Gestão das escolas públicas em perspectiva
Gestão das escolas públicas em perspectiva
Projeto de Organizações Sociais na educação propõe soluções que não abarcam a complexidade da educação brasileira, dizem especialistas
Texto: Kharen Stecca | Fotos: Carlos Siqueira | Infográficos: Reuben Lago
Em 2015, o governo do estado de Goiás trouxe a público a proposta de implementação de organizações sociais (OSs) nas escolas estaduais. No final do ano, o projeto começou a ser divulgado, convocando a comunidade a tirar suas dúvidas sobre ele. Assim que se tornou público, surgiram vários questionamentos, como a não participação da sociedade na construção daquele projeto, a legalidade do processo, a competência das OSs sem experiência prévia de gerir escolas e a manutenção da carreira de professores efetivos, junto a um quadro de celetistas, entre outros.
Organizações Sociais, pela Lei federal nº 9.637/1998, são “pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades são dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde”. A característica mais marcante da gestão por OSs é que a gestão do setor continua como atribuição do setor público e cabe às OSs a gerência do serviço, em nome do público, tendo o contrato de gestão como elemento normatizador da relação. Segundo Nelson Barbosa, gestor governamental na Secretaria de Estado de Gestão e Planejamento (Segplan), que realizou sua tese de doutorado em Saúde Pública na USP, tendo como tema as OSs no setor da saúde, uma área que convive há certo tempo com a presença das organizações sociais, o contrato determina um conjunto de direitos e deveres entre as partes, estabelecendo, entre outras coisas, os objetivos e metas a serem alcançados.
Defensor do trabalho das OSs, Nelson Barbosa destaca um ponto muito importante: “A regra em São Paulo, por exemplo, exige que as OSs na área de saúde devem ter pelo menos cinco anos de experiência comprovada na administração de serviços de saúde para serem habilitadas. Este é um critério importante para qualificar o processo de habilitação. Obviamente, se o estado adota a expertise na área como regra para a classificação das OSs e qualifica entidades com reconhecida capacidade técnica na área, não pode se furtar ao diálogo e à incorporação das contribuições das OSs nos temas relativos ao ensino-aprendizagem, mas não pode e nem deve delegar decisão neste campo para OSs”.
Este é um dos pontos em que os movimentos de estudantes, professores e entidades que são contra o projeto de OSs na educação têm debatido. O Ministério Público de Goiás entrou com uma ação civil pública na qual são apontadas irregularidades quanto ao cumprimento, pelas OSs, de requisitos exigidos pelo edital relativos à notória capacidade profissional e a idoneidade dos dirigentes das organizações (Lei 15.503/2005 que aponta requisitos para qualificação das OSs em Goiás). No documento do Ministério Público, a cada uma das organizações sociais que se habilitaram são apontados argumentos que confrontam a possibilidade de adequação a estes itens.
Mas a discussão vai além da capacidade técnica. Mesmo que as organizações sociais atuem, como proposto nos documentos base do chamamento de seleção da Organização Social da Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte (Seduce), no âmbito administrativo, deixando a cargo do diretor os assuntos que dizem respeito ao ensino-aprendizagem, ainda assim existe a discussão de até que ponto é possível dissociar a área administrativa da área pedagógica nas escolas. A secretária de Educação, Cultura e Esporte do Estado de Goiás, Raquel Teixeira, em entrevista à TV UFG, garantiu que “o modelo proposto pelo Estado vai permitir que professores e diretores se dediquem à atividade mais nobre da educação, que é o processo de ensino e aprendizagem”. Segundo ela, hoje o diretor passa até 90% do tempo cuidando da parte burocrática e da manutenção da escola. A professora aposentada da Faculdade de Educação da UFG e professora da Universidade Estadual de Goiás (UEG), Mirza Seabra, tem acompanhado o processo e não acredita nessa possibilidade: “A especificidade da gestão escolar não permite que a gestão administrativa ocorra em separado da gestão pedagógica. Ambas ocorrem num movimento único, de ajustes frequentes nos quais a atividade fim, que é o ensino pelo professor e a aprendizagem dos alunos, tem como suporte os processos administrativos, que são atividade meio, maneira de contribuir para o sucesso da escola”.
Recursos insuficientes
No edital que convoca as OSs, o Estado define que os gastos por aluno devem estar em torno de R$ 250 a 350 reais e que um dos critérios para a escolha da OSs será a proposta de menor custo por aluno. O próprio edital informa que a Rede Estadual gasta hoje mais do que isso por aluno (R$ 388,90). A secretária da Seduce, Raquel Teixeira, explica que a intenção é fazer mais e melhor com os mesmos recursos gastos hoje com a educação. Para Mirza Seabra, “melhorar a escola com esses valores é para mágicos e não para enfrentar a realidade que se apresenta, que requer mais recursos”. Ela ainda completa que “as pessoas mais capacitadas para essa gestão são as que conhecem a realidade das escolas estaduais e não empresas de fora”.
O ex-professor da Faculdade de Administração, Ciências Contábeis e Economia da UFG, atualmente na Universidade Federal do Paraná, Thiago Alves, estuda gestão educacional e também concorda que o valor não é suficiente: “O Brasil tem uma trajetória histórica de subfinanciamento na educação. Sempre investimos o que a Constituição determina ou deixamos a cargo da ‘boa vontade’ de cada gestor público a destinação de determinado percentual das receitas para a educação. Nunca investimos o necessário em educação básica na rede pública”.
Para ele, o retrato atual do sistema é fruto desse não investimento: prédios ruins, falta de equipamento e material didático, turmas grandes, falta de atendimento em determinadas fases, como na educação infantil, e baixa atratividade para a profissão docente. Ele explica que a proposta das OSs só reverbera no Brasil porque, devido a essa trajetória histórica, a escola pública se tornou sinônimo de escola ruim, o que fez com que a classe média migrasse para a rede privada, o que não ocorre em outros países, que defendem a educação básica pública. Dados do Education at a Glance – Panorama da Educação 2013 –, um anuário educacional da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mostram que o Brasil investe muito menos que outros países que oferecem boas condições de oferta educacional (3, 4 ou 5 vezes menos).
Thiago Alves acredita que “se a estratégia de mudar a gestão para as OSs não vai colocar mais recursos no sistema, um problema estrutural da educação não será resolvido. Não há milagres. Na melhor das hipóteses haverá uma pequena melhoria de eficiência naquilo que é possível (material de escritório, conta de luz, número de funcionários), mas não vai resolver o fundamental que é o salário do professor, o número de alunos por turma, a duração da jornada de aula (tempo integral) e todos os demais aspectos que custam muito dinheiro e impactam, segundo diversos estudos, nos resultados educacionais”. O professor também coloca outro temor: “por causa da gestão de custos na lógica empresarial, os alunos podem começar a ser empurrados para fora da escola (sob a forma de pequenas negativas de vaga ou empurra-empurra entre as escolas) e pode haver aumento no número de alunos por turma (para contratar menos professores)”
E o que é preciso fazer então?
Para o professor Thiago Alves, é preciso dar condições de trabalho para os professores. Ele enumera quais são essas condições: (a) formação inicial e continuada; (b) vínculo empregatício não precarizado (direitos dos trabalhadores); (c) plano de carreira (para retê-lo e estimulá-lo a permanecer na carreira); (d) jornada adequada de trabalho (com parte em sala de aula e parte para planejamento fora de sala, ambas remuneradas e cumpridas na escola); (e) número adequado de alunos por turma (em cada faixa etária dos alunos); (f) infraestrutura física da escola adequada (prédio, equipamentos, material didático, acústica, limpeza, etc...); e (g) remuneração adequada (pelo menos equivalente a outros profissionais de nível superior).
E quanto seria essa remuneração? Segundo o professor, com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/2013), em Goiás, um professor com formação em nível superior (graduação) recebia em média R$ 2.694, enquanto os demais profissionais de nível superior em Goiás recebiam R$ 3.359 (25% a mais) e os demais profissionais de nível superior no Brasil recebiam R$ 4.273 (59% a mais). Para Thiago Alves, enquanto esses requisitos mínimos não forem garantidos, continuaremos atacando questões menores, sem garantir o essencial que é um processo de ensino-aprendizagem efetivo. “A questão é que estes itens requerem mais dinheiro para a educação. E com as OS não teremos mais dinheiro para resolver questões que só maior aporte de recursos pode sanar”, conclui o professor.
Charter Schools
Como o projeto de OSs na educação não existe no Brasil, as comparações locais não são possíveis. Em diversos debates têm sido citado o exemplo das Charter Schools, como modelos em que organizações sociais deram certo na educação. Para Thiago Alves, essa não é uma comparação possível: “A rede de charters nos EUA atende uma porcentagem muito pequena do número de matrículas na educação básica – apenas 2% do total de matrículas, segundo Handbook of Research in Education Finance and Policy. Além disso, muitos estudos mostram que não há o que comprove que elas são melhores que a rede pública americana e alguns até provam o contrário.
“As charters surgem como uma questão que é valorizada na democracia americana, algo como ‘liberdade de iniciativa’. Elas surgem, muitas vezes, quando um grupo de professores e pais querem uma escola independente em determinado local, por acharem que assim é melhor para seus filhos”, mas não são uma estratégia do poder público, são demandas isoladas da sociedade. Ele considera que não é interesse dos EUA deixar a educação, algo estratégico, nas mãos de entes privados. Já na iniciativa goiana, ele vê uma estratégia de “empurrar” para a sociedade a gestão das escolas.
Outra questão levantada por ele é cultural: a relação entre público e privado existente no Brasil. “Há longa história de patrimonialismo. Isso não pode ser colocado como algo menor. A dificuldade de regular, fiscalizar e punir desvios na relação entre o público e privado, tem que ser colocada em questão. Nos EUA há corrupção, mas os mecanismos de regulação do privado pelo público, os instrumentos para identificar e punir desvios são muito mais céleres e aperfeiçoados”.
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