os movimentos organizados indígenas passaram a atuar de forma mais expressiva a partir da década de 1960 na luta por diversos direitos, incluindo à educação. Foi somente a partir do período de redemocratização do país que houve uma abertura para inserir a pauta da formação básica específica nas escolas das aldeias.
A Constituição Federal de 1988 passou a assegurar o direito das sociedades indígenas a um currículo diferenciado para a formação escolar, com autonomia no processo de aprendizagem. “A escola indígena não é voltada para o mercado, mas para a comunidade. É uma escola contextualizada, ela tem que valorizar a língua indígena e pensar na sustentabilidade do território”, destacou o professor Alexandre Ferraz Herbetta.
Antes vinculado à Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o ensino nas escolas indígenas passou a ser de responsabilidade do Ministério da Educação (MEC) em 1991, que estabeleceu na Lei de Diretrizes e Bases da Educação princípios para uma educação pautada nos saberes e domínios culturais dos diferentes povos. Esse movimento atingiu também as universidades com a implantação dos primeiros cursos de Licenciatura Intercultural Indígena no final da década de 1990, atendendo às orientações da própria legislação que prevê a necessidade de formação de professores indígenas para atuarem na educação fundamental e ensino médio nas aldeias. A graduação surge com a proposta de capacitá-los a dialogar sobre os conhecimentos acadêmicos, as práticas culturais e a realidade de suas comunidades. Atualmente, existem mais de 20 cursos de Licenciatura Intercultural Indígena em todo o país.
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