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Universidade Federal de Goiás

O que ocorreu nas ruas em junho?

Em 13/08/13 11:44. Atualizada em 24/11/14 14:13.

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Publicação da Assessoria de Comunicação da Universidade Federal de Goiás 
ANO VII – Nº 60 – JULHO – 2013

O que ocorreu nas ruas em junho?

Texto: Laura Braga e Michele Martins | Fotos: Ana Maria Antunes

Nos últimos meses grandes mobilizações populares foram realizadas em dezenas de cidades por todo o Brasil e levaram às ruas expressivas massas de indivíduos de diferentes classes sociais e ideologias. Essas mobilizações foram organizadas pelo Movimento Passe Livre que, apesar de ter como principal reivindicação a redução da tarifa e a melhoria do transporte público, também desencadeou várias outras reivindicações, como o combate à corrupção, a defesa dos direitos humanos e civis e os posicionamentos apartidários. Para muitos a ebulição de todas essas pautas deu uma configuração caótica às mobilizações, o que proporcionou cenas tanto de mobilizações pacifistas quanto de vandalismo, confronto e uso da violência policial. Aos poucos a sociedade, exposta à forte espetacularização pela mídia, tenta entender como aflorou tamanha indignação popular e o que estará por vir depois que a ocupação das ruas cessar e exemplos de engajamento político estiverem dispersos. Com o intuito de colocar o tema em debate, estudantes e professores da UFG promoveram no dia 10 de julho a mesa-redonda As Ruas de Junho. O Jornal UFG foi conferir e traz para o conhecimento de seus leitores os pontos de vista dos participantes. Para formar a mesa desse debate foram convidados os estudantes do curso de Ciências Sociais Lauanda Meirelle, Gabriel Teles e Ian Oliveira, e os professores Adriano Correia da Faculdade de Filosofia, Francisco da Mata Machado Tavares, da Faculdade de Ciências Sociais e João Alberto da Costa Pinto, da Faculdade de História. Confiram.

Luanda Meirelle

Luanda Meirelle

Eu entrei no movimento estudantil em 2010 no Diretório Central dos Estudantes (DCE-UFG) e, desde então, por meio do Comando de Luta, realizamos várias tentativas para barrar os aumentos da passagem de ônibus, mas não conseguimos ser vitoriosos. Em 2010, o movimento ainda era muito pequeno, poucas pessoas participavam e fechávamos as ruas para, de fato, tentarmos fazer alguma coisa. Creio que faltava maturidade que vem com o tempo e com a formação política para entender que não é preciso somente barrar o aumento da passagem, mas também questionar o lucro que vai para um empresário que não se importa com as condições mínimas adequadas para o transporte coletivo.
A partir do momento que estamos abertos para o debate e vamos para as ruas dizer que não aceitamos isso, criamos uma forma vitoriosa de dizer que essa sociedade não serve mais para a nossa juventude. Hoje somos protagonistas desses movimentos. Fazendo a análise do período entre 2010 e 2013, percebo que a violência era menor porque não tínhamos o apoio popular e assim a polícia não se preocupava conosco. Hoje a população nos apoia, percebe que é preciso melhorar minimamente as condições do transporte coletivo. Nesse ano, organizamos sete protestos, em três deles houve agressão policial sem razão alguma. Mesmo quando não havia a agressão direta, a polícia incitava para que houvesse o confronto, para que o movimento fosse diluído e as pessoas se dispersassem. Mesmo em 2010 a manifestação adquiriu um caráter nacional com a união dos centros acadêmicos e DCEs e, por isso, foi ganhando força.

A mídia levou as pessoas para as ruas depois de crucificar participantes que iniciaram os movimentos, mas com outros propósitos, como por exemplo a contestação da aprovação da PEC 37. Mas por que as manifestações espontâneas reuniram de 20 a 60 mil pessoas nas ruas acabaram de repente? Creio que foi pela falta de formação política. Muitos usaram roupas brancas como se fossem abadás e não teve quem levasse essa camada trabalhadora para outro tipo de conscientização, visando nossa própria emancipação.

As manifestações populares no Brasil acontecem há muito tempo, não foi agora que o país acordou. O que acontece é que a própria burguesia está sofrendo com o processo de mecanização e de exploração, mas enquanto ela estava se dando bem, não ia se mobilizar. Estamos chegando a um ponto que não dá mais para reformar ou continuar com esse sistema. Até quando faremos reformas pontuais sem fazer o que é necessário de fato, que é transformar essa sociedade modificar o modo de produção e a divisão do trabalho social. Sem isso não mudaremos a História. Essas manifestações são de fato importantes mas não são o essencial para mudar as coisas, são apenas uma parte.

Ian Oliveira

Ian Oliveira

O importante da participação nessas manifestações não foi só a questão do transporte, mas sim a maturidade de entendermos como se dá a luta popular e como organizar uma manifestação que gere frutos positivos. Creio que conseguimos isso. Não só pelo preço da passagem, que voltou ao antigo preço, mas também conseguimos levar para votação na Câmara dos Vereadores a liberação do passe livre para os estudantes. É por isso que consideramos positivas as experiências que vivenciamos nos últimos meses, mesmo pela forma como se deu com todos os contratempos e dificuldades. Até mesmo pedindo ajuda à advogados para liberar presos políticos, porque a prisão ocorreu sem qualquer conjuntura que justificasse a prisão senão o esvazeamento de uma postura política compatível com o movimento, mas no fim entendemos que o saldo foi mais positivo do que negativo.

Francisco Tavares

Francisco Tavares

Vocês estudantes disseram que foram chamados de alucinados, delirantes e irresponsáveis. Isso me fez lembrar de quando a Maria Antonieta dizia que “se não tem pão que comam brioches” e ela era a lúcida responsável e defensora da ordem; de quando um bando de alucinados invadiu um presídio, onde não havia presos políticos, dizendo “saiam pessoal porque esse estado não é legítimo”. Eu creio que estamos aqui hoje nessa democracia porque existiu um bando de alucinados como esses. Enquanto um bando de gente ordeira, inteligente e intelectual dizia “negro naquele ônibus e o branco naquele ônibus”, um bando de alucinados pegou armas e parou policiais nas ruas e se auto intitularam Panteras Negras e hoje temos igualdade racial preambulatória. Enquanto um bando de gente preservadora da ordem dizia que no mundo do progresso é permitido que crianças de seis e sete anos vivam em uma mina de carvão a 40º e trabalhem 16 horas por dia, um bando de alucinados e um louco desvairado saiu da mina de carvão colocando fogo em tudo dizendo: “temos de parar a produção porque temos de ser ouvidos”, hoje sabemos que lugar de criança é na escola e não trabalhando.

Há três meses, quando um bando de alucinados foi para as ruas dizendo: “se a cidade não serve para que possamos nos locomover, a cidade também vai parar; e disse ainda “Se a polícia não serve para nos proteger apenas para nos reprimir, a partir de agora ela é nossa inimiga”, ele foram chamados de malucos. Então vimos mais de 800 mil pessoas nas ruas e espero que eles sejam mais um trunfo nessa jornada emancipatória.

Adriano Correia
Adriano Correia

Raramente temos a oportunidade de dizer algo de muito significativo sobre o presente. Aceitei o desafio de estar participando desse debate,  não só por causa do calor do momento e pela dificuldade de apreender o significado desse entusiasmo nas ruas, mas é necessário uma modéstia para respeitar a ação política e não submeter à essas ações conjunturas explicativas, como se fosse a história um mecanismo que insere regras independente do esforços e iniciativas que as pessoas tomam.

Honestamente me diverti de ver o silêncio, a incompetência e resignação, nesse momento, desses intelectuais tagarelas, contratados pelos meios de comunicação para embasar o discurso tanto da direita quanto da esquerda.  Na minha compreensão, quem realmente saiu derrotado foi o grupo formado pelos intelectuais e funcionários da grande mídia que falam sobre terremotos às grandes revoluções como se fossem iluminólogos. O que falta para a política é a participação, muito mais do que saber qualquer teoria de como as coisas funcionam.

Independente das diversas mazelas e dos desvios do foco do movimento, mesmo assim foi constituída uma agenda consistente, embora caótica. O que representa, na minha opinião, a efervescência de um desejo por desafiar uma ordem.

O palco da disputa política é o novo espetáculo. Isso afeta as mobilizaçoes de modo ambíguo e contraditório. De um lado há um espetáculo que consiste no “eu existo porque eu apareço e grito”, é difícil saber nesse momento se aqueles que estão querendo derrubar o sistema estão dispostos a arcar com o ônus de um outro modo de organizar os espaços políticos. Há uma fragilidade dessas posições mobilizadas no calor e de forma difusa contra tudo e contra todos. Há também uma perplexidade que tem a ver com a expectativa de que a política seja mais do que um espetáculo com slogans e da fabricação de certos personagens que são mais do mercado, e com a rejeição de que a política é o espaço da gestão e de que o que queremos antes de tudo é que os serviços funcionem, que o Estado seja pequeno, que nos cobre poucos impostos e nos deixe juntar dinheiro à vontade. Acho que o que está sendo posto em questão é um modelo de política que tem a ver tanto com a direita quanto com a antiga esquerda.

Tenho apreço pelo engajamento político e creio que essa foi a principal conquista das manifestações. Independentemente da incongruência das diferentes perspectivas mobilizadas, é possível dizer que há um anseio por espaços de reivindicações de interesses coletivos. Parece haver uma demanda por espaços nos quais a participação política seja possível com efeitos na organização do espaço público. Um desejo de participação popular para pontuar um pavor generalizado de uma mídia articulada com um discurso internamente consistente, que deva ser combatido, para a manutenção de um status quo para manter a mesma estrutura, personagens e supostos governantes.

Também percebi que não se pode manter uma democracia com uma polícia militar. Ficou claro que a polícia não tem apreço por política, por leis e sim por ordem, ou seja, um certo comportamento que não desafie o que está posto e que diz: “vocês podem ir contra tudo o que está aí, só não destruam nada ou derrubem alguém”.

Outra questão importante é termos a disputa política  como espetáculo, que se coloca  ambíguo e contraditório que tem a ver com a ideia de eu existo porque eu apareço e grito. Esse entusiasmo pavoroso tem a ver com o desejo por soluções fáceis. Mas é preciso saber que esses que estão reivindicando um outro sistema devem estar dispostos a arcar com o ônus de fazer funcionar um outro modo de articular o espaço político. Mas eu acredito na iniciativa das pessoas e que a reforma política é um tema adequado para canalizar várias dessas demandas.

Gabriel Teles 

Gabriel Teles

A minha intenção aqui é repassar as minhas experiências sobre os movimentos. A primeira manifestação que ocorreu nas ruas no mês maio em Goiânia reuniu cerca de 200 estudantes e 5 mil policiais. Foi um absurdo, mas foi o que aconteceu. Os estudantes conseguiram fechar temporariamente o cruzamento das avenidas Anhanguera com a Goiás, exatamente na Praça do Bandeirante e conseguimos chamar a atenção da opinião pública e do governo. A partir dessa primeira manifestação, eu percebi a grande negligência do poder público com as questões que realmente importam para a população, sobretudo para os trabalhadores e estudantes. Foi uma experiência muito tensa.

O segundo movimento, que ocorreu na Praça A, no qual houve de fato uma coerção muito forte contra os estudantes, foi uma experiência que impactou muito minha vida. Foi a primeira vez que presenciei, para além da violência cotidiana que todos nós sofremos, a violência física. Enquanto eu estava ajudando um amigo que estava apanhando da polícia, dois policiais me abordaram e começaram a me bater. Cheguei a pensar que eu ia morrer. Eu fingi que desmaiei e eles continuaram me batendo e foi muito traumatizante. Outros manifestantes me ajudaram e depois de um tempo eu me levantei. Parecia que o que eles queriam era que eu desistisse, mas quando levantei, a primeira coisa que desejei foi xingar os policiais. Tiraram fotos e ameaçaram eu e minha família de morte. Depois disso passei alguns dias em São Paulo tentando me acalmar e à minha família, mas acabei participando de algumas manifestações por lá também. Foi muito interessante viver essas experiências e ver como as manifestações se ampliaram por todo o Brasil, além das claras diferenças entre as narrações da mídia.

Na cobertura das primeiras quatro manifestações que ocorreram em Goiânia, houve uma clara tendência de criminalizar os protestos. Quando eles perceberam que as manifestações estavam crescendo, eles mudaram o discurso como se pensassem: “se não podemos pará-los, então vamos tentar utilizá-los como massa de manobra”.  A partir da ação direta de ocupação das ruas com as manifestações de maio e junho a coisa aprofundou-se. Quando houve o aumento da passagem para R$ 3,00 em Goiânia, foram cobrados impostos inexistentes e, além disso, estavam cobrando 15 % acima do valor devido pelo preço do combustível.

Enfim, para concluir eu lembro que, na primeira manifestação que ocorreu em Goiânia eu ouvi dizerem que estávamos delirando, mas eu digo que os delirantes são as pessoas que pensam que as coisas devem continuar da mesma forma. A redução da passagem foi atendida mas faltam outras reivindicações que ainda não foram aceitas, como a divulgação da planilha de lucros das empresas e a participação popular na comissão que regem essas questões.

 João Alberto

João Alberto

Estou aqui tentando fazer uma  articulação entre as falas, mas vou fazer algumas provocações. Todos sabem que os fatos ocorreram e todos sabem que nos solidarizamos com a luta terrível que esses meninos enfrentaram e ainda enfrentam. Eu lembro de um estudante do curso de História que ficou cerca de quatro dias preso de maneira insidiosa pelo poder público.

Entre 1978 e 1980 o Brasil presenciou grandes manifestações populares, como as greves dos metalúrgicos e as lutas contra a ditadura que ocorreram no ABC e em São Bernardo do Campo em São Paulo e com essas lutas populares a ditadura militar caiu e formou-se o Partido dos Trabalhadores (PT) que hoje administra a governabilidade do país há cerca de 13 anos. E é a partir daqui que me atrevo a fazer algumas provocações. Agora, esses jovens inauguram uma prática política substancialmente diferenciada daquela que, eu chamaria de esquerda capitalista, o governo atual. Os jovens do movimento Passe Livre inauguraram uma nova prática política. A partir de uma organização extraordinária atingem de forma contundente as instituições que são administradas há mais de uma década por um governo social democrata nascido de lutas populares.

Nós, intelectuais ou não, militantes ou não, temos por obrigação de refletir essa circunstância em que estamos envolvidos. Como entender ministros petistas estimulando a repressão ao vandalismo que estava acontecendo? Os partidos PT e  PCdoB  estão na administração da nossa cidade e têm campanhas subsidiadas pelos donos das empresas de transportes. São governos ditos progressistas, da tradicional esquerda, que se consolidaram em lutas similares a estas que estes jovens estão pautando.

Há uma perspectiva de classe que me parece fundamental. Ao longo de 20 a 30 anos constituiu-se uma camada tecnocrata na gestão pública de tal forma que afronta os trabalhadores de maneira visceral. Os grandes inimigos dos trabalhadores de hoje são os administradores da esquerda capitalista. E onde está a esquerda de oposição à esquerda capitalista que está no poder? Está onde sempre esteve: nas universidades unindo-se à tônica do Movimento Passe Livre organizado há quase 10 anos. A organização dos transportes está intrinsecamente ligada à lógica da reprodução do capital. Os  transportes são um serviço fundamental para o capital. Então é uma bizarrice histórica ver os trabalhadores obrigados a pagar por um serviço que os humilha cotidianamente e rouba seu tempo livre.

Temos de nos perguntar qual é o papel dessa nova prática da esquerda capitalista, que inclui apenas a questão dos transportes e não a perspectiva de superação do modo de produção capitalista. Entender o Movimento Passe Livre pressupõe entender que há uma perspectiva de fundo que é classicamente anticapitalista, que afronta a institucionalidade da esquerda capitalista. Ambos os projetos de esquerda comungam o fato de aspirarem ser os administradores do capital e é isso que deixa estupefata a população, que cria a radicalidade contundente. Então temos uma luta pontualmente anticapitalista, pontuada na questão dos transportes, que é ponto-chave para a sustentação do modo de produção capitalista. Paradoxalmente, investir na melhoria dos transportes é apostar na própria melhoria da dinâmica do capital em si. Para mim é uma burrice institucional o fato dessa esquerda capitalista não perceber como modernizar o transporte público seria eficiente em termos capitalistas para modernizar a produção do próprio capital. Devemos entender as novas práticas políticas por meio dos novos movimentos sociais, dentro do contexto de uma plena democracia. Acho que essa é a questão chave. Como esses movimentos podem ser anticapitalistas e, ao mesmo tempo, um dínamo para a recuperação da lógica da mais valia gradativa?.

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