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Universidade Federal de Goiás

É preciso criar uma cultura que valorize os Direitos Humanos

Em 07/11/13 10:20. Atualizada em 24/11/14 14:13.

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Publicação da Assessoria de Comunicação da Universidade Federal de Goiás 
ANO VII – Nº 63 – OUTUBRO – 2013

É preciso criar uma cultura que valorize os Direitos Humanos

Texto: Ascom e TV UFG | Foto: Carlos Siqueira

Mesa redonda 63

 

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, prevê que todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. No entanto, o que se vê na prática é o descumprimento destes preceitos básicos, principalmente em países subdesenvolvidos, como é o caso dos países latino-americanos. Por isso, o Jornal UFG, em parceria com a TV UFG, realizou um debate ampliado sobre o tema, com a professora da Faculdade de Filosofia e coordenadora do Mestrado em Direitos Humanos da UFG, Helena Esser, e as professoras da Universidade Nacional de Quilmes da Argentina, Luisa Ripa Alsina e Mónica Fernández.

 

Como está a efetivação dos direitos humanos na América Latina? Ainda há muitas violações?

Luisa Ripa Alsina – Eu sou professora de Filosofia, interessei-me pelo tema Direitos Humanos um pouco por casualidade e porque ninguém se preocupava com ele. Em termos gerais, nas últimas décadas, deu-se a instalação dos direitos humanos, em triplo sentido. Em primeiro lugar, em um sentido jurídico. O sistema regional de garantias funciona cada vez melhor e é um recurso que temos à mão, algo que é possível. Em segundo lugar, há uma instalação institucional impressionante, com a criação de secretarias, comitês, comissões, defensorias, etc. Tudo isso está se tornando normal, conhecido, e está no desenho de nossos países. Não apenas na justiça, mas nas instituições, os direitos humanos agora têm seu lugar. E, por último, no âmbito em que eu mais trabalho, há uma integração de tipo cultural. Há alguns dias uma professora que trabalha com pessoas com diferentes necessidades especiais, e com os direitos delas, disse-me: “Os direitos humanos estão na boca de todos”. Esta frase expressa a dimensão cultural, a partir da qual esses direitos fazem parte da vida cotidiana e da linguagem do que se diz.

César Kiss – O cinema goiano tem crescido há algum tempo. Eu acompanhei esse crescimento do audiovisual. Nos últimos cinco anos, temos tido uma aceitação maior dos produtos goianos nos festivais de audiovisual. A Mandra foi para Berlim, Tóquio, Londres, diversos festivais no exterior. O cinema goiano está rodando muito e o pessoal que produz cinema está querendo produzir para televisão, de olho na Lei 12.485/2011, da TV paga. Nós fomos para o Rio Content Marketing, evento que ocorreu no Rio de Janeiro, para comercialização de material audiovisual. Vimos que temos qualidade e potencial, o que falta é o apoio do Estado de Goiás, como faz em diversas outras áreas.

Mónica Fernández – A citação de um sacerdote jesuíta uruguaio, Luiz Perez Aguirre, ajuda-nos a pensar em uma série de problemas comuns que temos e que parecem ter como denominador comum o atropelamento da dignidade. Perez Aguirre, que busca em seu trabalho sensibilizar as pessoas que estão ao seu redor, diz que a originalidade dos direitos humanos está no método que podemos usar para aprender e ensinar direitos humanos. Isso porque quando uma criança sofre por falta de alimentos, que termina primeiro com seu corpo e depois com sua família, isto também é uma violação dos direitos humanos. E não sabemos quem são os culpados. Então, Luiz Perez Aguirre provoca uma problematização cujo ponto central é a pobreza, para depois pensar em normas, que são importantes, mas não suficientes. Trata-se de estabelecer um vínculo para falar quais são nossos verdadeiros problemas, que também estão no âmbito dos direitos humanos.

Helena Esser – Eu concordo que os direitos humanos na América Latina cresceram muito, sobretudo nas proteções jurídicas, políticas e institucionais. Hoje, com o estabelecimento da Corte Interamericana, temos isso de uma maneira muito mais tranquila nas instituições. No entanto, culturalmente, a situação é muito mais paradoxal. Por um lado, encontramos pessoas que afirmam a necessidade da proteção e resguardo dos direitos humanos, mas também pessoas que não demonstram nenhuma sensibilidade em relação aos direitos humanos do outro, reivindicam para si, mas sem compromisso com a comunidade. Aqui no Brasil isso é muito claro, principalmente em certos segmentos da sociedade, não só em instituições ou grupos organizados, mas com pessoas. Existe uma mentalidade, uma cultura de desprezo pelo reconhecimento do outro como uma pessoa digna e que merece cuidado e proteção da sociedade e do Estado.

Luisa Ripa Alsina – Acredito que isso tenha a ver com o problema mais duro, o fato dos direitos humanos estarem na boca de todos e saber o que isso significa na vida concreta, sobretudo, se levarmos em conta o que disse Perez Aguirre, ao colocar o cenário da pobreza como determinante. O filósofo Enrique Dussel, que propôs uma Ética da Liberação, diz que o maior problema da bioética não é a eutanásia, mas sim a pobreza, pois enquanto discutimos se deixamos morrer um paciente, cinco mil pessoas estão morrendo de fome. Esse é o problema da vida. No entanto, algumas coisas mudaram. Não faz muito tempo, que, por exemplo, perguntavam para mim se eu era garantista (teoria que se refere às técnicas de garantia dos direitos fundamentais). E dizer que eu não era garantista era uma coisa ruim. Quando foram iniciadas as discussões sobre o tema Educação e Direitos Humanos, estes gozavam de grande simpatia e respeito nas universidades, mas em igual medida de ignorância sobre o assunto. Ou seja, todos defendiam, mas não sabiam quem se ocupava disso ou a que se referiam concretamente. Isso mudou substancialmente. Hoje se pode identificar lugares institucionais, na Argentina, onde são ensinados os direitos humanos com um exemplar da Constituição da Argentina. Isso é uma revolução, porque esses direitos estão no texto constitucional, o que significa uma mudança, que vai se convertendo na vida concreta.

Mónica Fernández – Por isso falávamos da importância do reconhecimento dos direitos humanos em normas regionais, nacionais e internacionais. Mas também é certo que, uma vez que tenhamos dado esse passo, precisaremos trabalhar a sensibilização, para que ninguém confunda o que falamos quando tratamos de direitos humanos.

Helena Esser – Nesse sentido, a educação é fundamental, porque é o modo que se tem de espalhar uma cultura de direitos humanos.

 

Vocês acreditam que uma interação maior entre os países latino-americanos pode ser um passo importante na efetivação desses direitos? E como seria isso, por meio da educação ou da cultura, por exemplo?

Mónica Fernández – Esta possibilidade de estarmos reunidos conversando sobre os problemas que temos em comum e sobre os tópicos que deveríamos abordar, é um primeiro avanço para trabalhar de maneira conjunta. Acredito que a política latino-americana nos permite pensar nessa reunião de professores, políticos, para abordar problemas comuns. Estou pensando, por exemplo, no Instituto de Políticas Públicas do Mercosul em Direitos Humanos que reúne alguns países justamente para trabalhar temas da comunidade latino-americana. Participam o Brasil, o Uruguai, a Argentina e a Venezuela, que organizam reuniões com autoridades políticas do Mercosul. Suas reuniões são políticas, em sentido governamental. Entretanto, parece que nossos encontros acadêmicos estão mais vinculados a pensar a cultura e a educação, do que pensar os grandes problemas da política governamental.

Helena Esser – No que diz respeito às redes de direitos humanos, a UFG participa de mais de uma rede: a Rede de Educação e Direitos Humanos e o Consórcio Latino-americano de Pós-Graduação em Direitos Humanos. Com isso, temos contato com estudantes, professores, universidades em toda a América Latina, no sentido de participar da formação de uma cultura voltada para os direitos humanos.

Mónica Fernández – Sem perder a independência que podemos ter como acadêmicos, porque a perspectiva das políticas governamentais, com certeza, terá outros interesses para atender. Acredito que temos de ser a voz que critica essa política governamental.

Luisa Ripa Alsina – Eu acrescentaria algo a essas especializações que podem ter os direitos humanos. O lugar da educação não é apenas mais uma especialização dos direitos humanos, pois as políticas públicas são levadas adiante por pessoas formadas nas universidades. A questão é absolutamente crucial também no âmbito das políticas públicas. Quando começamos a falar de direitos humanos, havia uma grande simpatia e acolhida, mas isso não se concretizava em cursos, planos concretos. Na Argentina, professores do ensino médio precisam ensinar Direitos Humanos. Descobrimos que os direitos humanos não estão inclusos nos currículos. Os docentes estão ensinando sobre coisas que ignoram. Esta defasagem é um ponto crucial. Nesse sentido, com esse trabalho que fazemos, desde 2003, com as investigações e, desde 2006, reunindo-nos em colóquios interamericanos, Direitos Humanos não são apenas um tema a mais. É um tema que pode permitir um suporte efetivo, real, para que ocorra na vida concreta o respeito pela dignidade, para que os políticos não conheçam somente os direitos humanos a partir dos tratados, mas que tenham uma formação adequada. Isso está começando agora. Daqui uma década, esse painel terá outros dados, outras realidades, mas isso está apenas começando.

Mónica Fernández – Pelo nosso trabalho com comunidades educativas, agregaríamos a voz daqueles que sempre estiveram calados, a voz da comunidade, a qual, supostamente, a universidade "estende o braço" para levar conhecimento. Na verdade, trabalhar com a comunidade extramuros universitários é revelar quais são os problemas que efetivamente têm e aí sim, começar a falar das soluções que os grupos comunitários pretendem levar adiante. Uma vez escutei o teólogo Frei Betto comentar uma história na qual ele mencionou que em uma reunião, para definir o uso da verba pública, participava a comunidade e havia uma disputa entre os representantes governamentais e da comunidade. O que fazemos com o dinheiro que temos que distribuir? Os representantes governamentais consideravam que era preciso construir um hospital, uma sala de primeiros socorros, para atender o acesso à saúde. Uma ideia muito nobre, mas a comunidade dizia que não lhes interessava ter um serviço de saúde, que preferia ter um lugar para jogar futebol. Então começou a discussão: O que é melhor, ter acesso à saúde ou ter acesso ao esporte, sobretudo um esporte bastante popular, como o futebol? E decidiram construir a quadra de futebol para que os jovens do local praticassem esportes. Era necessário avaliar quem tinha razão. Com o passar do tempo, essas avaliações mostraram que os habitantes não precisavam de um serviço de saúde, pois ao estar em contato com outras pessoas, praticando futebol, não necessitavam de medicamentos, nem de atenção à saúde, porque se alimentavam bem, afastavam-se das drogas, dos conflitos urbanos, etc. A conclusão é que não estamos escutando as vozes daqueles que conhecem seus conflitos. Acredito que essa ideia de fazer a universidade participar da comunidade não é para levar conhecimento, mas sim para obter conhecimento dessa comunidade.

Helena Esser – Isso é importante e na nossa prática cotidiana não agimos assim. A universidade apresenta o conhecimento. Os projetos de extensão devem ser fomentados, sobretudo, na perspectiva de conhecer a comunidade e ver o que é importante para ela.

Luisa Ripa Alsina – Tecnicamente poderíamos perguntar: Quem sabe e quem tem direito de decidir? Isso é muito importante, porque na educação pode acontecer de falarmos de direitos humanos, de ensinarmos direitos humanos, mas falam os que sabem, ensinam magistralmente, e os outros devem calar a boca e repetir. Nesse sentido, lembro-me que no terceiro colóquio, que foi realizado em Quilmes, uma das coisas que trabalhamos foi a ideia que se reproduz na educação de quem são os que sabem, quem vem com saberes prévios. Estou convencida que todos vêm com saberes prévios, os educadores por definição, mas também os que vão aprender e merecem ser escutados. A comunidade e a família vêm com uma série de saberes, que habitualmente em nossa escola formal são silenciados, mas que merecem ser escutados. Eu sonho com uma educação, em que no primeiro encontro com os pais, o diretor da escola pergunte: O que vocês querem que seus filhos aprendam e por quê? E na ordem dos direitos humanos, o que devemos fazer e por quê? Que a primeira coisa a se fazer seja perguntar e escutar. Isso seria uma nova revolução não só dos direitos humanos, mas de uma postura ética frente a eles. Creio que, nessa primeira reunião, os pais ficariam mudos, pois toda vida apenas escutaram. Acredito que temos de começar por eles, continuar nas crianças e, por fim, terminar com os docentes.

 

Grande parte dos países latino-americanos é uma democracia recente, iniciada depois de anos sob regimes ditatoriais. Vocês acreditam que esses regimes tenham deixado marcas negativas no campo dos direitos humanos?

Helena Esser – Hoje temos em toda a América Latina uma série de instituições que dão estabilidade democrática aos países, uns mais, outros menos, mas todos já alcançam um patamar de democracia. Mas isso infelizmente não garante a presença dos direitos humanos; pelo contrário, eles continuam sendo violados e essa violação é bastante propiciada por resquícios não resolvidos dos períodos ditatoriais. Tanto a sociedade civil, como algumas instituições são habituadas a usar de tortura, violência, violações. Isso permanece e não chega a causar incômodo na sociedade civil, dando margem à uma atuação pouco democrática e pouco respeitosa para os direitos humanos. E isso acontece em toda a América Latina.

Luiza Ripa Alsina – Porém, acredito que houve uma mudança substancial. Em 1983, a Argentina volta a ser uma democracia. Eu tinha vivido mais tempo sob regimes militares do que sob um regime democrático. Esta é a primeira vez que vivemos 30 anos de democracia na Argentina. Estamos celebrando isso por todos os lados. Os argentinos estavam acostumados – e me arrisco a dizer que o resto da América Latina também, sempre que tínhamos problemas sociais, econômicos e políticos, a acreditar que os militares seriam os salvadores oficiais. Poderíamos estar a favor ou contra, mas essa recorrência de golpes militares, de ruptura da democracia e das instituições estava instalada no imaginário social. Era algo que sabíamos que poderia ocorrer. Alguns estavam radicalmente contra, outros mais ou menos, e circulavam comentários como esses: “Com tanto dinheiro que gastamos com deputados e senadores, que esse dinheiro seja usado para fazer casas, hospitais, etc”, apesar de todos os governos militares terem acabado em fracassos; fracassos econômicos, porque acabamos com mais pobreza, fracassos sociais, porque acabamos com mais problemas, fracassos de todos os tipos. Mas apesar disso, no imaginário e nas representações sociais, havia essa recorrência ao golpe e isso hoje em dia desapareceu. Não é mais uma variável possível. Então, com todos os problemas que apontamos, creio que hoje temos a possibilidade de uma insistência na democracia. A instância diferente do que é a resistência ou a constância. A resistência, por exemplo, que tiveram os franceses frente aos nazistas tem uma força enorme, uma capacidade de reunião que não temos totalmente. A constância de que algo se mantenha ao longo do tempo também não é nossa história. A insistência é essa possibilidade de recomeçar e isso, sim, temos. Na Argentina, havia terminado a possibilidade de fazer julgamentos e hoje voltamos a fazê-los novamente. Em outros países, também não haviam mais julgamentos e eles foram retomados. E isso é porque recomeçamos. Maria Elena Walsh tem uma canção muito bonita que fala da cigarra e diz: “Tantas vezes morri, tantas vezes me mataram, tantas vezes voltou o verão e voltei a cantar”. Essa espécie de voltar à vida me parece que é nosso estilo e o ensinamento que nos falta não deve evitar o reconhecimento de nossa força e nossa capacidade de insistir.

Mónica Fernández – Mas me ocorre pensar em princípios que também são fundamentais para pensar direitos humanos, mas que são paradoxos. O mesmo ator social que deve garantir a presença desses direitos é quem os viola. É impossível pensar a democracia sem um vínculo com os direitos humanos e, da mesma maneira, é impossível pensar direitos humanos se não estamos em uma democracia. Agora temos dois princípios fundamentais para reivindicar. Existe uma democracia, no caso da Argentina desde 1983, como disse Luisa Ripa Alsina, que foi reconhecendo aos poucos diversos direitos humanos. Parece-me que um exemplo do que quero comentar é o que disse nossa companheira: quatro mulheres falando sobre temas que tradicionalmente eram dos homens. Isso era impensável há 20, 30 anos. Este é um ganho, um reconhecimento às lutas que se dão na democracia, que não podem ocorrer em meio às ditaduras. Então, esse avanço nos direitos e essa ideia nefasta de falar de direitos humanos, como se fossem teorias de gerações, não são teorias de geração, são um avanço no empoderamento, no agenciamento da cidadania, porque as democracias permitem. Isso seria impensável em governos ditatoriais.

 

As pessoas têm reivindicado esses direitos?

Luiza Ripa Alsina – Na Argentina, atualmente, qualquer um que abra um jornal ou ligue a televisão vai escutar como a liberdade de expressão está sendo impedida. Mas a guerra contra a liberdade de expressão está expressada com toda a liberdade, é algo que funciona na democracia. Mas há diversos setores onde não existe democracia, como exemplo, nas instituições educativas e religiosas. De toda maneira, a busca do que falta, a manifestação e o protesto podem ocorrer porque existe democracia. Isso é parte do paradoxal. Vocês mesmos acabaram de ter manifestações impressionantes devido ao aumento da passagem. E isso é impensável em uma ditadura, pois o medo de perder a vida cala a voz. Hoje sabemos que não vão nos matar e isso não é pouca coisa.

Helena Esser – O paradoxo da democracia é justamente o que dá vida à ela. O que faz com que democracia e direitos humanos sejam coisas inacabadas, algo a ser construído pela ação dos próprios participantes. É um paradoxo, mas é a possibilidade do novo.

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