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Universidade Federal de Goiás

Reforma agrária pode ser invisível à Justiça

Em 13/03/13 15:54. Atualizada em 24/11/14 14:13.

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Publicação da Assessoria de Comunicação da Universidade Federal de Goiás 
ANO VII – Nº 56 – MARÇO – 2013

Reforma agrária pode ser invisível à Justiça

A ocupação de terras por movimentos sociais é uma ação comumente vista pelos magistrados como “esbulho”, termo do Código Civil para designar posse indevida. Assim, os pedidos de reintegração são analisados pela Justiça, na maioria das vezes, considerando apenas o direito à propriedade, em desprezo à função social da terra prevista na Constituição Federal. Para estudiosos da questão agrária, essa interpretação deveria ser diferente

Texto: Patrícia da Veiga | Fotos: Carlos Siqueira

 

 

entrega do relatório da pesquisa no Tribunal de Justiça de Goiás

Rabah Belaidi,coordenador da pós-graduação em Direito Agrário da UFG, o diretor da Faculdade de Direito, Jônathas Silva, o desembargador Ney Teles de Paula e Maria Cristina Vidotte, integrante do Observatório da Justiça Brasileira, quando da entrega do relatório da pesquisa no Tribunal de Justiça de Goiás

 

“O judiciário não se deu conta de que está sendo instrumentalizado na proteção de direitos individuais”, escrevem, em um relatório publicado em 2012, os professores Maria Cristina Vidotte, Adgmar José Ferreira e Cláudio Maia, do Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da UFG. O documento traz os resultados de um estudo que analisou a atuação da justiça nos estados de Goiás, Paraná, Mato Grosso e Pará, no período de 2003 a 2011, em caso de conflitos agrários decorrentes de ocupações de terra por movimentos sociais. De acordo com os pesquisadores, apesar de haver uma previsão constitucional para a realização da reforma agrária no país, a maioria dos juízes ignora que a terra deve ter uma função social ancorada no bem-estar dos cidadãos. Pelo contrário, quando se trata dos conflitos do campo, os méritos são julgados com base no Código Civil e no direito à propriedade privada. Um contrassenso.

 

Essa investigação se debruçou sobre 127 processos de ações possessórias, cujo propósito era a recuperação de terrenos ocupados por movimentos sociais camponeses. A conclusão foi de que a ação de ocupação, na maioria dos casos, é considerada “esbulho” e “turbação”. Por isso, pedidos de reintegração de posse, entre outros, são frequentemente acatados. A ação de recuperação dessas terras, por sua vez, é autorizada com base em dispositivos como o parágrafo primeiro do artigo n° 1.210 do Código Civil, que diz: “O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo”.


Já o texto da Constituição Federal, que dispõe sobre a função social da terra, quase nunca aparece nos méritos julgados. O artigo n° 186 define os critérios que uma propriedade rural deve atender para que seja considerada “produtiva” – uso racional, preservação do meio ambiente e regularização do trabalho – porém, são raras as situações em que os magistrados responsáveis por dar fim aos conflitos do campo se preocupam em averiguar informações sobre o uso da terra. “As decisões proferidas nesses processos são um dos espaços da violência que caracteriza o campo brasileiro, seja em suas dimensões física, social, política e simbólica”, denuncia o relatório.


Em Goiás, 13 processos foram acompanhados. Nenhum dos juízes responsáveis pela análise desses processos chegou a realizar inspeção judicial na área ocupada e apenas um promoveu audiência de justificação prévia entre as partes. Para os professores, isso indicou certa “despreocupação da magistratura goiana com a estruturação agrária nesse Estado”. A impressão que se tem é que há um desejo de que se mantenha, exatamente, essa estrutura fundiária. “Às vezes, uma celeridade que não existe em outras situações está nesse tipo de decisão”, comenta o professor Cláudio Maia, em entrevista à reportagem do Jornal UFG.


No Paraná, de 36 processos estudados, 86% concederam liminar de reintegração de posse sem ouvir as partes. Além disso, a ocupação foi enquadrada como crime pelo artigo n° 162 do Código Penal. Conforme o relatório, em Mato Grosso, onde há uma Vara Especializada em Direito Agrário, “a discussão sobre a função social da propriedade apresenta-se como uma preocupação do magistrado” e, por isso, aparece em 47% dos 46 processos analisados. No estado do Pará, por sua vez, com 32 casos acompanhados, os conflitos foram notadamente mais intensos e muitos foram os processos interrompidos.


Essa pesquisa foi realizada no âmbito do Observatório da Justiça Agrária, instaurado na Faculdade de Direito (FD) com o fomento da Fundação Ford e em parceria com o Observatório da Justiça Brasileira, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e o Centro de Estudos Sociais da América Latina. Uma das consequências de seu desenvolvimento foi a constatação de que onde há magistrados especializados e estudiosos da questão agrária, a sensibilidade para os anseios sociais e o senso de justiça é maior. Portanto, durante uma reunião com o presidente do Tribunal de Justiça de Goiás, desembargador Ney Teles de Paula, no dia 20 de fevereiro, os docentes da Faculdade de Direito entregaram os resultados da pesquisa e apresentaram formalmente a sugestão de que uma vara especializada seja criada no estado. O desembargador considerou válida a iniciativa e encaminhou o pedido para avaliação.

Milton Santos: um caso emblemático

O ocorrido não foi em Goiás, e sim no interior de São Paulo, na região de Americana. No entanto, diz respeito a uma decisão judicial que não considerou a função social da terra. Por isso, vale a pena contar a história do assentamento rural Milton Santos, área de aproximadamente 100 hectares que abriga cerca de 300 pessoas.


O segundo semestre de 2012 e o início de 2013 foram bastante tensos. Uma liminar emitida pela Justiça Federal no mês de julho estipulava o prazo máximo de 30 de janeiro para que as mais de 70 famílias deixassem o assentamento Milton Santos. Essas pessoas teriam de esquecer o investimento que fizeram, a plantação que demorou a vingar, as casas que construíram, as ocupações que percorreram e toda a luta até chegar ali. Caso resistissem, seriam despejadas.


Foi com a notícia de um possível desmanche do assentamento que os camponeses reagiram. Depois de algumas reuniões com técnicos e dirigentes do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), ocuparam, em São Paulo, a Secretaria da Presidência da República, a sede do próprio Incra e o prédio onde está localizado o Instituto Lula. Na ocasião, conseguiram apoio de uma série de outros movimentos, além de artistas e coletivos de mídia. Fizeram greve de fome e ampla divulgação na internet sobre a condição das famílias.


Até o dia 29 de janeiro, a expectativa era de que uma ofensiva policial retirasse os assentados do local. No apagar das luzes, foi dada a notícia, vinda do Tribunal Regional Federal da 3a. Região (TRF), de que houve decisão favorável a uma medida cautelar requerida pelo Incra. A reintegração imediata da posse foi suspensa e, passado o susto, os assentados voltaram à sua rotina de produção. Contudo, ainda hoje sabem que correm risco de perder a terra.


A área do assentamento Milton Santos é disputada na justiça desde a década de 1970, quando seus antigos donos, membros da família Abdalla, produtora de cana-de-açúcar desde o tempo das destilarias, perderam sua posse para o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), até então INPS, por dívidas trabalhistas. O seu entorno, porém, foi mantido e, atualmente, é arrendado para a Usina Ester, produtora de etanol, dirigida pela família Coutinho Nogueira, a mesma que é proprietária das Emissoras Pioneiras de Televisão (EPTV), afiliada da Rede Globo em Campinas.


O terreno, transformado em patrimônio de um órgão público, não chegou a ser desapropriado para fins de reforma agrária. Ainda assim, o assentamento Milton Santos foi consolidado pelo Incra há sete anos. Desde que estão na terra, os camponeses construíram uma trajetória de produção que se tornou importante para o mercado consumidor da região. São distribuídos alimentos orgânicos para mais de 12 mil famílias que vivem nos municípios de Campinas e Cosmópolis. Além disso, o assentamento foi escolhido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) como uma unidade de referência na produção agroecológica.

O que se discute dentro e fora do assentamento é a possibilidade de que seja assinado pela presidente Dilma Rousseff um decreto de desapropriação por interesse social. Em nota publicada no sítio Passa Palavra (www.passapalavra.info), os integrantes do assentamento consideraram que a “definitiva tranquilidade” das famílias “depende” desse documento.

 

Observações – Para o professor Cláudio Maia, do Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário, essa seria a solução, uma vez que, ao longo de todos esses anos, as famílias têm arcado com uma “inoperância do Estado”. “Com a assinatura desse decreto, a presidente resolveria um problema social grave e evitaria a violência”, afirma. Ele questiona a decisão judicial que devolve a terra para os supostos antigos donos: “Historicamente, temos uma distribuição agrária injusta e aquilo que vem a ser o cumprimento de uma norma legal tem gerado mais conflito e violência, o que teoricamente a norma deveria evitar”.

Segundo o professor Adriano de Oliveira, do Instituto de Estudos Socioambientais (IESA), a situação é emblemática e revela o quanto a política de acesso à terra no país é frágil. “A luta pela terra e pela reforma agrária remete a vários processos que são interligados, que acontecem em várias partes do Brasil, e que têm uma conexão direta por conta dessa nossa herança de nunca ter havido uma política governamental ampla e maciça de, de fato, pensar a reforma agrária”, avalia. Além do Milton Santos, sofrem ameaça de despejo trabalhadores assentados na região do Vale do Paraíba, em São Paulo, no município de Campos dos Goytacazes (RJ), entre outros tantos que não se tem notícia. “É uma tendência”, define Cláudio Maia.

Adriano considera que, em linhas gerais, trata-se de um exemplo de “território em disputa”. De um lado, os representantes do agronegócio, que dependem da concentração de terra para aumentar a produção de commodities e recebem bilhões de reais em financiamentos públicos. De outro, a resistência camponesa, que começa a ter acesso a políticas de abastecimento e incentivo à produção, mas que, como vimos, sofre com o conservadorismo do judiciário e com a omissão do próprio Estado. “É uma questão moral do capital sucroalcooleiro, no caso, representado pelas famílias produtoras de cana-de-açúcar, eliminar essas famílias que ali estão”, opina. Adriano acredita que produzir nas bases da agroecologia e da reforma agrária pressupõe autonomia e mudança de paradigmas, o que seria um risco à estrutura do agronegócio. “Se continuar sendo bem sucedido, o assentamento torna-se um exemplo”, explica.

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Livro Relatório Reintegração de Posse 7590 Kb b19b3079218d89804a66db10eb68eeed
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