Os fantasmas da guerrilha
Os fantasmas da guerrilha
Investigação mostra que clima de repressão da Guerrilha do Araguaia ainda assombra população do sul do Pará
Texto: Silvânia Lima | Fotos: Arquivo Pessoal
A busca pela compreensão de um dado fenômeno social, considerando-se os fatores e elementos com os quais interage e o influenciam, é o principal objetivo da pesquisa em Ciências Humanas. O esforço para decifrar o objeto de estudo geralmente se dá por meio de uma área temática e suas teorias. Mas é a determinação do pesquisador no exaustivo trabalho de investigação e de interpretação dos fatos que atribui o valor e o sucesso da sua abordagem.
O combate a um grupo de guerrilheiros movido pelo ideal político de promover a resistência no campo, às margens do Rio Araguaia, entre Marabá e Xambioá, sul do Pará, em plena repressão militar, ocorrido há 43 anos, ainda atrai a atenção de historiadores. Primeiramente, pela verdadeira estrutura de guerra com o uso de extrema violência para deter um grupo pequeno de jovens guerrilheiros – em sua maioria, universitários e profissionais graduados, sem nenhuma experiência com armas, mas resistentes à ação militar ostensiva. Posteriormente, pela continuidade da opressão na região, mesmo com o fim da Guerrilha, que nem chegou a acontecer.
Conhecida pelos conflitos de terras, a região do sul do Pará tem sido palco de tensões continuadas entre forças opressoras e de resistência desde o militarismo – com destaque para o período da Constituinte (1987/88) – e não é à toa que nasce ali um dos núcleos de criação da União Democrática Ruralista (UDR/1986). Registros sinalizam o aumento de práticas criminosas, incluindo assassinatos de camponeses e até de lideranças eclesiásticas, sob o fomento da prática da pistolagem e da falsificação de documentos. À época, próximo dali, eclodiu ainda o advento de Serra Pelada, maior garimpo a céu aberto do mundo. No entanto, o que esses fatos têm em comum com a desconstrução da Guerrilha do Araguaia?
O estudo do professor Romualdo Pessoa Campos Filho, do Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa) da UFG, mostra que a partir da Guerrilha (1975-2000) a luta pela terra naquela região foi impregnada pela ideologia da Lei de Segurança Nacional. As estratégias militares passaram a ter como objetivo influenciar nos conflitos, identificando e reforçando as estruturas dos sindicatos. “O refinamento de estratégias sutis de infiltração e o processo de violência instalado, a partir da atuação do Serviço Nacional de Inteligência (SNI), com destaque para a Guerra de Perdidos, que resultou na morte de um policial, um agente do Incra e na prisão de 30 camponeses, entre 1975 e 1976, já depois da Guerrilha, não seriam possíveis se não houvesse o amparo do estado”, afirma o professor.
Além da bibliografia e das dezenas de viagens in loco, a investigação dos fatos e a caracterização geográfica da região foram possíveis por meio das cerca de 50 entrevistas feitas com pessoas da região. O trabalho que resultou no doutorado em Geografia, com viés em Geopolítica, foi orientado pela professora Celene Cunha Monteiro Antunes Barreira, do Iesa.
Curió
“É muito traumático o pós-guerra. Famílias vitimadas, pessoas desaparecidas, e as forças opressivas continuando a agir, mantendo vigilância permanente, a fim de evitar que houvesse desdobramentos do movimento de resistência. Passei a perceber que o que aconteceu pós-guerrilha, para a população local foi pior pelo terror vivido. Todo aquele aparato para destruir a Guerrilha permaneceu na região para eliminar vestígios e garantir a ‘ordem’, sob o comando de um indivíduo, Sebastião Rodrigues de Moura, o major Sebastião Curió. Não imaginava incluir Serra Pelada na pesquisa, que fica a 150 km da região da Guerrilha, no entanto, chamou-me a atenção o fato do Curió ter sido interventor em Serra Pelada. Observei que a estrutura montada por ele não era só para controle do ouro, mas também pelo mesmo motivo de sua permanência na região da Guerrilha, o de impedir uma possível organização dos garimpeiros”, constata Romualdo Campos Filho.
Conhecido por sua natureza fria e perversa, e pelo poder de persuasão, Curió era do centro de informação do Exército, elemento de um poder real, mas não institucionalizado. Com o apoio de três centenas de agentes do Serviço Nacional de Investigação (SNI), Curió comandava uma espécie de quartel general em Serra Pelada. “Sempre que tinha um conflito, ele era o primeiro que ia para resolver a questão, um verdadeiro coronel. Delegado prendia, Curió mandava soltar. Dessa forma, acabou sendo eleito deputado federal, em 1982”.
Formação continuada
A construção do trabalho científico em ciências humanas não se dá de forma efêmera e ao acaso. Geralmente o pesquisador segue uma linha de conhecimento, eleita no início de sua formação, e isso conduz ao aprimoramento de sua linha de pesquisa. Outro aspecto importante do estudo continuado é o potencial de gerar diversos trabalhos científicos. Motivo pelo qual esse estudo ganhou força.
Enquanto historiador, aquele fato histórico ainda sem fechamento continuava a atrair a atenção de Romualdo Campos Filho, que há 20 anos, concluía o mestrado dedicado ao estudo da Guerrilha do Araguaia, que resultou na publicação do seu primeiro livro. Anos depois, foi convidado pelo Ministério da Justiça e da Defesa e pelo Ministério dos Direitos Humanos, a integrar o Grupo de Trabalho do Araguaia (GTA), formado por antropólogos, arqueólogos, historiadores e familiares das vítimas, para dar respostas ao desfecho do fato ocorrido no sul do Pará, entre os anos 72 e 74. O GTA contou com o apoio do Exército e teve, como base, levantamentos já listados pelo Grupo de Trabalho do Tocantins, mantido pelas famílias atingidas.
O alto nível do grupo, a facilidade de acesso a documentos, inclusive de Guarda Nacional, e o olhar diferenciado para novos fatos investigados levaram Romualdo Campos a redirecionar seu doutorado, já em andamento. Ao retornar à região do conflito, o pesquisador constatou a força da repressão ainda presente, perpetuando sérias consequências para a população. Sendo assim, o pós-guerrilha passa a ser o objeto de sua pesquisa. A tese, defendida há dois anos, também foi transformada no livro Araguaia – depois da guerrilha, outra guerra, da Editora Anita Garibaldi.
Romualdo Campos Filho é membro da Comissão de Altos Estudos do Memórias Reveladas – Centro de Referência das Lutas Políticas do Brasil (1964-1985), vinculado ao Arquivo Nacional. Na UFG, o professor está ligado ao Laboratório de Estudos e Pesquisas das Dinâmicas Territoriais (Laboter), ao Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre o Capital e ao Núcleo de Estudos Geopolíticos.
Algumas das lideranças populares assassinadas no sul do Pará
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Fonte: Ascom UFG