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Universidade Federal de Goiás

MESA-REDONDA: Pelo fim da violência contra a mulher

Em 24/02/16 10:23. Atualizada em 08/03/16 09:14.

topo Jornal UFG 76

 

 

Pelo fim da violência contra a mulher

Texto: Ascom, Rádio Universitária e TV UFG | Fotos: Carlos Siqueira

No primeiro semestre de 2015, a Central de Atendimento à Mulher – o Ligue 180 –, disque-denúncia da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, recebeu mais de 32 mil ligações. Uma média de 179 telefonemas por dia relatando algum tipo de violência. Esse é apenas um dado sobre um problema urgente e muitas vezes negligenciado: a violência contra a mulher.

Recentemente vimos diversas manifestações femininas nas ruas pelos direitos das mulheres e pelo fim da violência contra elas. Nas redes sociais não foi diferente. Grupos de diversas áreas lançaram movimentos que ficaram conhecidos não só na web, mas na mídia, o que fez com que muitas mulheres começassem a denunciar a violência, que é um dos passos para mudar o quadro no país. Mas sabemos que há um longo caminho a percorrer.

Para discutir formas de enfrentar tão grave questão, a mesa-redonda desta edição, mês do Dia Internacional da Mulher, convidou a presidente do Centro de Valorização da Mulher (Cevam), Maria Cecília Machado, a presidente do Conselho Estadual da Mulher (Conem), Flávia Fernandes, e a pesquisadora e coordenadora de Ações Afirmativas da UFG, Luciene Dias.

 

As denúncias têm aumentado a cada dia. Isso significa que a violência contra a mulher aumentou ou que as mulheres têm tido mais coragem?

Flávia Fernandes – Acredito que as duas coisas: tanto a violência não paralisou ou diminuiu quanto existe hoje um maior número de denúncias, em razão de uma série de fatores, inclusive a abordagem do assunto no Enem. Percebemos que houve um crescimento de denúncias após a prova que pediu esse tema na redação e trouxe esse debate para algumas esferas da sociedade onde ele ainda não existia, como entre os jovens. Além disso, temos algumas campanhas, que são poucas, mas existem, e algumas novelas que debatem o tema também. Sendo assim, o que realmente tem acontecido é que as denúncias têm aumentado, mas a violência está longe de diminuir.

Maria Cecília Machado – Vale ressaltar que os números de denúncias que temos ainda não são números que condizem com a realidade, porque muitas mulheres se sentem inibidas, com medo, e não denunciam. Muitas vezes, essa mulher procura o Cevam, outro mecanismo para sair desse círculo. Então, mesmo com esses números exorbitantes que vemos no Ligue 180, existe um número ainda maior de mulheres que não denunciam. É muito importante que elas denunciem.

Luciene Dias – Na verdade isso só mostra que a realidade é complexa, porque temos vários fatores interferindo no que vai ou não mobilizar essas mulheres para a denúncia. As campanhas publicitárias, as iniciativas governamentais e não governamentais também são muito importantes nesse processo de conscientização, mas tem outra coisa fundamental: fortalecer o processo de educação que permita que essas mulheres passem a se reconhecer como agentes de construção de uma sociedade que respeite as diferenças de gênero, as especificidades femininas e que não tolere a violência contra a mulher como um padrão de comportamento social. O grande salto que temos que dar é investir no processo de educação para garantir cidadãs que se reconheçam enquanto agentes de construção de uma sociedade melhor, mais igualitária, no sentindo de equidade mesmo, de ter a sua diferença respeitada no espaço social.

 

 Flávia Fernandes

Flávia Fernandes

...não é possível viver em uma sociedade onde há violência dentro do ambiente que deveria ser o mais seguro, o lar


O tema da redação do Enem “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira” gerou muita discussão, como se fosse um assunto tabu, que não pudesse ser discutido. Por quê?

Luciene Dias – Porque são séculos de invisibilização desse tema. Portanto, quando ele vem para a superfície de discussão, é muito recorrente que as pessoas se espantem. “Alguma coisa está acontecendo”, “como é que esse assunto vem à luz, assim?”. Todo mundo reage.

Maria Cecília Machado – Enquanto não tivermos uma educação transparente, onde esse trabalho de conscientização dos nossos jovens sobre a violência doméstica e o quanto ela é prejudicial à família seja feito, estaremos sempre trabalhando com esse grupo de mulheres que, muitas vezes, prefere sofrer que denegrir a imagem da família. Então nós precisamos de um trabalho de “formiguinha”, que vá às escolas, aos centros comunitários, à imprensa, que tire esse tabu da violência, que faça com que as mulheres deixem de ter medo de falar que são vítimas e deixem de se calar por preocupação com que os outros vão falar ou o que vão fazer a ela. Outra coisa muito séria: “como vou denunciar o homem que eu gosto?”, “o pai dos meus filhos?”. Precisamos de uma conscientização muito grande dos nossos jovens. Por isso, o Enem trazer esse tema foi fundamental, porque hoje o assunto está sendo bem discutido e temos visto jovens querendo trabalhar no combate à violência.

Flávia Fernandes – O Conselho Estadual da Mulher está lançando dois projetos: Conem vai à Escola e Conem vai à Faculdade. É uma experiência que eu trouxe da Ordem dos Advogados do Brasil, onde eu fui coordenadora por dois anos do OAB vai à Escola, programa que nos trouxe um feedback excelente. Nos projetos do Conselho vamos falar especificamente sobre a questão de gênero e questões correlatas à violência doméstica. Já estamos fazendo o encaminhamento de um projeto com a Secretaria Estadual de Educação e com algumas universidades para levar esses projetos. É fundamental que essa violência seja eliminada na base porque sabemos que, infelizmente, coibir ela no topo é muito difícil. Temos que mostrar para os jovens, formadores de opinião, crianças e adolescentes, que é fundamental que eles cresçam sem o preconceito de que mulher é objeto ou é propriedade e cientes que não é possível viver em uma sociedade onde há violência dentro do ambiente que deveria ser o mais seguro, o lar.

Maria Cecília Machado – Nesse momento, muitas vezes vocês vão encontrar obstáculos. Algumas escolas particulares não aceitam falar na Lei Maria da Penha, em violência contra a mulher, porque pode gerar um conflito familiar. A criança que é vítima, se não souber encarar, ou vai chorar, ou vai sair da sala, ou contar para a mãe, e aquilo ali vai fazer com que a criança fique vítima dentro da escola. Já encontramos escola que não permite falar de violência contra a mulher, um tema que hoje machuca, que deixa a nossa alma muitas vezes sem saber o que fazer, principalmente com o que eu vejo dentro do Cevam.

 

 Luciene Dias

Luciene Dias

Se lançarmos mão dos instrumentos que temos para fortalecer nossas redes de solidariedade, de repente conseguimos iniciar a cura...


Nos últimos meses vimos proliferar nas redes sociais campanhas como o #meuprimeiroassédio e #meuamigosecreto. Essas campanhas são mesmo capazes de mobilizar a sociedade? E as vítimas?

Luciene Dias – Grandes pesquisadoras que pensam o feminismo e em estratégias de combate à violência contra a mulher, defendem que na verdade temos que tentar criar redes de solidariedade. Essas novas plataformas, como Twitter e Facebook, redes sociais em geral, contribuem para que essas mulheres estabeleçam efetivamente essas redes de solidariedade. Na campanha #meuprimeiroassédio, por exemplo, você via descrições acerca do primeiro assédio, desde uma pré-adolescente, estudante, passando por uma empregada doméstica, até atrizes globais. Ou seja, todas elas colocando numa mesma plataforma uma experiência que as unia, infelizmente experiências de violência. Neste caso, as redes sociais cumprem o seu principal papel na sociedade, de fortalecer essas redes de solidariedade. Porque o desafio do Brasil, como país, no processo de combate à violência contra a mulher, é imenso. Um estudo feito pela OMS, por exemplo, entre 2006, ano em que foi sancionada a Lei Maria da Penha, até 2013, com 85 países, o Brasil figura em 5º lugar na violência contra a mulher. Ou seja, é um país muito misógino, um país que violenta muito suas mulheres. Se lançarmos mão dos instrumentos que temos para fortalecer nossas redes de solidariedade, de repente conseguimos iniciar a cura, iniciar o tratamento por nós mesmos, nos transformando em pessoas capazes de interferir na elaboração de políticas públicas, porque a violência contra a mulher no Brasil é uma questão de política. Enquanto os poderes instituídos, em todas as esferas, não compreenderem que é fundamental elaborar políticas que inibam e depois que combatam essa violência, teremos esse quadro que envergonha o país.

Maria Cecília Machado – Goiás ocupa o terceiro lugar no Brasil em violência contra a mulher. E, onde estão as políticas públicas? Onde e o que estamos fazendo? Sei que existem pessoas tentando criar mecanismos para que possamos trabalhar em conjunto, em rede. Porque quando falamos de mulher, a rede arrebenta. Precisamos criar políticas. Eu costumo falar que somos as poderosas, e estamos sofrendo violência, uma violência que machuca as almas. Às vezes me emociono quando falo de violência doméstica porque eu vejo chegar ao Cevam a fragilidade de uma mãe, com quatro crianças, fugindo de outra cidade, depois de passar horas num posto de gasolina, procurando alguém para trazê-la. Temos que prestar socorro a todo o Estado de Goiás porque somos a única casa abrigo que socorre mulheres em situação de violência doméstica, passando por problemas de negligência dos nossos governantes. Vemos mulheres chegarem fragilizadas, mas acobertando seus filhos, que são os maiores prejudicados, porque a criança vítima vai somatizar isso e, no futuro, se isso não for bem trabalhado, essas crianças podem se tornar futuras agressoras. Então, precisamos de um fortalecimento e eu tenho muita esperança no Conem para somar nessa rede.

Flávia Fernandes – Estamos juntos realmente e estamos lutando para implementar vários projetos. Nós vivemos num mundo tecnológico onde as coisas acontecem muito rápido. Hoje você publica uma hashtag, marca um ator de Hollywood e ele pode ver, o que antigamente era inimaginável. A rapidez na comunicação nos permite ver em tempo real o que alguém publicou lá do outro lado do mundo. Já existem aplicativos que você pode fazer uma denúncia e ela chega imediatamente onde deveria chegar. São mecanismos que devem sim ser usados em favor dessa luta que travamos, que é uma luta um tanto quanto complicada. Então, nós, que somos ditas as feministas, somos tidas em muitos ambientes como persona non grata porque realmente batemos de frente, cobramos o direito da mulher, não de ser melhor que o homem, não de travar uma luta de forças, mas de ser respeitada, tão respeitada quanto o homem. É nesse sentido que nós juntamos forças e o Conem, o Cevam, e tantas outras entidades lutam, de forma quase que sozinha, contando apenas uns com os outros. Lutamos pelo empoderamento da mulher e que ela não ganhe 20%, 30% a menos do que o homem no mesmo ambiente de trabalho e exercendo a mesma função. Não vamos deixar a mulher desamparada e enquanto pudermos, vamos lutar.

 

Maria Cecília Machado 

Maria Cecília Machado

Sei que existem pessoas tentando criar mecanismos para que possamos trabalhar em conjunto, em rede. Porque quando falamos de mulher, a rede arrebenta

 
Como vocês avaliam a fase pós-denúncia: exame, depoimento, acolhida? Esse processo faz com que a mulher desista de continuar?

Maria Cecília Machado – A maioria das mulheres encontra um obstáculo muito grande que começa com quem vai buscá-la, que é a polícia. No caminho até a delegacia, muitos policiais já desestimulam as mulheres com frases como: “ruim com ele, pior sem” ou “desiste, isso não dá em nada”, que fazem com que a mulher, que já tem medo, se enfraqueça. Assim, muitas vezes a mulher volta para casa, apanha de novo, sofre violência de novo. Um trabalho muito grande tem sido feito dentro das delegacias para que quem faz esse trabalho possa fortalecer a mulher no caminhar até a delegacia, ao chegar lá, que ela se sinta protegida, sinta que algo será feito, que sejam dados os encaminhamentos para as medidas protetivas. Mesmo assim ainda existe um obstáculo muito grande e todos nós sabemos disso: quando há o estupro. Ao chegar no Instituto Médico Legal, já discriminada como a mulher que foi estuprada – suja, machucada, passando por vergonha, desamparada –, ainda espera horas e, depois de tudo isso, para aonde ir? O que fazer? E os filhos que ficaram para trás? Mas nós temos trabalhado nas delegacias para que as coisas melhorem. O ideal seria que existisse uma equipe multidisciplinar dentro da própria delegacia, onde esses exames pudessem ser feitos, onde a mulher não se sentisse discriminada. E a mulher que apanhou e tem que ouvir: “só esse cortinho? Lava, passa um álcool. Denuncia não, desiste disso”. E as crianças, às vezes, vão junto, sem comer, sofrendo. Então há um dificultador muito grande.

Luciene Dias – Muito grande mesmo. E na construção dessa verdadeira cartografia da violência contra a mulher, não podemos esquecer nesse processo final as diferenças que nos marcam. Se a realidade é muito difícil para uma mulher branca de classe média, ela se agrava consideravelmente quando nós estamos falando de uma mulher negra, que ocupa lugares muito bem determinados dentro da sociedade, quando nós estamos falando da mulher indígena, da mulher do campo, da mulher transexual, da mulher travesti... Mulheres diversas chegam nesses espaços com as suas especificidades e são rotuladas a partir de uma única definição. As diferenças com que essas mulher vão lidar com a violência não são consideradas no momento do tratamento. Não considerando essas especificidades, você ignora completamente que é a diferença que vai marcar a nossa existência no mundo. É a partir da minha negritude, a partir da minha transexualidade, do meu pertencimento étnico-racial, da minha localização geográfica, é que eu vou me comportar como mulher, é que eu vou denunciar, é que eu vou chegar ao hospital e solicitar atendimento. Portanto, o cuidado tem que estar sustentado no respeito a essas especificidades.

Flávia Fernandes – Levando para o lado legal, temos duas leis excelentes, uma complementando a outra. A Lei Maria da Penha, que veio com algumas inovações como, por exemplo, a mulher não poder simplesmente retirar a queixa. Ela tem que esperar todo o procedimento, até que, na presença de um juiz, ela diga o motivo pelo qual ela não quer dar continuidade a aquele processo. Existe a lei, mas não vemos ela ser efetivamente aplicada. É muito diferente. A lei é muito bonita quando ela diz, por exemplo, que o homem não vai pagar mais cesta básica e serviço comunitário ou quando diz que com uma medida protetiva o homem vai se afastar do lar ou da mulher e vai ainda prestar alimentos. E temos outra lei que complementa a Maria da Penha, que é a Lei do Feminicídio, que transforma o assassinato de mulheres em crime hediondo, crime tipificado com mais rigor. O que ainda falta é instruir as mulheres sobre os seus direitos, o que me parece que não é muito querido pelas autoridades, porque existem muitas formas de se fazer isso. Quando vamos às escolas e universidades, não queremos apenas mostrar que violência é crime, mostramos também as nuances, a responsabilização disso.

Maria Cecília Machado – Por nome, a Lei Maria da Penha é a lei mais conhecida. É preciso colocá-la em prática!

 

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Fonte: Ascom UFG

Categorias: Mesa-redonda violencia contra a mulher