A incompreensão da Língua Portuguesa
A incompreensão da Língua Portuguesa
Quando o excesso de linguagem técnica por profissionais atrapalha o entendimento da comunidade
Texto: Camila Godoy | Fotos: Carlos Siqueira
Apesar de o Brasil ser um país com apenas um idioma oficial, o português, diversas alterações têm acontecido ao longo dos anos na escrita e, principalmente, na fala dos brasileiros. Isso acontece porque as pessoas fazem rearranjos de acordo com as suas necessidades comunicativas. Esse fenômeno, chamado de variação linguística, pode ser compreendido através de diferenças históricas, sociais e regionais.
Os moradores do Nordeste e do Sul brasileiro, por exemplo, falam a mesma língua, mas utilizam expressões e sotaques tão diferentes que às vezes pode se tornar complicado para ambos entenderem com exatidão o significado do que cada um diz. Da mesma forma, há falares específicos de grupos profissionais, como de advogados, analistas de sistemas, engenheiros, policiais e médicos, que desenvolveram vocabulários próprios de sua profissão para expressarem ideias específicas de seu ofício, mas que, quando aparecem em contextos diferentes, dificultam o entendimento de quem não pertence a esse grupo.
Para a professora da Faculdade de Letras (FL), da Universidade Federal de Goiás (UFG), Vânia Cristina Casseb Galvão, o exagero no uso de jargões e termos técnicos por profissionais foi utilizado durante muito tempo como forma de manutenção de determinados papéis. Ela explica que essa prática era utilizada não apenas para que os profissionais se comunicassem, mas também, para se diferenciarem do restante da sociedade, demonstrando um conhecimento exclusivo.
No entanto, a professora acredita que a frequência e a intensidade do uso exagerado de jargões e termos técnicos têm diminuído: “Com a popularização do conhecimento e o acesso quase irrestrito aos saberes, não há mais espaço para o distanciamento entre linguagem técnica e linguagem leiga. É claro que existe um limite, porque há termos que são conceituais, porém, já é possível observar a busca cada vez maior por uma linguagem mais democrática, funcional e socialmente relevante”, defende.
Linguagem jurídica
No curso de Direito da UFG, o juridiquês, linguagem excessivamente técnica e rebuscada utilizada nos processos judiciais, já foi praticamente abolido da formação dos estudantes. Isso acontece porque, apesar do cumprimento e o exercício das leis serem para todos os cidadãos, eles só ocorrem através de critérios processuais que são definidos por normas, teoricamente estudadas e compreendidas apenas em uma Faculdade de Direito. No entanto, segundo a coordenadora do curso de Direito da UFG, Sílzia Pietrebom, “se o processo e o interesse são da parte, sendo o advogado apenas seu representante, como ele pode escrever em um processo frases inteiras em latim, com documentos e termos que a própria parte não compreende?”.
Por isso, a coordenadora do curso de Direito acredita que o advogado deve mostrar sua cultura por meio de seu conhecimento e técnica, mas fazendo bom uso da língua portuguesa, sendo objetivo em suas colocações e usando corretamente as expressões: “Nessa área a atenção com o português não só é importante, como fundamental. Diria até que é mais importante ler e escrever bem no Direito, do que falar bem, já que ele está envolvido em um conjunto de procedimentos que são escritos por advogados e juízes. Então, o êxito na profissão depende da forma de se expressar em nosso idioma”, opina.
Português e Saúde
Na área da saúde, a preocupação com a língua portuguesa e a democratização da linguagem técnica também é uma constante. A professora da FL, Vânia Casseb, lembra que se um profissional, por exemplo, fizer uma carta de indicação para algum colega, sobre um paciente que está com alguma doença grave, e escrever isso de maneira errada, pode levar o colega a dar continuidade ao tratamento de forma equivocada. Igualmente, se o paciente não compreender com exatidão o seu diagnóstico, pode não realizar o tratamento com eficácia.
Vania Casseb destaca que até a linguagem das bulas de remédios se tornou mais acessível ao longo do tempo. Ela explica que, há dez anos, a bula era produzida para que os médicos entendessem e explicassem o conteúdo aos pacientes, mas, na prática, isso não acontecia. Hoje, há uma linguagem voltada diretamente para o entendimento do paciente.
A coordenadora do curso de Enfermagem da UFG, Ruth Minamisava, explica que, em sua unidade acadêmica, os professores se preocupam em ensinar aos alunos os termos técnicos da área logo no início do curso. Só que, com o passar do tempo, devido às disciplinas práticas, os docentes se empenham em explicar a necessidade de traduzir esses termos técnicos para o paciente.
No entanto, Ruth Minamisava ressalta que há casos em que a própria explicação de algum quadro clínico exige prévios conhecimentos sobre biologia, que muitas vezes o paciente não domina. “Existem diversas situações no dia a dia dos profissionais da saúde: há casos em que não temos tempo para explicar tudo aos pacientes, mas também há situações em que eles não estão interessados em entender. Existem pacientes que terão que conviver com alguma doença por um longo período, então, procuramos ensinar tudo sobre o seu estado de saúde, para que ele próprio se monitore e conheça o seu estado clínico. Cada caso é único”, relata.
E quando a falta do Português é o problema?
Nos cursos da área de exatas, além do uso exagerado de termos técnicos e de abreviações de palavras, os estudantes se deparam com uma literatura predominantemente inglesa e por causa disso, já se tornou comum para profissionais da área o aportuguesamento de algumas palavras.
O coordenador do curso de Sistemas de Informação da UFG, Vinícius Sebba Patto, acredita que por lidar com uma área extremamente globalizada e que evolui rapidamente, a informática foi se desenvolvendo em uma cultura predominantemente da língua inglesa. “Nós temos uma literatura muito mais atualizada no idioma inglês do que no português”, observa.
Para o estudante do quinto período do curso de Sistemas de Informação da UFG, Gaspar Monteiro, os profissionais da área se acostumaram tanto a desenvolverem seus raciocínios em inglês, que independente de seu local de origem, bons materiais só são encontrados em inglês: “Os poucos materiais encontrados no português têm qualidade inferior aos encontrados na língua inglesa. Todas as minhas buscas são em inglês. Desisti de procurar materiais em português”, afirma.
Vinícius Sebba explica que essa cultura faz com que muitos alunos não se preocupem com o estudo do português. “Isso é muito perigoso e, se acontece, esses estudantes encontram dificuldades até para elaborarem trabalhos acadêmicos e concluírem o curso. Sem falar naqueles casos em que, ao entrarem no mercado de trabalho, há aqueles que assumem cargos administrativos ou que optam pela carreira acadêmica. Nessas situações, eles serão ainda mais exigidos. Precisarão desenvolver as ideias de forma lógica, deixar o texto coeso e usar os recursos linguísticos de forma correta”, lembra.
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